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A face oculta da segurança pública

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27/07/2007 às 00:00
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Resumo: Sem a pretensão de apresentar respostas acabadas a um problema e um sistema complexos, o artigo encara as maiores incidências delituosas para, a partir disto, delinear uma tese que tem assento não só em bases teóricas do direito, mas também no campo do olhar sociológico e da excelência na gestão pública da segurança.

Palavras-chave: subnotificação estatística; tolerância zero; autoridade policial; investigação criminal; termo circunstanciado.

Sumário: 1. Introdução. 2. O enfoque estatístico da criminalidade. 2.1. A opção política. 2.2. Uma alternativa técnica. 3. A atuação das Polícias Militares na persecução penal. 3.1. A repressão criminal imediata e o paradigma da "polícia preventiva". 3.2. O paradigma da "autoridade policial". 3.3. A lavratura de Termos Circunstanciados por policiais militares. 3.3.1. O preparo técnico-jurídico do policial militar. 4. A atividade de investigação criminal. 5. Considerações finais.


1. Introdução

A civilização política é liberdade. Mas a liberdade [...] não é senão a segurança: a segurança da vida, da pessoa, dos bens. Para um saxão de raça ser civilizado é ser livre. Ser livre é estar seguro de não ser atacado em sua pessoa, em sua vida, em seus bens, por ter opiniões desagradáveis ao governo. A liberdade que não significa isso é uma liberdade de comédia. A primeira e a última palavra da civilização é a segurança individual. (RUI BARBOSA, 1999, p. 199).

O "Águia de Haia" entre tantas verdades assegurou esta: "A primeira e a última palavra da civilização é a segurança individual". Com efeito, tamanha é a importância do tema, que nossa Lei Fundamental cuidou de tratá-la em vários momentos de seu texto [01]. Pode-se dizer assim, que a segurança é o direito fundamental sobre o qual se assentam todos os demais.

A palavra origina-se do latim "securus", "se" "cura": cuidados que a pessoa tem consigo mesma. O termo refere-se às medidas destinadas à garantia de integridade das pessoas, comunidades, bens ou instituições. Diz-se, pois: segurança do tráfego, segurança pública, segurança nacional. Há, ainda organismos internacionais, como a ONU aos quais se acham afetos sistemas de segurança coletiva, visando manter a paz mundial" [02].

“S?c?r?s" (se cura = sine cura) plácido, sossegado, tranqüilo; pélagi securus, que não tem medo do mar; que despreza, não se importa de alguma coisa; quis sub Arcto rex gélidae metuatur orae, únice securus, não se me dando absolutamente nada quem sob o pólo norte seja temido como rei da região glacial" [03].


2. O enfoque estatístico da criminalidade.

Infelizmente, no universo científico do Direito, poucas são as pesquisas que lançam mão dos métodos de coleta e análise de dados estatísticos; a pesquisa bibliográfica tem tido a preferência dos juristas que, em regra, focam as hipóteses dos problemas cotidianos por uma ótica puramente teórica, a partir de paradigmas de escolas jurídicas. As pesquisas giram em torno de hermenêutica [04] e, raramente, encaram o mundo real, senão o mundo das posições doutrinárias, enquanto a análise do ambiente social resta a pesquisadores das ciências sociais, que não tem o mesmo olhar do jurista pela distinção entre os objetos desses campos do saber humano.

Mas qual seria a relevância da proposta agregação dessa metodologia para a análise do fato social com reflexos jurídicos? Ora, se o saber sociológico, ou mesmo criminológico, carece de bases jurídicas científicas sólidas e se as pesquisas jurídicas carecem de uma abordagem da realidade social, a saída é que as pesquisas jurídicas evoluam para uma metodologia e métodos que não se reduzam à pesquisa bibliográfica, mas também à coleta e análise de dados juridicamente relevantes.

2.1. A opção política.

No Estado de São Paulo, a Secretaria de Segurança Pública, por força da Lei Estadual nº 9.155/95 publica trimestralmente no Diário Oficial do Estado as estatísticas de criminalidade [05], seguindo uma metodologia ditada pelo Sistema Estadual de Coleta de Estatísticas Criminais, criado a partir da Resolução SSP-160, de 08/05/2001, tendo como objetivo, entre outros, a transparência da gestão pública da segurança. Todavia, alinhada a uma tendência mundial, os maiores enfoques giram em torno da "criminalidade violenta". Assim aponta LENGRUBER (2000) [06] que "Nos últimos tempos, com o acentuado e rápido crescimento dos índices de criminalidade, principalmente daqueles relativos à criminalidade violenta, inúmeros pesquisadores, de norte a sul do país, se vêm dedicando ao tema".

Não bastasse, KHAN (2000) [07], atual Coordenador de Análise e Planejamento da SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo), ex-diretor do Departamento Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça no governo FHC e coordenador de pesquisa do ILANUD (Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento dos Delinqüentes), aponta uma grave situação que atinge todos os estudos criminológicos, inclusive de países evoluídos e, relativamente ao Estado de São Paulo, afirma:

"Sabe-se que os dados oficiais baseados nos boletins de ocorrência apresentam uma subnotificação da ordem de 2/3, maior ou menor segundo o tipo de crime, e que isto ocorre porque muitas vítimas não se dão ao trabalho de ir à delegacia relatar o crime. Muitas destas ocorrências, no entanto, são registradas por telefone, como agressões, depredações, maus tratos, etc, pelas vítimas ou por testemunhas do ato. Além disso, as centrais de atendimento da PM são informatizadas, catalogam um grande número de condutas antijurídicas e trazem informações adicionais a respeito do tratamento dado ao problema".

Pois bem, de um lado temos um sistema metodológico ainda ineficiente pela subnotificação e, de outro, um foco voltado à parcela mais visível da criminalidade, principalmente porque destacada pela mídia. Qual seria realmente o retrato da criminalidade que angustia os núcleos sociais?

Nesse sentido o estudo de DANTAS e SOUZA conclui:

É necessário ter em conta que os registros policiais de crimes, por mais inclusivos que sejam, já são intrinsecamente restritos, já que subentendem a "cifra negra" ou não-notificação de crimes ocorridos. As análises podem ser de maior valor tático ou estratégico, conforme estejam mais focadas nos registros de categorias pontuais de dados sobre os crimes (dados de materialidade, autoria e modus operandi) ou de informações genéricas (número de delitos índice ocorridos e respectivas taxas de resolução).

PORTO (2006) lembra bem as falsas cifras geradas por um outro motivo: o formalismo dos mecanismos jurídicos de persecução penal brasileiros:

"Com efeito, quem não lembra que, antes de entrar em vigor a Lei 9.099/95 era bem menor o número de inquéritos por ameaça do que por lesões corporais? Corretamente, incapaz de concluir cem por cento dos registros, a Polícia estabelecia como prioritária a apuração do delito mais grave de lesões corporais. Então, com a vigência da Lei 9.099/95 e a simplificação dos procedimentos, as ameaças assumiram estatisticamente o primeiro lugar, deixando para trás as lesões corporais. Agora, certamente, este delito menor voltará a integrar a cifra oculta da criminalidade, ante a impossibilidade virtual e, possivelmente óbvia, de, em face da reburocratização da persecutio criminis, judicializá-lo plenamente".

2.2. Uma alternativa técnica.

Diante da "criminalidade violenta", não só os órgãos de segurança pública, mas também a sociedade tende a não agir nos casos de menor repercussão ou que não atinjam valores mais expressivos do imaginário social atual. Somente a título de exemplo, é de se destacar que no primeiro semestre de 2007 foram registrados os seguintes números de ocorrências policiais contravencionais nas regiões do Centro da capital, Sorocaba, Ribeirão Preto e São José do Rio Preto:

Tabela de Contravenções penais – 1º Semestre de 2007 (01 Jan. – 30 Jun.) [08]

 

Capital (Centro)

Região de Sorocaba

Região de Rib. Preto

Região de SJRio Preto

Perturbação da Tranqüilidade

51

46

20

39

Perturbação do Sossego Alheio

113

111

100

56

Vias de Fato

242

186

386

149

Ex. Irregular de Atividade

10

11

11

04

Fonte: Sistema de Informações Criminais do Estado de São Paulo (INFOCRIM)

Destacamos a ínfima quantidade de registros em regiões de realidades bastante distintas, desde a região central da metrópole paulista, passando por regiões interioranas mais populosas (Sorocaba e Ribeirão Preto), até a região mais distante do interior do Estado (São José do Rio Preto). Observa-se que se totalizadas as ocorrências em suas 4 naturezas (Perturbação da Tranqüilidade, Perturbação do Trabalho ou Sossego Alheios, Vias de Fato e Exercício Irregular ou Ilegal de Profissão ou Atividade), nos 181 dias pesquisados (1º semestre de 2007), na área central da capital a média foi de 2,29 registros por dia, na região de Sorocaba essa média foi de 1,95, na região de Ribeirão Preto a média foi de 2,85 e, por fim, na região de São José do Rio Preto a média foi de 1,37 registros por dia.

Como já mencionamos, o fantasma da subnotificação [09] não nos permite inferir, com precisão científica, a realidade das ocorrências havidas. Contudo, somente a título de ilação, é de se aceitar como hipótese razoável que tenha havido tão poucos casos dessas ocorrências? As ocorrências pesquisadas refletem o cotidiano de centros urbanos, onde as formas de poluição sonora provocada por bares, boates, festas etc. atormentam os núcleos sociais; os casos de vias de fato são igualmente freqüentes e, por fim, um problema que a todos esses núcleos urbanos assola – os guardadores de veículos ("flanelinhas") – que por si só configura, minimamente, a contravenção de exercício irregular de profissão, são exemplos de uma abordagem metodológica desfocada da realidade.

O grande problema que aflora é que essas infrações menores tendem a evoluir para a "criminalidade violenta"; perturbações da paz que se transformam em conflitos armados entre vizinhos; vias de fato, que podem resultar em homicídios passionais; "flanelinhas", que tendem à prática de dano ou extorsão dos motoristas etc.

Longe da pregação de uma linha de "Tolerância Zero" [10], onde resta a impressão de que o poder público é o titular do sentimento de admissão ou repulsa aos desvios de conduta, cabendo-lhe discricionariamente reagir quando lhe aprouver, a tese que ora sustentamos é a de que a sociedade, não por opção, mas exatamente por falta dela, vem se conformando com a aparente anomia e com a inércia dos órgãos incumbidos da preservação da ordem pública.

Com efeito, não se pode negar a concepção do Chefe do Departamento de Polícia de New York, William Bratton, citado por BALESTRA (2006), especialmente no que toca a primeira das seguintes assertivas:

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De acordo com Bratton, esta campanha demonstrou ser sumamente necessária por três razões. Primeiro, porque muitos vizinhos estavam mais preocupados com infrações menores - a prostituição, os traficantes de droga operando no bairro, a poluição sonora, os vagabundos e alcoólatras -, do que com crimes mais graves ou complexos, dos quais as pessoas somente se interavam pela imprensa. Os vizinhos queriam que a polícia fizesse algo com estas desordens menores. Segundo, porque o clima de desordem pública gerava um ambiente propício para a prática de crimes de maior gravidade: bairros degradados, casas tomadas, carros abandonadas geravam um contexto de oportunidade que atraem delinqüentes (teoria "Broken Windows"). Terceiro, os delinqüentes que cometem sérios crimes normalmente violam as normas menores de convivência.

BALESTRA, citada por LEMLE (2006), opõe críticas ao programa que, em sua visão, recrudesce o Estado-Penal como instrumento disciplinador das classes consideradas mais incivilizadas e, arremata dizendo-o ser impraticável na América Latina, onde seria "inconcebível criminalizar determinadas condutas enraizadas culturalmente" [11].

O que aqui enfatizamos não é uma tese de preito ao pensamento Law and Order, até porque não cogitamos em criminalização de condutas, tampouco aportamos na teoria abolicionista [12], mas simplesmente defendemos a idéia de que não cabe à polícia escolher contra quais infrações atuar, mas atuar em todas, enquanto consideradas pela norma, penal ou administrativa, condutas ilícitas. Ou a lei é lei ou é letra morta, nesse caso o resultado é a anomia.


3. A atuação das Polícias Militares na persecução penal.

O modelo policial brasileiro é "sui generis" e complexo, nele coexistindo órgãos estaduais [13] encarregados da preservação da ordem pública e polícia ostensiva (polícias militares) e outros encarregados das funções de polícia judiciária e da apuração das infrações penais (polícias civis).

Numa visão mais rasteira e desfocada da realidade, assim incorrem em erro boa parte dos estudiosos ao afirmar: a polícia militar é preventiva e a polícia civil é repressiva.

3.1. A repressão criminal imediata e o paradigma da "polícia preventiva".

Não são poucos nem inexpressivos os equívocos surgidos por conta de um paradigma já enraizado e que precisa ser amputado.

Assim, dentre os juristas, TOURINHO FILHO incide nesse equívoco:

Mas enquanto a Polícia de Segurança visa a impedir a turbação da ordem pública, adotando medidas preventivas, de verdadeira profilaxia do crime, a "Polícia Judiciária" intervém quando os fatos que a Polícia de Segurança pretendia prevenir não puderam ser evitados [...] (TOURINHO FILHO, 1986, p. 163-4).

Outros pesquisadores incidem na mesma falha, como é o caso de MUNIZ (2000, p. 123), antropóloga e cientista política, que afirma: "As mencionadas atribuições são, no jargão policial, traduzidas da seguinte forma: enquanto a PM é a polícia que atua antes e durante a ocorrência de um fato típico, a Polícia Civil é aquela que intervém depois que o referido fato típico foi consumado."

Socorre-nos, todavia, a lúcida doutrina de CRETELLA JÚNIOR (1987; 171-173):

A polícia judiciária é também denominada "repressiva", nome que merece reparo porque ela não "reprime" os delitos, mas auxilia o Poder Judiciário, nesse mister. Polícia auxiliar e, porém, expressão correta. [...] Embora não seja denominação corrente nos autores especializados, denominamos "polícia mista" ao organismo estatal que acumula ou exerce, sucessiva ou simultaneamente, as duas funções, a "preventiva" e a "repressiva", como é o caso da polícia brasileira em que o mesmo agente previne e reprime. [...] No Brasil, a distinção da polícia em "judiciária" e "administrativa", de procedência francesa e universalmente aceita, menos pelos povos influenciados pelo direito inglês (Grã-Bretanha e Estados Unidos), defeituosa e arbitrária (Alcides Cruz, Direito Administrativo brasileiro, 2. ed., 1914, p. 163-164), não tem integral aplicação, porque a nossa polícia é mista, cabendo ao mesmo órgão, como dissemos, atividades preventivas e repressivas.

Não tem qualquer sentido lógico conceber que as polícias militares sejam encarregadas da prevenção criminal e as polícias civis da repressão aos delitos, quando a realidade mostra que as primeiras é que, diuturnamente, na quase totalidade dos casos, atuam na repressão de infrações penais já consumadas. O número de chamada telefônica de emergência "190" é de domínio público, tal qual o "911" norte-americano, e utilizado não para sugestões de práticas preventivas, mas para solicitação ações policiais de cunho repressivo. Por essa razão dissemos que se equivoca TOURINHO FILHO quando diz que "a "Polícia Judiciária" intervém quando os fatos que a Polícia de Segurança pretendia prevenir não puderam ser evitados" enquanto, acertadamente, CRETELLA JÚNIOR elucida a arraigada confusão terminológica ao dizer "A polícia judiciária é também denominada "repressiva", nome que merece reparo porque ela não "reprime" os delitos, mas auxilia o Poder Judiciário, nesse mister"; essa intitulada "repressão" é, na melhor terminologia, a formalização da persecução penal através dos procedimentos policiais [14].

Mas resta a questão: as polícias militares têm campo de atuação na persecução penal? Óbvio que sim; órgãos encarregados da preservação da ordem pública que são (art. 144, § 5º, da CRFB), impõe-se-lhes diante da deflagração da infração penal – que quebra essa ordem – agir na imediata repressão (prisão em flagrante do infrator) para o restabelecimento da ordem pública, assim definida como "o conjunto de regras formais, que emanam do ordenamento jurídico da Nação, tendo por escopo regular as relações sociais de todos os níveis, do interesse público, estabelecendo um clima de convivência harmoniosa e pacífica, fiscalizado pelo Poder de Polícia, e constituindo uma situação ou condição que conduza ao bem comum", nos estritos termos do Decreto nº 88.777, de 30 de setembro de 1983. Ao efetuarem prisões em flagrante, os membros das polícias militares não atuam como "qualquer do povo", tampouco como "agentes da autoridade policial", mas no estrito cumprimento de seu dever legal de restabelecer a ordem e, considerando que não detém o encargo das atividades de polícia judiciária, resta-lhes, residualmente, levar a "notitia criminis" à polícia judiciária, para a formalização cartorial.

3.2. O paradigma da "autoridade policial".

Digladiam-se nos tempos, pelos mais variados fatores, sejam culturais, jurídicos, político-institucionais etc., policiais civis (especialmente os Delegados de Polícia de carreira) e policiais militares por conta dessa malfadada expressão. Na verdade, essa batalha extrapola o ambiente dos órgãos policiais e beira os muros até mesmo do Ministério Público, quando se fala da atribuição – por vezes indevidamente confundida com prerrogativa – de agir na investigação criminal [15].

É histórico o paradigma de que os policiais militares são "agentes da autoridade policial", mas jamais autoridades. O assunto, aparentemente pueril, acaba por refletir direta e constantemente no cotidiano policial e, consequentemente, na promoção de segurança pública [16].

As origens histórico-políticas deste cenário remontam às milícias empregadas na segurança pública que ocupavam, em destaque, ainda no Brasil Colônia, papel de defesa interna e territorial frente às constantes investidas européias e que, já no Brasil República, tomavam a feição de exércitos provinciais, dada a intenção republicana de se adotar um modelo confederativo de "Estados Unidos do Brasil"; bem por isso, que o seu treinamento inicial fora dado pela Missão Francesa (1906 - Governo Jorge Tibiriçá no Estado de São Paulo). De outro lado, vê-se que a origem "judiciária" da polícia investigativa se deve ao fato de, "ab initio", as funções de Chefe de Polícia, desde a vinda da família real portuguesa para o "Reino Unido" (1808), ficarem a cargo de um Intendente-Geral, ao qual se exigia não mais que "notável saber jurídico". Mais tarde, tal função passaria a magistrados, notadamente os "Juizes de Fora". Somente em 1871, as funções de Chefe de Polícia saem das mãos dos magistrados, mas ainda permanecem nas daqueles de "notável saber jurídico", para a condução do Inquérito Policial criado pela Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1.871.

É inquestionável que a expressão "autoridade policial" empregada no Código de Processo Penal brasileiro se refira exclusivamente aos Delegados de Polícia de carreira, como dita o artigo 4º : "A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria" [17], mas segue-se em seu parágrafo único que: "A competência definida neste artigo não excluirá a de autoridades administrativas, a quem por lei seja cometida a mesma função". Tanto o é que a Lei nº 8.112/90 (Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais), ao cuidar do Processo Administrativo Disciplinar, estabeleceu que, apurado fato-crime por uma sindicância, a autoridade deva encaminhá-la diretamente ao Ministério Público [18].

Também se observa que, em se tratando de crimes militares, foge sua apuração à atribuição dos delegados de polícia de carreira por expressa disposição constitucional [19]. Igualmente, quando se cuida de apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, a atribuição constitucionalmente migra para a Polícia Federal (Artigo 144, § 1º, I).

O ponto toma relevo prático, quando se contrapõe a "autoridade policial" e os chamados "agentes da autoridade". Nalguns casos a exegese é absolutamente despida de bases sólidas, tomando-se os policiais militares por agentes da autoridade policial (delegado de polícia).

Ora, o Estado exerce o poder conferido por meio de órgãos, e cada qual destes é estruturado em cargos de execução e de direção para o cumprimento de suas atribuições; tal qual não é razoável que se tenha o delegado de polícia como "agente do representante do Ministério Público" ou mesmo da autoridade judiciária, pelo simples fato de que seu trabalho deságua nas mãos destes últimos, a lógica elementar não permite concluir que os policiais militares, no exercício da função de policiamento, sejam considerados "agentes da autoridade policial" como querem alguns [20]. O mesmo sofisma nos faria crer que qualquer do povo, que dê voz de prisão a um criminoso [21], seria também "agente da autoridade policial". Quando o policial militar prende alguém em flagrante delito e o conduz à presença da autoridade policial para autuação em flagrante, age no cumprimento de sua função constitucional, preservando a ordem pública através da repressão imediata ao delito.

Agentes da autoridade policial são aqueles que, nas polícias civis, são encarregados da execução das funções de apuração das infrações penais (investigadores, detetives ou comissários, conforme a designação) e de formalização dos atos de polícia judiciária (escrivães de polícia, datiloscopistas etc.), porquanto direta e funcionalmente subordinados ao Delegado de Polícia.

3.3. A lavratura de Termos Circunstanciados por policiais militares.

De igual forma, quando se cuida dos Juizados Especiais Criminais, estes devem ser encarados como, na fala do Desembargador Sidnei Benetti, um sistema [22] de persecução penal guiado por princípios [23], procedimento [24] e institutos [25] próprios não encontrados no Código de Processo Penal.

Desconstruídos os paradigmas que induzem à tese de que as funções da Polícia Militar são meramente preventivas (3.1) e que os policiais militares seriam agentes da autoridade policial militar (3.2.), têm-se em reconstrução um novo paradigma: "Autoridade policial, na melhor interpretação do art. 69 da Lei nº 9.099/95, é também o policial de rua, o policial militar, não constituindo, portanto, atribuição exclusiva da polícia judiciária a lavratura de Termos Circunstanciados. O combate à criminalidade e a impunidade exigem atuação dinâmica de todos os Órgãos da Segurança Pública" ("Carta de São Luís do Maranhão", Colégio dos Desembargadores Corregedores Gerais de Justiça do Brasil, reunidos no XVII Encontro Nacional, realizado em São Luiz/MA, em 04 e 05 de março de 1999).

No mesmo sentido vieram o VII Encontro Nacional de Coordenadores de Juizados Especiais, havido em Vila Velha, Espírito Santo, em 27 de maio de 2000, ocasião em que ficou assentado o enunciado nº 34 ("Atendidas as peculiaridades locais, o termo circunstanciado poderá ser lavrado pela Polícia Civil ou Militar"), a Confederação Nacional do Ministério Público assentou seu posicionamento: "A expressão ''autoridade policial'', prevista no art. 69 da Lei n° 9.099/95 abrange qualquer autoridade pública que tome conhecimento da infração penal no exercício do poder de polícia". A Comissão Nacional de Interpretação da Lei n. 9.099/95 assim deliberou sobre a questão:

"[...] no que diz respeito às infrações penais de menor potencial ofensivo, qualquer agente público que se encontre investido da função policial, ou seja, de poder de polícia, pode lavrar o termo circunstanciado ao tomar conhecimento do fato que, em tese, possa configurar infração penal, incluindo-se aqui não só as polícias federal e civil, com função institucional de polícia judiciária da União e dos Estados, respectivamente (art. 144, § 1º, inciso IV, e § 4º da CF), como às polícias rodoviária federal, polícia ferroviária federal e polícias militares (art. 144, II, III e V, da CF). Embora estas últimas não tenham atribuições para a lavratura do auto de prisão em flagrante de competência da polícia civil e federal, há entendimento de que a lei se refere a todos os órgãos encarregados pela Constituição Federal da defesa da segurança pública, para que exerçam plenamente sua função de restabelecer a ordem e garantir a boa execução da administração, bem como do mandamento constitucional de preservação da ordem pública (art. 5º, § 5º da CF)" (MIRABETE, Júlio Fabrini. Juizados Especiais Criminais. São Paulo: Atlas, 1997, p. 60).

Em cima desse novo pensamento jurídico surgiram nos Estados de Santa Catarina [26], Paraná [27], Rio Grande do Sul [28], São Paulo [29], Mato Grosso do Sul [30] e Alagoas [31], provimentos de tribunais e atos normativos do Poder Executivo destinados a sedimentar a atuação das Polícias Militares junto aos Juizados Especiais Criminais.

Em tributo à história merecem destaque, por inaugurarem essa nova era, os Desembargadores Sebastião Costa Filho, Wasgington Luiz Damasceno (TJAL), Oto Luiz Sponholz (TJPR), Rubens Bergonzi Bossay (TJMS), Márcio Martins Bonilha, Álvaro Lazzarini, Luís de Macedo (TJSP), Eder Graf, Francisco José Rodrigues de Oliveira Filho (TJSC) e, como Oficiais das Polícias Militares, os Coronéis Rui César Melo, Roberto de Oliveira Vale, David Antônio de Godoy (SP), Ivan de Almeida (MS), Ronaldo Antônio de Menezes (RJ), José Edmilson Cavalcante, Adroaldo Goulart (AL), Marlon Jorge Teza e Eliésio Rodrigues (SC), os Tenentes-coronéis ALTAIR Freitas da Cunha, Antônio Penna Rey (RS) e os Capitães Marcello Martinez Hipólito, Sinval Santos da Silveira Júnior (SC), Cláudio Roberto Monteiro Ayres (MS) e Mauro Roberto Chaves (SP) [32], todos sustentados pela doutrina de Ada Pelegrini Grinover, Antônio Magalhães Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes, Luiz Flávio Gomes, Alexandre de Moraes, Alexandre Pazziglini Filho, Giampaolo Poggio Smânio, Luiz Fernando Vaggione, Joel Dias Figueira Júnior e Maurício Antônio Ribeiro Lopes, Rolf Koerner Junior e Damásio Evangelista de Jesus, dentre outros.

3.3.1. O preparo técnico-jurídico do policial militar.

Na contramão da verdade, insistem alguns que os policiais militares não teriam formação técnico-jurídica para habilitá-los à lavratura de termos circunstanciados. Eles surgem dentre Delegados de Polícia [33], alguns magistrados [34] e poucos doutrinadores [35].

Não se discute que o bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais, exigido aos Delegados de Polícia de carreira na maioria dos Estados da federação, agrega valor a esses profissionais, mas a dúvida que fica é: o bacharelado em Direito basta; e é o adequado ao profissional de segurança pública?

Pelo que ditam as normas do Ministério da Educação [36], "o curso de graduação em Direito deverá assegurar, no perfil do graduando, sólida formação geral, humanística e axiológica, capacidade de análise, domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, aliada a uma postura reflexiva e de visão crítica que fomente a capacidade e a aptidão para a aprendizagem autônoma e dinâmica, indispensável ao exercício da Ciência do Direito, da prestação da justiça e do desenvolvimento da cidadania". O profissional do Direito não se confunde com o da segurança pública, ainda que a tradição brasileira tente impor tal confusão.

A Secretaria Nacional de Segurança Pública indica quatro eixos articuladores [37] elementares à formação do profissional de segurança pública: 1. O sujeito e as interações no contexto da segurança pública; 2. Sociedade, poder, Estado, espaço público e segurança pública; 3. Ética, cidadania, Direitos Humanos e segurança pública e, por fim, 4. Diversidade, conflitos e segurança pública.

Abordando a formação dos Soldados da Polícia Militar de Minas Gerais, SANTOS (2000) comenta:

"Em uma de suas reuniões semestrais, em 1997, o CNCG [38] aprovou o currículo de formação básica para o soldado de polícia militar, após analisar as grades curriculares de todos os estados da Federação. Nessa ocasião, foi percebido que as PMs mais bem estruturadas, dentre elas a de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul e Paraná, tinham os currículos mais ricos em conteúdo e disciplinas. Em contrapartida, algumas polícias militares de estados do Norte e Nordeste do País dispunham de currículos pobres, que comprometiam a boa formação PM".

A grade curricular para a formação de um soldado da Polícia Militar, apresentada pelo CNCG, conta com um total de 1.425 horas-aula, dentre elas 200 reservadas ao ensino do Direito. A título de exemplo, o Estado de Minas Gerais reserva ao ensino do Direito 305 horas-aula de um total de 2.195 despendidos na formação de um soldado [39]; no Estado da Paraíba são 241 horas-aula atribuídas ao ensino do Direito, de um total de 930 [40].

De outro lado, a formação dos Oficiais [41], em curso de nível superior, tem carga horária e conteúdo ainda mais robustecido. No Estado de São Paulo, o Oficial recebe formação pela Academia de Polícia Militar do Barro Branco, onde "6.243 horas-aula que garantem a orientação jurídica, administrativa e social indispensável ao perfil do homem e do policial comunitário, responsável direto por institutos prescritos na Carta Magna (preservação da ordem pública e polícia ostensiva) e conseqüentes garantias dos direitos do cidadão" [42]. Na Polícia Militar do Distrito Federal, o Curso de Formação de Oficiais tem duração de 3 anos, com carga de 4.548 horas-aula.

Para que se tenha um parâmetro de comparação de formação jurídica, o curso de Direito da Faculdade de Franca (SP) tem um total de 4.388 horas-aula, sendo reservadas às disciplinas de Direito Penal e Direito Processual Penal, estas intimamente ligadas à função policial, 720 horas-aula [43].

MUSUMECI (2000), tratando da formação dos policiais cariocas, salienta a ênfase dada à formação jurídica do Oficial da Polícia Militar e dos Delegados de Polícia e, ao mesmo tempo, a critica como sendo uma forma de elitização das cúpulas policiais:

"Tão forte é o peso da formação jurídica que o(a) policial que conclua o CFO [44] está habilitado(a) a obter o bacharelado em Direito freqüentando apenas mais dois anos do curso universitário (cuja duração total é de 5 anos). Essa ênfase curricular foi reforçada em 1996, por decisão da Secretaria de Segurança Pública [45] (Veiga et al., 1997).

[...]

"Mas, além das duas diferentes portas de ingresso na carreira policial, separadas pelo nível de escolaridade, o "fosso" se prolonga e se cristaliza na ênfase jurisdicista dada ao Curso de Formação de Delegados da PCERJ (assim como ao de Formação de Oficiais na PMERJ), que reflete menos as exigências operacionais e administrativos da atividade policial do que a posição subalterna das polícias em relação ao sistema judiciário e a tendência da cúpula policial a diferenciar-se da sua "tropa" ou da sua "tiragem" indentificando-se, pela formação jurídica, com a camada superior do sistema em que está inserida". [46]

Pode-se dizer que, mais fortemente a partir da Constituição de 1988, a formação dos policiais militares, sejam Oficiais ou Praças [47], passou a ser cada vez mais reforçada com conteúdo jurídico, e reformuladas as disciplinas técnico-policiais, mitigando-se sobremaneira aquelas essencialmente militares para outras de cunho eminentemente policial.

Ora, se surgem nos meios acadêmicos até críticas à suposta hipervalorização da formação jurídica, como se pode admitir que tais profissionais não tenham habilitação suficiente ao mais elementar exercício de subsunção do fato à norma jurídico-penal? O que se exige do policial, seja civil ou militar, em matéria de domínio jurídico, para o exercício de suas funções de repressão criminal é, basicamente, uma elementar análise de tipicidade, de excludentes da ilicitude e de normas procedimentais de registro de infrações penais. Outras habilidades exigidas às carreiras jurídicas [48], como, v.g., domínio de conceitos e da terminologia jurídica, adequada argumentação, interpretação e valorização dos fenômenos jurídicos e sociais, postura reflexiva, visão crítica etc. não são essenciais ao profissional de segurança pública, ainda que mal não lhe façam.

Vem corroborar com isto o fato de que a Emenda Constitucional nº 19/98 removeu do art. 241 de nossa Carta Política os Delegados de Polícia do rol das "carreiras jurídicas".

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Sobre o autor
Azor Lopes da Silva Júnior

Doutorando em Sociologia (UNESP), Mestre em Direito (UNIFRAN), Professor de Direito Penal e Direito Constitucional.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA JÚNIOR, Azor Lopes. A face oculta da segurança pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 12, n. 1486, 27 jul. 2007. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/10203. Acesso em: 29 mar. 2024.

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