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Considerações sobre o reexame necessário no processo civil brasileiro

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06/05/2008 às 00:00
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Resumo: O texto remete a um breve histórico da remessa necessária, apontando as diversas normas que a prevêem no nosso ordenamento jurídico, além do art. 475 do Código de Processo Civil, com uma abordagem das suas principais características e natureza jurídica, desaguando na velha polêmica estabelecida em torno do princípio da "non reformatio in pejus". O autor defende a impossibilidade de agravamento da situação do ente público em sede de remessa necessária, especialmente por força do princípio da adstrição ou da congruência (arts. 128 e 460 do CPC), sempre evidenciando o entendimento expressado no âmbito da doutrina e da jurisprudência.

Palavras-chaves: Fazenda Pública; remessa necessária; non reformatio in pejus; interesse público.

Sumário: 1 Introdução; 2 Evolução histórica; 3 Denominações; 4 Natureza jurídica; 4.1 A remessa obrigatória e as espécies recursais; 4.1.1 O aspecto da voluntariedade dos recursos; 4.1.2 Os pressupostos recursais; 4.1.3 A reapreciação da matéria e os efeitos suspensivo e devolutivo; 4.1.4 Legitimidade para a remessa necessária; 4.1.5 Os princípios recursais; 4.1.6 A remessa necessária como condição de validade e de eficácia da sentença; 5 O objeto do reexame necessário e as suas hipóteses de cabimento; 5.1 O art. 475 do CPC após as alterações da lei 10.352/01; 5.2 Outras hipóteses de remessa necessária; 6 A remessa necessária no contexto das reformas das decisões judiciais; 6.1 O princípio da non reformatio in pejus; 6.2 O princípio da non reformatio in pejus e a remessa necessária; 7 Conclusão; 8 Referências.


1. INTRODUÇÃO

Predomina entre nós a regra segundo a qual, esgotados os recursos possíveis, ou decorrido o prazo de sua interposição, as decisões judiciais fazem coisa julgada, e aí se tornam imutáveis. Aliás, essa é a mais típica das características da jurisdição. E, uma vez transitada em julgado, a decisão judicial passa a produzir plenamente seus efeitos.

Mas a essa regra, ou regras, o ordenamento jurídico opõe algumas exceções. A ação rescisória, por exemplo, observado o prazo decadencial de dois anos, tem o condão de revolver a matéria, embora já estando sob o manto da coisa julgada.

Uma outra exceção emerge do art. 475 do CPC, o qual relaciona nos seus incisos I e II situações em que a sentença, conquanto já decorrido o prazo de interposição do competente recurso, não alcança o trânsito em julgado, e não produzirá efeito algum antes de ser reapreciada pelo Tribunal, situação que caracteriza o chamado duplo grau obrigatório de jurisdição, nominado pela doutrina de "remessa obrigatória" ou simplesmente "reexame necessário" – só alcançando as sentenças, na forma do art. 162, § 1º, do CPC, nunca as decisões interlocutórias.

Tal fenômeno era chamado de "apelação de ofício" pelo Código de Processo Civil de 1939, consistindo em condição de eficácia da sentença, que não fará coisa julgada antes de reexaminada pelo Tribunal. Ou seja, a qualquer tempo a matéria poderá ser revolvida, e se vierem a ser satisfeitos os termos da sentença sem a apreciação do órgão revisor, essa satisfação estará eivada de vício insanável.

Conforme veremos, há ainda muita controvérsia envolvendo alguns aspectos do reexame necessário, sobretudo no tocante à sua natureza jurídica, alguns doutrinadores entendendo tratar-se de uma espécie recursal, o que é combatido por outros. Desse questionamento vem a indagação: os seus efeitos estão restritos a beneficiar a Fazenda Pública ou a qualquer das partes? Esta indagação constitui o objeto nuclear deste estudo, na medida em que, na hipótese de o Tribunal vir a agravar a situação da Fazenda Pública pela via da remessa necessária, para uns estaria caracterizada a reformatio in pejus, o que seria vedado pelo ordenamento processual vigente; outros, ao contrário, entendem perfeitamente possível tal agravamento.

Tecidas essas considerações, passaremos à análise do reexame necessário, seu disciplinamento em nosso ordenamento jurídico, evolução histórica, natureza jurídica, terminologia e a possibilidade de aplicação do princípio non reformatio in pejus, no que também buscaremos os apontamentos da doutrina e da jurisprudência sobre o tema.


2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA

O instituto do reexame obrigatório adotado por nosso ordenamento jurídico tem suas origens encravadas no Direito Lusitano, datada a lei que o criou de 12 de março de 1355.

Num primeiro momento, a sua aplicação se restringiu ao ambiente das questões processuais penais, com a finalidade de conter eventuais excessos da parte dos magistrados quando do julgamento de matéria criminal. Logo mais, com esses mesmos fins, integraria as Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, então chamado de "apelação ex officio".

No Brasil, conforme anota Jorge Tosta (2001, p. 12), a primeira norma jurídica a consagrar o referido instituto é datada de 04/10/1831 (Lei nº 04/1831, art. 90), impondo ao juiz a obrigação de apelar nas causas em que restasse vencida a Fazenda Pública. Nesse momento histórico, ao recorrer de ofício, o juiz operava efetivamente na defesa dos interesses da Fazenda Pública, assemelhando-se a uma espécie de causídico desta, e o que se buscava objetivamente era a reforma do julgado, e não a sua simples revisão pelo Tribunal no sentido de aperfeiçoamento da sentença, como é hoje.

Mais de um século depois de introduzido no ordenamento jurídico brasileiro, o reexame obrigatório integraria o nosso primeiro grande diploma de normas procedimentais, o Código de Processo Civil de 1939. Trinta anos depois, o Decreto-Lei nº 779/1969 disciplinaria a sua aplicação também no âmbito do Processo do Trabalho.

O Código de Processo Civil de 1939 assim dispunha:

Art. 822 – A apelação necessária ou ex officio será interposta pelo juiz mediante simples declaração na própria sentença.

Parágrafo único. Haverá apelação necessária:

I – Das sentenças que declararam a nulidade de casamento.

II – Das que homologam o desquite amigável.

III – Das proferidas contra a União, o Estado ou o Município.

Não é difícil notar a realidade social insculpida no texto revogado, sob a histórica preponderância do princípio inquisitório, e a importância do poder religioso, chegando este a se confundir com o próprio poder estatal. A previsão era nitidamente autoritária, deixando os direitos dos cidadãos comuns em posição infinitamente inferior, revelando um total desprezo aos princípios do contraditório, da isonomia e do devido processo legal.

Daí em diante, como bem noticia Samir José Caetano Martins1, diversas leis extravagantes trouxeram disposições semelhantes, sempre associadas à tutela do erário, citando a Lei nº 2.664, de 03/12/1955, que dispõe sobre ações judiciais decorrentes de atos das Mesas das Câmaras do Congresso Nacional e da Presidência dos Tribunais Federais; a Lei nº 6.014, de 27/12/1973, que inseriu a previsão do duplo grau obrigatório na Lei nº 1.533, de 31/12/1951 (Lei do Mandado de Segurança) e na Lei nº 4.717, de 29/07/1965 (Lei da Ação Popular); a Lei nº 6.071, de 03/07/1974, que inseriu a previsão do duplo grau obrigatório no Decreto-Lei nº 3.365, de 21/07/1941 (Lei Geral das Desapropriações) e a Lei nº 8.437, de 30/06/1992 (que dispõe sobre medidas cautelares contra atos do Poder Público). Em 17 de abril de 1963, pelo Decreto nº 3.069, tal instituto viria a se estender também às causas matrimoniais.

O legislador de 1973, seguindo de perto a evolução político-social e atentando para uma linguagem tecnicamente mais satisfatória aos intentos jurídicos, reeditou o instituto do "reexame necessário" ou "remessa oficial", também conhecida por "remessa necessária" e "duplo grau de jurisdição obrigatório", outrora "recurso de ofício" ou "apelação de ofício". O fato é que, com o novo Código de Processo Civil, o instituto em destaque ganhou feições bem mais apropriadas aos preceitos processuais antes ignorados.

Com efeito, no texto original do Código de 1973 ainda figurou a previsão do reexame necessário de sentença que anulasse casamento (art. 475, I), expressando a manutenção da influência do poder religioso. Mas a revisão produzida pela Lei nº 10.352, de 26/12/2001, excluiu tal previsão, no que o legislador também teve o cuidado de estabelecer situações limitadoras, como consta do atual texto:

Art. 475. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença: (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001).

I - proferida contra a União, o Estado, o Distrito Federal, o Município, e as respectivas autarquias e fundações de direito público; (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001).

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução de dívida ativa da Fazenda Pública (art. 585, VI). (Redação dada pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001).

§ 1º Nos casos previstos neste artigo, o juiz ordenará a remessa dos autos ao tribunal, haja ou não apelação; não o fazendo, deverá o presidente do tribunal avocá-los. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

§ 2º Não se aplica o disposto neste artigo sempre que a condenação, ou o direito controvertido, for de valor certo não excedente a 60 (sessenta) salários mínimos, bem como no caso de procedência dos embargos do devedor na execução de dívida ativa do mesmo valor. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001)

§ 3º Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em jurisprudência do plenário do Supremo Tribunal Federal ou em súmula deste Tribunal ou do tribunal superior competente. (Incluído pela Lei nº 10.352, de 26.12.2001).

Vê-se que é notável a evolução, a começar pelo abandono à antiga terminologia.


3. DENOMINAÇÕES

Como declinado, muitas denominações têm sido atribuídas ao instituto do reexame necessário, ora sendo chamado de remessa obrigatória, ora de remessa oficial, remessa necessária, recurso de ofício (ou ex officio), apelação de ofício, e ainda de duplo grau de jurisdição obrigatório.

Todas essas expressões buscam apenas traduzir o modo como o instituto se lança concretamente no mundo jurídico, alcançando as hipóteses a que se destina, por norma revestida de imperatividade absoluta, tendo em vista o interesse público, obrigando o juiz a submeter seu entendimento singular à avaliação de um entendimento colegiado, buscando amparar não exatamente o indivíduo, mas o interesse de toda a sociedade, concretizado na prestação jurisdicional que venha a conter o maior grau de correção possível.

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Até mesmo por força de hábito, todas essas denominações ainda são bastante utilizadas. Embora algumas se afigurem impróprias, em face do atual tratamento normativo, doutrinário e jurisprudencial, não há no meio jurídico quem desconheça qualquer delas. Entretanto, como estamos a falar de um instituto jurídico, portanto, inserto no âmbito de uma ciência, impõe-se que sejamos o mais didático e objetivo possível, embora nunca descuidando do cunho científico, eis que no estudo de qualquer ciência os nomes dos seus institutos têm sempre fundamental relevo.

Com efeito, os institutos tanto devem ter um nome específico, quanto esse nome deve se situar o mais próximo possível da sua natureza e do seu objeto. Nesse diapasão, desde logo afastaremos as expressões "recurso de ofício" (ou ex officio) e "apelação de ofício", como assim já procedeu o Legislador de 1973, abrindo mão das terminologias adotadas pelo Código anterior.

Bom ressaltar que o Código de Processo Civil de 1973 não atribuiu denominação alguma ao instituto em comento, limitando-se a descrever as suas hipóteses de incidência, conforme se nota pela disposição do art. 475, cuja atual redação é fruto da Lei nº 10.352, de 26/12/2001. Por outro lado, também não acolheu a terminologia adotada pelo Código revogado (apelação ex officio). Diante disso, a doutrina já foi quem se incumbiu de lhe atribuir nomes, ora chamando-o de reexame necessário, ora de remessa necessária e ainda de reexame obrigatório, denominações estas que expressam o mesmo grau de significância, adequando-se perfeitamente ao seu objeto, à sua natureza jurídica e ao seu conteúdo.

"Reexame necessário" parece-nos a expressão mais conveniente, inclusive, sendo a mais preferida da doutrina e da jurisprudência.


4. NATUREZA JURÍDICA

A definição da natureza de um dado instituto inicia-se com a tentativa de sua identificação perante os demais institutos que lhes são similares, considerando o seu universo científico. Nisto, parte-se de um procedimento de simples comparação, individualizando-o e detectando suas particularidades e características mais singularizadas, até se saber em que ramo ou sub-ramo da ciência ele se insere e a que regras se submete. Consiste, portanto, tal procedimento em se definir a real posição do instituto considerado dentro de um sistema, categorizando-o, identificando seu endereçamento no universo em que se encontra, tudo em face do seu conteúdo e das suas características.

Sendo assim, o universo dos institutos jurídicos que poderíamos dizer similares ao reexame necessário é aquele no qual se encontram os recursos. Aliás, a primeira idéia que se tem acerca do reexame necessário é a de que se trata de uma espécie recursal. E isto é inevitável, haja vista o tradicional tratamento dado ao referido instituto pelo ordenamento jurídico brasileiro, bem assim pelo seu próprio objeto, consistente na reanálise do julgado pelo órgão revisor, objeto este muito peculiar aos dos recursos.

É de se lembrar que no Código de Processo Civil de 1939 o reexame necessário foi disciplinado com feições de recurso, inclusive figurando naquele Código entre as espécies recursais (art. 822) e com nome de recurso (apelação ex officio), o que lhe rendeu muitas críticas durante toda a sua vigência.

Atento a esse equívoco teórico-legislativo, como já ressaltado, o legislador de 1973 procedeu às devidas retificações, não somente alterando a terminologia do instituto em comento, mas também a sua localização no contexto do novo Código, inscrevendo-o no Título VIII, distinto, portanto, daquele destinado a tratar dos recursos (Título X).

4.1. A remessa obrigatória e as espécies recursais

Conforme vimos, o novo CPC caminhou no sentido de exterminar a controvérsia que girava em torno da natureza jurídica da remessa oficial, porquanto, dentre os muitos reclames da doutrina, os mais comoventes acentuavam faltarem-lhe os requisitos próprios dos recursos, que os tornam os verdadeiros instrumentos de impugnação das decisões judiciais adotados pelo nosso ordenamento jurídico. Não afastou de todo as controvérsias, mas admitamos que amenizou sobremaneira os debates e as críticas.

4.1.1. O aspecto da voluntariedade dos recursos ausente na remessa necessária

A bem da verdade, a nova disposição legal sobre já seria mais do que suficiente para privar do reexame necessário a idéia de similaridade com as espécies recursais. Basta a simples observância da sistemática adotada pelo legislador de 1973 para concluir-se que foi clara a intenção de distanciá-lo dos recursos em geral, inscrevendo-os em títulos distintos. Todavia, há ainda quem defenda tratar-se de uma autêntica espécie de recurso.

Pela simples definição de "recursos" não é fácil de se delimitar a exata distinção entre estes e o reexame necessário. Isto porque todos têm basicamente o mesmo alcance prático, encampando também o mesmo conteúdo teórico.

A doutrina expressa diversos definições para os recursos. Uns os definem como remédios processuais postos pela lei à disposição das partes, do Ministério Público ou de terceiros, submetendo a decisão judicial a um novo julgamento por órgão judicial hierarquicamente superior àquele que a proferiu.

Frederico Marques (2003, p. 381), por exemplo, ao definir recurso, pontifica:

Um procedimento que se forma para que seja revisto pronunciamento jurisdicional contido em sentença, decisão interlocutória ou acórdão. O mencionado autor prossegue (ob. cit. p. 387), expressando que se trata de um "quase-recurso", inclusive, com efeito devolutivo e efeito suspensivo e, em relação ao julgamento nele proferido, aplicam-se as regras concernentes à apelação, pois se trata de remédio destinado a rever sentenças de primeira instância. Por isso mesmo, o vencido, ainda que não tenha interposto apelação voluntária, pode entrar com embargos infringentes, se for o caso.

Para Humberto Theodoro Júnior (1992, p. 542), na sua acepção técnica e restrita, o recurso é um "meio ou poder de provocar o reexame de uma decisão, pela mesma autoridade judiciária, ou por outra hierarquicamente superior, visando obter a sua reforma ou modificação, ou apenas a sua invalidação".

Alexandre Freitas Câmara (2007, p. 55), citando Babosa Moreira, acentua que recurso é "o remédio voluntário idôneo a ensejar, dentro do mesmo processo, a reforma, a invalidação, o esclarecimento ou a integração de decisão judicial que se impugna".

Da análise de todas essas citações podemos destacar, sobretudo, que os recursos são movidos pela interesse da parte, daí a consagração da alcunha "remédio voluntário", o que, efetivamente não se observa em relação ao reexame necessário.

Na verdade, a doutrina é amplamente majoritária no sentido de negar natureza recursal ao reexame necessário, no que citamos Nelson Nery Júnior e Rosa Nery (2003, p. 813), para quem a natureza jurídica do referido instituto é de "condição de eficácia da sentença que, embora existente e válida, somente produzirá efeitos depois de confirmada pelo Tribunal".

4.1.2. Os pressupostos recursais

Bom, nessa idéia de distinção, é importante invocar os chamados requisitos de admissibilidade dos recursos (alguns preferem pressupostos recursais) para que se dê o provimento jurisdicional, indispensáveis, pois, aos recursos e ausentes no reexame necessário. Tais requisitos (ou pressupostos) são classificados em intrínsecos e extrínsecos.

Os primeiros operam como prolongamento das condições da ação, tendo em vista que o direito de recorrer se traduz em expressa manifestação do direito de ação. Os pressupostos intrínsecos, portanto, estão relacionados com o cabimento do recurso, a legitimação das partes e com interesse de agir (interesse de recorrer).

Já os requisitos extrínsecos operam como prolongamento dos pressupostos processuais. São fatores externos à decisão que se busca reformar, mais voltados, pois, para as questões procedimentais, atinentes à tempestividade, ao preparo, à inexistência de fato impeditivo ou extintivo do direito de recorrer; à regularidade formal etc.

Enquanto o regular processamento dos recursos em geral depende da caracterização dos requisitos recursais, no reexame necessário não se cogita de tais requisitos. O juiz prolator da sentença, ao contrário do que ocorre na hipótese de recurso, apenas remete os autos ao órgão ad quem, por simples despacho, por força da disposição legal, sem perquirir os pressupostos recursais.

4.1.3. A reapreciação da matéria e os efeitos suspensivo e devolutivo

Se tomássemos como referencial apenas a reapreciação da matéria e a presença dos efeitos suspensivo e devolutivo, até seria possível enquadrar o reexame necessário nas definições de recursos. É que estes parecem-nos ser os únicos pontos em comum entre os recursos e o reexame necessário. Já as particularidades são inúmeras, tornando-os por demais distintos, impedindo que lhes sejam dados tratamentos idênticos.

4.1.4. Legitimidade para a remessa necessária

A análise de um único requisito atinente aos recursos já seria bastante para evidenciar a distinção entre estes e o reexame necessário.

Vejamos, por exemplo, o tocante à legitimidade para a interposição do recurso. Nos termos do art. 499 do CPC, detêm legitimidade para recorrer a parte vencida, o terceiro prejudicado (entenda-se terceiro interessado) e o Ministério Público.

No caso do reexame necessário, podemos dizer que a legitimidade recai sobre o próprio juiz prolator da sentença, a quem caberá a iniciativa de envio dos autos ao juízo ad quem. E mais, esta legitimidade se dá exclusivamente por força de lei, e não por prerrogativa ou ônus.

4.1.5. Os princípios recursais

Os princípios recursais constituem outro ponto de distinção entre os recursos e a remessa necessária.

Sobre os recursos incidem diversos princípios específicos, como o princípio da unicidade ou da singularidade, segundo o qual para cada pronunciamento jurisdicional a previsão é de uma única espécie recursal; o princípio da taxatividade, garantindo que toda espécie recursal deve estar prevista em lei; o princípio da fungibilidade, que permite, no caso de dúvida objetiva, o conhecimento de um recurso por outro; o já anunciado princípio da voluntariedade, que exige a iniciativa da parte; o princípio non reformatio in pejus, pelo qual não é permitido agravar a situação do recorrente. Enfim, são diversos os princípios aplicáveis aos recursos. E como já destacado, tais princípios não são aplicados ao reexame necessário.

4.1.6. A remessa necessária como condição de validade e de eficácia da sentença

Como já declinado, é amplamente majoritário o entendimento que nega ao reexame necessário a natureza de recurso. Tal entendimento partiria do próprio legislador de 1973, que o deslocou do capítulo pertinente aos recursos para o capítulo concernente à sentença e à coisa julgada.

Desse modo, afastada a natureza recursal e reconhecida a singularidade do reexame necessário, a conclusão da doutrina é de que se trata de um instituto sui generis, cuja natureza jurídica é de elemento condicional da eficácia da sentença, e não de uma espécie de recurso, bastando mencionar a ausência do elemento volitivo, indissociável dos recursos em geral.

Aliás, enfatiza Nelson Nery Júnior (2003, p. 813) que à remessa necessária faltam a voluntariedade, a tipicidade, a dialeticidade, o interesse em recorrer, a legitimidade, a tempestividade e o preparo, características e pressupostos de admissibilidade dos recursos. De outro modo, nenhum dos princípios recursais é aplicados à remessa obrigatória.

Há, porém, quem entenda tratar-se o reexame necessário de uma autêntica espécie recursal, a exemplo de Sérgio Bermudes, em sua obra Comentários ao Código de Processo Civil, 2ª ed., vol. VII, São Paulo: RT, 1977, pp. 32-33, citado por Alexandre Câmara (2007, p. 3), que o acompanha nesse entendimento. Ambos, porém, fazem parte de corrente minoritária.

Em suma, os verdadeiros meios de impugnação das decisões judiciais são os recursos. O reexame necessário não. Este é apenas condição de validade e eficácia da sentença nas causas em que seja expressamente consignada a sua incidência, nos termos do CPC, art. 475, e das demais hipóteses previstas no ordenamento jurídico. A exceção, especialmente no tocante à eficácia, flui da Lei 1.533/51, art. 12, parágrafo único, em se tratando de ação de mandado de segurança, em que a sentença produzirá efeitos de imediato, com a sua publicação, antes mesmo da remessa dos autos ao Tribunal para o reexame necessário.

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Sobre o autor
Clemilton da Silva Barros

Advogado da União. Mestre em Direito e Políticas Públicas. Especialista em Direito Processual Civil, em Direito do Trabalho e em Direito Processual do Trabalho, Professor da Universidade Estadual do Piauí. Autor jurídico e literário.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROS, Clemilton Silva. Considerações sobre o reexame necessário no processo civil brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1770, 6 mai. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11235. Acesso em: 28 mar. 2024.

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