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Interceptação telefônica de advogado.

Evolução legislativa e o advento da Lei nº 11.767/08

27/08/2008 às 00:00
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A Lei 9296/96 em seu artigo 1º, faz referência a "interceptação de comunicações telefônicas de qualquer natureza". No entanto, mister se faz atentar para a característica restritiva do texto legal, imprimindo a devida interpretação às suas locuções.

A exegese neste sentido, não deve resumir-se ao aspecto técnico que procura delimitar o significado de "comunicação telefônica de qualquer natureza". Pensamos ser importante a definição também com relação ao conteúdo dessas comunicações, vislumbrando nos contatos entre cliente e advogado o principal limite à ingerência da lei ordinária, sob pena de violação à ampla defesa e ao devido processo legal (art. 5º, LIV e LV, CF).

Impõe-se a questão como "uma ''ponderação de valores'': entre o direito à prova e, em contrapartida, a proteção de certas atividades reconhecidamente úteis e necessárias à vida social, o ordenamento privilegia estas últimas, reconhecendo que a possível exposição de fatos ocorridos nas relações profissionais, ou de crença religiosa, colocaria em risco a própria normalidade de atuação dos envolvidos." [01]

Greco Filho [02] salienta a impossibilidade de interceptação legal sempre que envolvido, "além do sigilo da comunicação telefônica ( ... ) outro tipo de sigilo, como, por exemplo, o sigilo profissional, como ocorre na conversa do suspeito com o seu advogado."

Congruente a manifestação de Raúl Cervini [03]: "Es el caso del secreto profesional del abogado. Las comunicaciones de estos profesionales com sus clientes no podrán resultar afectadas por obra de la resolución judicial prevista em el precepto constitucional, pues este tipo de secreto profesional está específicamente al servicio de Derecho a la Defensa, que resulta intangible como garantía central que es de la posición jurídica del cliente concernido."

Segundo Alberto Rollo [04] "a escuta de telefones de advogados fere a lei de regência, fere o sigilo que deve imperar entre clientes e advogados e ofende toda a classe..."

Ademais, é de clareza ímpar que a integração da Lei 9296/96 com a Lei 8906/94 ( Estatuto da OAB ), somente pode levar a tal conclusão.

Estabelece o primeiro diploma em destaque o procedimento legal para a regular realização dessa diligência apuratória, determinando a necessidade de ordem judicial e a fundamentação que sempre deverá estar presente desde o pedido até a concessão da ordem, considerando a excepcionalidade da medida.

Por seu turno, a Lei 8906/94 ( Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil ), determina em seu artigo 7º, inciso II, que é direito do advogado ter respeitada, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional "a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, bem como de seus instrumentos de trabalho, de sua correspondência escrita, eletrônica, telefônica e telemática, desde que relativas ao exercício da advocacia". O Parágrafo 6º. do mesmo artigo supra mencionado excepciona a garantia por ordem judicial fundamentada quando "presentes indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado". Nesse caso o juiz deverá expedir Mandado de Busca "a ser cumprido na presença de representante da OAB sendo, em qualquer hipótese, vedada a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes". No entanto, tal proteção não se estende "aos clientes do advogado averiguado que estejam sendo formalmente investigados como seus partícipes ou co – autores pela prática do mesmo crime que deu causa à quebra da inviolabilidade" (nova redação dada pela Lei 11.767/08).

Verifica-se "prima facie" que o dispositivo somente excepciona a hipótese de busca e apreensão, mesmo assim condicionando sua realização ao acompanhamento de um representante da OAB, sendo notória a intenção de dispensar ao advogado um tratamento diferenciado, motivado pela necessidade de conferir-lhe garantias que possibilitem o livre exercício de suas funções, hoje acertadamente reconhecidas como "essenciais à justiça" ( CF, art. 133 ).

Portanto, pelo dispositivo legal ora enfocado, é expressa e incondicionalmente vedada a interceptação telefônica contra advogado [05].

Entendemos que o advento da Lei 9296/96 não teve o condão de alterar esta situação, uma vez que não menciona especificamente o caso de modo a possibilitar a diligência, permanecendo válida a proibição do Estatuto. Esta assertiva estriba-se no fato de que a interceptação telefônica constitui-se em restrição aos direitos e garantias individuais. Essa conclusão é hoje reforçada pela insistência do legislador em proteger o sigilo profissional do advogado de forma ainda mais pormenorizada através das alterações promovidas no artigo 7º. do Estatuto da OAB pela Lei 11.767/08, conforme acima exposto. Na ordem de sucessão legal, a lei mais recente prima pela proteção do sigilo da atividade da advocacia.

Mesmo antes do advento da Lei 11.767/08, ainda considerando a antiga redação do Estatuto da OAB (Lei 8906/94), a parte as causas evidentes de inconstitucionalidade [06], haveria necessidade de declaração expressa na lei, nos termos do primeiro verbo do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro, que estabelece as três hipóteses em que a lei posterior revoga a anterior (quando expressamente o declare, quando seja incompatível e quando regule inteiramente a matéria ), uma vez que as demais hipóteses não se coadunam com o quadro sob exame.

Na realidade, a Lei 9296/96, em relação à antiga norma prevista no Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil ( art. 7º, II ), adaptava-se ao previsto no § 2º do art. 2º da Lei de Introdução, não revogando nem modificando a garantia ali então determinada em prol da viabilização de uma efetiva ampla defesa em nosso ordenamento, que pretende caminhar sempre no sentido de contínua manutenção e aprimoramento de um verdadeiro Estado de Direito. Com o advento da Lei 11.767/08, se havia alguma dúvida a respeito da questão, já não há mais. Agora é a lei posterior que estabelece claramente o veto à interceptação telefônica do advogado no exercício legítimo da função.

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Poderia, porém, todo esse exercício interpretativo de conjugação de leis e adequação à Constituição ser evitado se não fosse tão omissa a Lei 9296/96 com respeito a tema tão relevante.

Grinover [07] aponta essa lacuna, afirmando que "a lei também é omissa quanto à possibilidade de interceptação de comunicações telefônicas entre o suspeito ou acusado e seu defensor, relativamente aos fatos objeto de investigação ou apuração em processo penal (art. 2º do Projeto Miro Teixeira ). Aqui o sigilo entre advogado e patrocinado deve ser considerado absoluto, inerente que é ao próprio exercício do direito de defesa, não podendo ceder diante do permissivo legal. Mais uma oportunidade perdida para deixar clara uma inevitável conseqüência da aplicação do princípio da proporcionalidade, que o intérprete deverá apontar."

Mais do que relegar ao intérprete a correção e o preenchimento das falhas e omissões do legislador, conforme acima mencionado, Valtécio Ferreira [08] propõe a elaboração de um novo projeto de lei melhor elaborado, devendo dele "constar especial proteção à inviolabilidade do escritório ou local de trabalho do advogado, com estudo do tema, à luz da conduta criminosa do advogado, a ser objeto de menção em parágrafo específico." Atualmente o legislador se desincumbiu indiretamente de tal mister, com a edição da Lei 11.767/08, tratando da matéria.

Certamente de absoluta pertinência a assertiva exposta, a qual possui ainda a qualidade de trazer à cena a necessidade de regulamentação também das hipóteses em que o advogado encontra-se imiscuído na atividade criminosa. Muitas vezes essa discriminação pode ser tormentosa, sendo difícil a diferenciação entre os atos praticados pelo profissional no exercício de suas funções e aqueles em que cruza o limite da criminalidade [09]. Tal dificuldade, porém, não pode impor a inércia do legislador e do exegeta frente ao tema, especialmente no sentido de evitar que uma justa prerrogativa absolutamente necessária a uma defesa efetiva, transmude-se, eventualmente, em "privilégio" odioso, acobertando atos ilegais, imorais e que somente denigrem uma classe, face à atuação irregular isolada de uns poucos maus profissionais e cidadãos. A Lei 11.767/08 procura, com a redação do novo artigo 7º., II e parágrafos 6º. e 7º. da Lei 8906/94, regular com razoabilidade e proporcionalidade o tema ora enfocado.

Oportuna a lição de Luiz Flávio Gomes [10], apresentando o enfoque do Ministro Luiz Vicente Cernicchiaro e o tratamento desses casos no direito alienígena: "Quanto às comunicações entre o investigado e seu advogado nos alinhamos ao lado dos que proclamam a impossibilidade de interceptação, em princípio. Quem bem enfocou essa questão foi o Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, cuja lição merece transcrição: ''Evidente, a interceptação não pode colher a conversa do indiciado, ou do réu, com o seu advogado. Vou além. De qualquer pessoa que procure o profissional a fim de aconselhar-se porque praticara uma infração penal. Será contraditório o Estado obrigar o advogado a guardar segredo profissional e imiscuir-se na conversa e dela valer-se para punir o cliente. O direito não admite contradição lógica! ( ... ). A propósito, lembre-se o Código de Processo Penal de Portugal no art. 187.3 - ''É proibida a interceptação e a gravação de conversações ou comunicações entre o argüido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que elas constituem objeto ou elemento de crime''. Entenda-se, porém, como interpretam os comentadores portugueses: se houver sérios indícios de o defensor haver participado da atividade criminosa. Nesse caso, não atua como profissional, mas como qualquer outro delinqüente''."

Em conclusão, pode-se afirmar que, além de não encontrar base na legislação ordinária por prevalecer o artigo 7º, II da Lei 8906/94, agora com a nova redação dada pela Lei 11.767/08, sobre a Lei 9296/96, as interceptações telefônicas contra advogados são inconstitucionais, não sendo possível sequer cogitar de eventual previsão a completar o vazio legal no sentido de permitir a intromissão na relação sigilosa entre clientes e causídicos ( arts. 5º, LIV e LV e 133, CF ).

A única exceção previsível seria nos casos em que o advogado é o próprio autor ou co-autor dos crimes sob apuração, hipótese esta em que, na verdade, não poderia validamente ancorar-se nas prerrogativas da nobre função que aviltou, pois sequer estaria no exercício legítimo da advocacia. Frise-se, porém, a necessária ponderação com que as autoridades deverão pautar-se em casos que tais, primando pelo equilíbrio e existência de bases sólidas para deflagrar uma investigação dessa amplitude, a qual somente terá lugar em casos extremos e excepcionalíssimos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Direito à Prova no Processo Penal. São Paulo, RT, 1997.

GOMES, Luiz Flávio, CERVINI, Raúl. Interceptação telefônica. São Paulo, RT, 1997.

GRECO FILHO, Vicente. Interceptação Telefônica. São Paulo, Saraiva, 1996.

GRINOVER, Ada Pellegrini. O Regime Brasileiro das Interceptações Telefônicas. Revista Brasileiras de Ciências Criminais. São Paulo, IBCCrim, 17, 112/126, Jan./Mar. 1997.

NÃO, não e não à escuta telefônica. São Paulo, Jornal do Advogado, 218/ 16-17, Set. 1998.


Notas

  1. Antonio Magalhães GOMES FILHO, Direito à prova no processo penal, p. 129.
  2. Vicente GRECO FILHO, Interceptação telefônica, p. 19.
  3. Interceptação telefônica, p.40.
  4. Apud, NÃO, não e não à escuta telefônica, Jornal do Advogado, 218/16.
  5. Ver no mesmo sentido, ver Valtécio FERREIRA, apud Op. Cit., p. 17.
  6. CF, art. 5º, LIV e LV e art. 133.
  7. Ada Pellegrini GRINOVER, O regime brasileiro das interceptações telefônicas, Revista Brasileira de Ciências Criminais, 17/124.
  8. Apud, NÃO, não e não à escuta telefônica, Jornal do Advogado, 218/17.
  9. Ver neste aspecto Alberto Rollo, apud, Op. Cit., p. 16.
  10. Interceptações telefônicas, p. 191.
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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Interceptação telefônica de advogado.: Evolução legislativa e o advento da Lei nº 11.767/08. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 1883, 27 ago. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/11649. Acesso em: 29 mar. 2024.

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