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A assistência jurídica gratuita aos pobres nos Estados Unidos

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29/12/2008 às 00:00
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Os Estados Unidos ainda se encontram num estágio relativamente precário no que se refere à universalização da garantia de igualdade efetiva no acesso de seus cidadãos à Justiça.

1. Notas introdutórias

Os Estados Unidos, embora sejam considerados paradigma de estabilidade em suas instituições democráticas e apesar de toda a pujança no campo econômico, tecnológico e científico, ainda se encontram num estágio relativamente precário no que se refere à universalização da garantia de igualdade efetiva no acesso de seus cidadãos à Justiça, especificamente daqueles que se situam nos estratos sociais inferiores, e por isso estão à margem do processo de produção-consumo que caracterizam o chamado american way of life. Como foi dito, de modo direto e incisivo, por David Luban, há uma resistência da sociedade norte-americana de aceitar a aplicação de verbas públicas para assegurar o igual direito de ricos e pobres, no acesso à Justiça:

"Access to equal legal services would take more money than our (American) society can be expected to provide for its poor, since it often seems barely willing to tolerate their existence at all and treats requests for such amenities as food and shelter for the poor as an affront to the American way. [01]

Esse paradoxo tem sido denunciado com veemência, no presente [02] e no passado [03], por inúmeros juristas e homens públicos norte-americanos [04].

É opinião corrente entre muitos integrantes da comunidade jurídica estadunidense que o princípio jurídico "Equal Justice under law", apesar de ser um dos mais orgulhosamente proclamados por toda parte, paradoxalmente é também um dos mais amplamente violados. Embora esteja presente nos pórticos dos Palácios de Justiça, e seja constantemente mencionado em ocasiões cerimoniais e em decisões constitucionais, esse princípio está muito longe de traduzir uma descrição efetiva do funcionamento do sistema judicial norte-americano no seu cotidiano. Isto foi expressamente afirmado pela Professora Deborah Rhode, da Universidade de Stanford, Ex-Presidente da Associação Norte-Americana de Faculdades de Direito, em recente livro publicado sobre o tema do Acesso à Justiça. Nessa obra a autora traz uma profunda e lúcida análise sobre a problemática do acesso à Justiça nos Estados Unidos [05].

Como muitos juristas norte-americanos reconhecem é, de fato, uma vergonhosa ironia que o país com o maior número de advogados do mundo não admita como sendo obrigação do poder público assegurar a designação gratuita de um advogado para prestar assistência jurídica, em causas cíveis, aos que não dispõem de recursos para pagá-la. Esse direito de representação judicial gratuita somente é reconhecido, e com certas restrições, para a defesa em causas criminais. E é ainda mais vergonhoso que tais iniqüidades suscitem tão pouca preocupação entre os cidadãos dessa pujante nação. Isto é o que diz textualmente, de modo mais conciso, a mesma autora acima referida:

"It is a shameful irony that the country with the world’s most lawyers has one of the least adequate systems for legal assistance. It is more shameful still that the inequities attract so little concern". [06]

Essa falta de consciência sobre as limitações inerentes ao sistema judicial americano e sobre a desigualdade no efetivo acesso à Justiça tornam o problema ainda mais sério, segundo Deborah Rhode. Eis, mais uma vez, o preciso comentário da autora:

"Although most Americans agree that the wealthy have advantages in the justice system, about four-fifths believe that it is still the ‘best in the world’. About the same number also believe, incorrectly, that the poor are entitled to counsel in civil cases. Only a third of Americans think that low-income individuals would have difficulty finding legal assistance, a perception wildly out of touch with reality. Fewer than one percent of lawyers are in legal aid practice, which works out to about one lawyer for every 1400 poor or near-poor persons in the United States." [07]

Traçando um paralelo comparativo entre o estágio atual do sistema norte-americano de assistência jurídica e o nível já alcançado pelos sistemas da grande maioria dos países europeus, o jurista Earl Johnson Jr. recorre a uma linguagem metafórica, e até um pouco poética, para descrever o quadro que se configura na sociedade estadunidense. Eis o que afirma esse autor:

"Somehow civil legal services in the United States must achieve the status it has in the United Kingdom and most European countries – a matter of right, not charity of either the private or legislative variety. (…) To most legal services supporters in the United States this sounds like a terribly ambitious, maybe unreachable, goal. Meanwhile, to almost anybody in any other industrial democracy, it probably appears but a modest first step. But America is like an infant who has barely learned to crawl – and very late at that. To such a tardy baby the prospect of standing up and walking, even to totter unsteadily, seems impossible. Worse, the current political situation has people trying to knock this crawling infant off his knees and flat on the floor, thus turning the notion of actually standing up and walking into pure fantasy. The only thing that may keep the baby trying is the realization that all these other smaller children are already walking around on their own two feet, maybe stumbling now and then, but walking nevertheless. So it ‘must’ be possible, after all." [08]

Embora o autor na passagem acima tenha centrado o foco no fato da ausência do reconhecimento do direito à assistência jurídica gratuita para os pobres em causas perante a jurisdição cível, mesmo no que se refere à Justiça Criminal, onde o direito constitucional de assistência gratuita prestada por advogado, às expensas dos cofres públicos, foi reconhecido há apenas quatro décadas, a realidade norte-americana não é muito diferente. Isto é o que nos diz o Diretor do Centro de Direitos Humanos da cidade de Atlanta, em artigo publicado no início do ano de 2003, por ocasião das comemorações do quadragésimo aniversário da famosa decisão Gideon v. Wainright, em que a Suprema Corte declarou o direito constitucional de patrocínio gratuito por advogado em favor dos que não podem pagar por esse serviço. Eis as palavras do advogado Stephen Bright:

" No constitutional right is celebrated so much in abstract and observed so little in reality as the right to counsel. While leaders of the judiciary, legal profession and government give speeches every Law Day about the essential role of lawyers in protecting the individual rights of people accused of crimes, many states yet to create and fund adequately independent programs for providing legal representation. (…) United States Supreme Court justices give speeches decrying the poor quality of legal representation and acknowledging the likelihood that innocent people have been executed, but continue to apply a standard of representation that makes a mockery of the right to counsel". [09]

Esse diagnóstico da realidade norte-americana relativamente ao acesso dos pobres à Justiça não é de todo recente. Já no ano de 1919 o advogado Reginald Heber Smith [10] publicou uma obra a respeito do assunto, que se tornou clássica na literatura jurídica daquele país. Trata-se do livro cujo título é "Justice and the Poor". O próprio subtítulo dessa obra já traduzia a denúncia do paradoxo acima apontado, enunciando-se nos seguintes termos: "a study of the present denial of justice to the poor and of the agencies making more equal their position before the law with particular reference to legal aid work in the United States" (grifamos) [11]

Reginald Smith destaca nesse mesmo livro que a liberdade e a igualdade de Justiça são concepções fundamentais inseparáveis no Direito norte-americano. Juntos eles formariam os princípios básicos sobre os quais se assentam os pilares mesmo da administração da Justiça. Segundo este mesmo autor, "um sistema que crie distinções de classes, tendo uma lei para os ricos e outra para os pobres (...) garantindo sua proteção para um cidadão e denegando para outro, nós condenaríamos sem hesitação como sendo injusto, como privado daquela essência sem a qual não pode haver verdadeira Justiça". [12]

Embora as características do sistema político federativo norte-americano, aliadas à ampla diversidade no contexto histórico e social dos diversos Estados, resultem no surgimento de uma enorme variedade de estruturas e organismos voltados para a prestação dos serviços de assistência jurídica aos necessitados, pode-se afirmar, grosso modo, que prevalece um determinado modelo organizacional mais ou menos comum, tanto no campo da Justiça criminal quanto no campo da Justiça cível. Trata-se do chamado "staff model", ou seja, o modelo em que os advogados trabalham como assalariados, a maioria deles sob regime de tempo contínuo (in house, full time lawyers), embora sejam poucas as entidades que congreguem numa mesma organização e estrutura a prestação de serviços na área criminal e na área cível. Essa separação decorre principalmente do fato de que, nos serviços de defesa criminal no âmbito dos Estados, e sobretudo no âmbito federal, os programas de assistência jurídica são quase que integralmente financiados por recursos governamentais e são prestados por Defensores Públicos, os quais são vinculados, em sua maioria, a organismos criados e mantidos pelo próprio Poder Público normalmente denominados "Public Defender Office", cuja estruturação e funcionamento serão melhor explicitados adiante. Já os serviços de assistência jurídica no campo cível normalmente são prestados por advogados vinculados a organismos criados por iniciativa privada, que contam com financiamento não apenas proveniente dos cofres públicos, mas também de uma série de outras entidades e colaboradores da sociedade civil, o que também será mais bem explicitado adiante.

Assim temos que na vertente da Justiça criminal, especialmente nas áreas mais densamente povoadas, predomina o modelo de Defensorias Públicas sendo algumas estruturadas e mantidas pelos governos estaduais, e outras por governos locais (os Condados). Enquanto isso, nas áreas rurais, de menor concentração populacional, predomina o modelo de designação de advogados privados, nomeados na base do "caso-a-caso" e remunerados por horas de trabalho ou de acordo com tabelas pré-fixadas para cada tipo de caso. Essa multiplicidade organizacional acarreta grande variação nos padrões de qualidade da prestação dos serviços. Digno de nota, porém, é o excelente padrão de funcionamento do serviço de defesa pública na esfera federal: vinculada administrativamente ao Poder Judiciário (Administrative Office of the U. S. Courts). A Defensoria Pública perante os Tribunais e Cortes da Justiça Federal está muito bem estruturada, dispondo de adequados recursos orçamentários, e mantém um corpo de advogados altamente qualificados capacitados para o pleno cumprimento de sua missão constitucional, como adiante se detalhará.

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Já na vertente da justiça cível o quadro é ainda mais diversificado e complexo, seja relativamente às inúmeras espécies de organizações e entidades encarregadas da prestação dos serviços, seja no que tange ao modo de financiamento da assistência jurídica, cujos recursos provém em parte do tesouro federal, em parte dos governos estaduais e locais, além de uma enorme variedade de outras fontes. No que se refere aos órgãos encarregados da prestação dos serviços predominam entidades não governamentais de médio e grande porte, sem fins lucrativos, que trabalham com advogados assalariados, em sua maioria de tempo contínuo. Dentre essas entidades, destacam-se as chamadas "Legal Aid Societies" ou "Legal Aid Bureau", como é o caso daquela estabelecida em Baltimore, no Estado de Maryland, que tivemos oportunidade de conhecer mais de perto durante pesquisas de campo realizadas nos EUA. Também, existe uma infinidade de organizações de porte mais reduzido, estruturadas segundo o modelo das chamadas "Neighborhood Law Offices", ou seja, os "Escritórios Jurídicos de Vizinhança".

Para concluir estas notas introdutórias resta destacar um aspecto de grande relevância para que se possa melhor compreender a especificidade do sistema norte-americano de assistência jurídica aos pobres. Trata-se do fato de que, via de regra, não existe restrição à capacidade postulatória do cidadão perante os diversos tribunais e cortes de Justiça. À Advocacia não é reconhecido no patamar constitucional nem legal, como no Brasil, o status de função essencial à administração da Justiça. Assim, pelo menos em tese, um jurisdicionado que não possua recursos financeiros para contratar um advogado para patrocinar seus interesses em Juízo, seja como autor ou como réu, não estará, como se entende nos EUA, efetivamente privado de acesso à Justiça: ele pode litigar pro se, ou seja, em causa própria. Apenas em casos especiais, a jurisprudência da Suprema Corte estabeleceu ser essencial que a parte seja representada/assistida por profissional devidamente habilitado, cabendo – nestes casos – ao Juiz designar o advogado que patrocinará os interesses em Juízo.

Outra importante "válvula de escape", que ameniza um pouco a ausência de uma garantia constitucional de assistência jurídica aos pobres prestada pelo Poder Público na área cível, consiste na prática largamente admitida e difundida nos Estados Unidos de adoção da cláusula de honorários de resultado, chamada de "contingent fee system". Naqueles casos em que há forte probabilidade de êxito com expressiva perspectiva de resultado econômico para a parte vencedora normalmente se encontra advogados dispostos a "investir" o tempo necessário para o patrocínio da causa, na expectativa de receber honorários ao final, representados por uma parcela do valor que vier a ser auferido pelo cliente [13].

Em que pesem as críticas que apontam as vicissitudes do sistema norte-americano de assistência jurídica em prol dos mais pobres, na perspectiva de um observador externo, não se pode deixar de reconhecer a existência nos Estados Unidos de uma extensa gama de entidades e organizações que prestam serviços de vanguarda [14]. Isto já vem sendo reconhecido por diversos autores estrangeiros há algum tempo. Assim, durante a temporada de estudos que realizamos para preparação deste trabalho, tivemos a oportunidade de conhecer experiências inovadoras na prestação de serviços jurídicos, tanto na área criminal como na área cível. São bastante freqüentes as visitas realizadas por autoridades e administradores públicos estrangeiros que vêm estudar as experiências bem sucedidas do sistema norte-americano. E isto somente ocorre porque o sistema, apesar de suas falhas, apresenta muitas virtudes que podem trazer boas inspirações e influências para quem está de fora. Tal é o que poderá ser conferido com maior detalhamento nos diversos relatórios que se encontram no anexo deste trabalho, onde foram registradas as observações colhidas durante as visitas realizadas.


2. Perspectiva histórica

No final do século XVIII, os "pais fundadores" da Nação norte-americana, após proclamarem a independência das colônias inglesas na América, resolveram elaborar uma Constituição para reger o funcionamento do novo ente político, baseada no princípio da Igualdade e da Justiça para todos. Esse princípio deveria ser visto não como um ideal utópico, mas como uma garantia indispensável à plena fruição da liberdade que tanto almejavam. Entretanto, apesar desse compromisso com a igualdade no acesso de todos os cidadãos à Justiça, o texto original da Constituição de 1787 não continha nenhum dispositivo escrito assegurando de modo explícito a garantia de assistência jurídica aos que não tivessem recursos financeiros para a plena efetivação desse ideário. Como se sabe, a Constituição norte-americana não contava originariamente com uma Declaração de Direitos. Isto somente veio a ocorrer em 1791, com a aprovação das dez primeiras Emendas à Constituição.

Naquele contexto histórico do final do século XVIII e início do século XIX, a figura do advogado era considerada dispensável e em alguns casos até mesmo indesejável [15]. Isto pode ser compreendido se considerarmos que, naquela época, a maioria da população vivia em pequenos lugarejos e comunidades rurais, onde não era tão freqüente o número de litígios. A grande maioria da população se alimentava do que eles mesmos cultivavam em seus campos e dos animais que criavam em seus quintais. Vestiam a roupa que eles mesmos teciam. Moravam nas casas que eles mesmos construíam. As famílias eram estáveis, não havia mercado imobiliário, condomínios, acidentes de trânsito, seguros de saúde, sistema de benefícios da previdência social, etc. Além disso, havia um número bem mais reduzido de leis e de precedentes a serem aplicados na solução de conflitos que eram levados à autoridade judicial; e, entre os colonos, havia certa homogeneidade quanto ao nível intelectual, econômico, cultural e social, compartilhando todos de um senso comum que tornava bem mais equilibradas as relações sociais, cuja complexidade era muito menor do que no tempo atual. Assim, nos tribunais inferiores, onde os casos mais simples eram julgados, os pobres podiam litigar em causa própria, sem que isso representasse grave desequilíbrio na defesa de seus interesses.

Pode-se afirmar, de qualquer modo, que na história constitucional dos Estados Unidos a igual possibilidade formal de acesso de todos ao Poder Judiciário sempre foi reconhecida como um direito básico. Entretanto, a assistência de advogado para tornar material e plenamente efetivo esse direito de igual acesso de todos – ricos e pobres – ao Judiciário não fora reconhecida como tal. Isto não apenas no âmbito da jurisdição civil, mas também na Justiça criminal. A idéia de prescindibilidade de assistência e de representação judicial por intermédio de advogado era tão arraigada que foi necessário estabelecer expressamente na Declaração de Direitos – tal como consubstanciado pela Sexta Emenda à Constituição Norte-Americana, no ano de 1791 - que ninguém poderia ter violada a prerrogativa de se fazer assistir por advogado, quando acusado de algum crime perante um tribunal [16].

Tal dispositivo – segundo a interpretação construtivista da Suprema Corte – com o decorrer do tempo passou a ser interpretado em harmonia com o que consta da Décima Quarta Emenda à Constituição, referente às cláusulas do "Due Process of Law" e "Equal Protection of Law", deixando de ser considerada mera prerrogativa para se tornar efetivo direito de não ser julgado em processo criminal sem a assistência técnica de um advogado. E, no caso das pessoas pobres, a Suprema Corte estabeleceu que o réu deveria contar gratuitamente com a assistência de advogado para garantir a observância desse direito. Tal regra, originariamente aplicável somente nos tribunais federais, foi estabelecida como obrigatória para todos os Estados da Federação nas históricas decisões "Gideon v. Wainwright", do ano de 1963 e "Argersinger v. Hamlin", do ano de 1972. Todavia, no âmbito da jurisdição civil, inexiste até o presente qualquer dispositivo constitucional, ou decisão da Suprema Corte, reconhecendo às pessoas pobres o direito de assistência técnica por intermédio de advogado para terem efetivo acesso à Justiça.

Com o crescimento das cidades e as vertiginosas mudanças ocorridas nos séculos XIX e XX as relações sociais, assim como a legislação e os procedimentos judiciais, tornaram-se bem mais complexos, aumentando significativamente a incidência de litígios e tornando de grande importância a assistência técnico-jurídica por profissional devidamente habilitado. Isto passou a representar um custo muitas vezes elevado, com o qual os cidadãos nem sempre podiam arcar. Não adiantava apenas aumentar o número de tribunais. O quadro se tornou dramático e já no início do século XX estava patente que o sistema de administração da Justiça nos Estados Unidos padecia de um grave vício, de verdadeira "denegação" de Justiça aos que não podiam pagar, tal como assinalado na obra de Reginald Heber Smith, já anteriormente referida. [17]

A obra pioneira de Smith produziu importante repercussão no seio da comunidade jurídica norte-americana, acarretando um significativo impulso na criação de organismos diversos, seja no âmbito governamental ou pela própria sociedade civil, com o objetivo de prestar assistência jurídica aos mais necessitados. Uma visão panorâmica dessa evolução está bem retratada numa outra obra de referência para a história da Assistência Jurídica nos Estados Unidos, publicada em 1951 por Emery A. Brownell. Trata-se do livro "Legal Aid in the United States – A study of the avaiability of Lawyers´ Services for persons unable to pay fees", que consiste num relatório onde foram veiculados os resultados de pesquisa iniciada em 1947, cujo propósito era realizar um mapeamento do sistema americano de Assistência Jurídica aos Pobres.

Nesse livro de Emery Brownell fica patente a preocupação da classe dos advogados no que concerne à necessidade de se evitar que os cidadãos das classes menos favorecidas perdessem a credibilidade no sistema judicial norte-americano. No contexto do período que se seguia à II Grande Guerra Mundial, de proliferação do ideário marxista e comunista que via no Direito um "instrumento de dominação de classes", as elites entendiam ser necessário neutralizar qualquer tendência revolucionária assegurando-se, de modo mais efetivo, a igualdade no acesso à Justiça e na realização dos direitos. Isto, independentemente das desigualdades reais de ordem econômico-financeira entre os cidadãos. Considerava-se que tão importante quanto – ou até mais importante do que – as políticas de ampliação dos direitos sociais, como saúde e educação, eram as providências concretas no sentido de proporcionar igualdade no acesso de todos à Justiça [18]. De fato, o ser humano pode até suportar, com certa resignação, o sofrimento causado pela dor e mesmo pela morte, quando provocadas por fatores naturais. Mas diante da injustiça é quase impossível manter-se inerte.

O entendimento que prevalecia na sociedade norte-americana era de que cabia à classe dos advogados, enquanto tal, a tarefa de prover o que fosse necessário para assegurar o igualitário acesso de todos à Justiça e ao efetivo gozo dos direitos assegurados por lei. Segundo a mentalidade da época era totalmente indesejável que o poder público interferisse no equacionamento dessa questão. Isso era ônus a ser assumido pelos próprios advogados, com o apoio da sociedade civil ou, como se dizia, da community, especialmente o apoio das pessoas de maior poder aquisitivo, que podiam pagar pelos serviços judiciários [19]. Havia, por parte da classe dos advogados, grande preocupação de que o pagamento dos serviços jurídicos prestados aos pobres mediante recursos provenientes dos cofres públicos constituísse um primeiro passo para o socialismo, com uma espécie de "socialização" da profissão liberal de advogado [20]. Diante desse quadro de temor do socialismo, durante o período do ápice da chamada "guerra fria", houve um grande impulso ao movimento em prol da assistência jurídica por intermédio das sociedades civis não governamentais de "legal aid". Apesar disso, os serviços ainda eram extremamente precários. Havia grande desproporção entre o quantitativo de advogados empregados pelas organizações de assistência jurídica e a elevada demanda de serviços e de necessidades não supridas. O foco dos serviços, então disponíveis, era estritamente nas questões individuais, não havendo nenhuma atuação em termos de reformas estruturais do sistema jurídico e de defesa de interesses coletivos através das "class actions".

No que se refere à Justiça criminal, especialmente no âmbito dos Estados, até meados do século XX a designação de advogado para patrocinar gratuitamente os interesses de réus pobres era deixada ao crivo dos tribunais, de acordo com as circunstâncias peculiares de cada caso, visto que a prerrogativa de assistência jurídica não era ainda reconhecida como um direito constitucional [21]. As injustiças decorrentes de um sistema tão débil de garantia da efetividade do direito de defesa se tornaram mais graves com o passar do tempo. As designações de advogados ad hoc, a título honorífico, sem direito de receber qualquer retribuição dos cofres públicos podiam ser uma solução tolerável no contexto das pequenas cidades americanas no século XIX, onde o número e a complexidade dos casos criminais era reduzido, e a visibilidade alcançada pelos julgamentos encorajava um adequado esforço na preparação da causa pelo advogado nomeado. Com o fenômeno da urbanização e o enorme crescimento das populações pobres, especialmente de imigrantes, o quadro foi se tornando dramático, o que colocava em cheque a efetividade dos princípios fundamentais sobre os quais se assentava a tão orgulhosa democracia norte-americana [22]. Em alguns Estados começaram a ser criados os primeiros serviços públicos de assistência jurídica na área criminal sob a forma de Defensorias Públicas, seguindo a inspiração das idéias de vanguarda de uma das primeiras mulheres a atuar como advogada nos Estados Unidos [23].

O modelo de Defensorias Públicas se por um lado era considerado um grande avanço ou, até mesmo, nas palavras de Reginald Heber Smith, uma "complete solution" para a garantia do direito de defesa aos pobres, também mereceu por outro lado certas críticas, especialmente dos segmentos da profissão da advocacia cuja expectativa era de auferir nova fonte de receita com o estabelecimento de um sistema de nomeações caso a caso, do tipo Judicare, devidamente remuneradas pelos cofres públicos. Também havia por parte de alguns críticos a mesma preocupação quanto à possível "socialização" da profissão liberal de advogado, sob os mesmos argumentos já acima indicados quando enfocada a defesa na jurisdição cível.

Uma série de casos decididos pela Suprema Corte em meados do século XX acarretou a estruturação de um sistema público de defesa criminal nos Estados Unidos. A primeira dessas decisões ocorreu no famoso caso Powel v. Alabama, do ano de 1932, também conhecido como The Scottsboro Boys case, quando foi estabelecido pela Suprema Corte que nos casos em que possa resultar a aplicação de pena de morte os tribunais estaduais estariam obrigados a nomear advogado para os réus que não tivessem recursos para contratar um profissional e que não possuíssem condições suficientes para fazer sua auto-defesa. Essa decisão representou um grande avanço, embora muitos críticos vislumbrassem uma indevida interferência do Judiciário Federal na órbita de autonomia dos Estados, sob o argumento de que não era possível impor aos entes federativos o pesado ônus financeiro de subsidiar a defesa criminal de réus pobres. Nesse percurso seguido pela Suprema Corte, uma outra importante decisão foi tomada no caso Betts v. Brady, de 1942, em que se estabeleceu que mesmo em casos onde não houvesse possibilidade de pena de morte, em certas "circunstâncias especiais" seria obrigatória a designação de advogado. Dentre tais circunstâncias, variáveis conforme o caso concreto, podiam estar: idade, experiência/maturidade e nível intelectual do acusado, complexidade do caso, etc. Esse novo conceito de "circunstâncias especiais" que exigiria a nomeação de advogados era de tal maneira aberto que trouxe ainda mais dúvidas para o funcionamento do sistema da Justiça criminal. [24]

Em 1963, finalmente, a Suprema Corte norte-americana decidiu julgar um caso que acabou se tornando um marco na história jurídica daquele país. Trata-se do caso Gideon v. Wainwright. A história de Earl Gideon, um cidadão do Estado da Flórida, com antecedentes criminais, que foi acusado de um simples crime de furto e que não apresentava qualquer das "circunstâncias especiais" normalmente exigidas pela Suprema Corte para garantir a nomeação gratuita de um advogado, tornou-se mundialmente famosa. [25] O Juiz Hugo Black, no dia 18 de março de 1963 proferiu seu voto, em nome da Suprema Corte, declarando o que ele salientava como sendo uma "obvious truth": "qualquer pessoa levada a um tribunal, que devido à pobreza não possa contratar um advogado, não terá assegurado um julgamento justo a não ser que um profissional seja designado para assisti-lo... O fato de que o governo normalmente contrata advogados para promover a acusação e de que os acusados que têm dinheiro normalmente também contratam advogados para a defesa é uma forte indicação do consagrado reconhecimento de que um advogado na Justiça criminal é uma necessidade e não um luxo". [26] A partir do caso Gideon v. Wainwright o cenário da assistência jurídica criminal nos Estados Unidos mudou completamente, impondo aos governos estaduais e mesmo ao governo federal a estruturação de um sistema adequado para prestação desses serviços, que passaram a ser uma obrigação de ordem constitucional para o poder público.

Voltando à trajetória histórica da assistência jurídica no campo da jurisdição civil, paralelamente ao serviço prestado pelas organizações de "Legal Aid", focado – como já assinalado – principalmente na dimensão individual dos problemas jurídicos, um importante caminho para sanar, de modo mais amplo, as deficiências na garantia de igual acesso de todos à Justiça foram as ações e estratégias de utilização de "test cases", que se traduzem em verdadeiras modalidades de técnicas de litigância, com o objetivo de provocar mudanças sociais e conquista de direitos, com efeitos que ultrapassassem a esfera individual. Dentre as organizações que mais se destacaram nesse campo estão a "National Association for the Advancement of Colored People" (NAACP) e a "American Civil Liberties Union" (ACLU), cuja atuação se projetou largamente, sobretudo nos anos cinqüenta, durante o período mais profícuo da Corte Warren, no período em que a Suprema Corte foi presidida pelo Juiz Earl Warren. As importantes vitórias, obtidas perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, na luta contra a segregação racial e pela afirmação dos direitos dos negros [27], traduzem o êxito alcançado por essas entidades no emprego da estratégia dos "test cases".

Na esteira desse movimento de reforma social através do direito, no início da década de 1960 o governo federal norte-americano implantou um programa nacional de "Guerra contra a Pobreza" cuja filosofia era não propriamente a de promover a distribuição da riqueza, mas, sobretudo, capacitar as pessoas pobres a romper com o círculo vicioso da pobreza. Logo se percebeu que os serviços de assistência jurídica, especialmente se voltados não apenas para uma perspectiva individual, mas também para a dimensão coletiva no equacionamento dos problemas vivenciados pelos pobres, poderiam ser de grande impacto na luta contra a miséria. Um importante marco nesse processo de transformação social por intermédio do direito foi a idealização das chamadas "neighborhood law firms" [28], que proliferaram pelo país em meados dos anos 60.

No final do ano de 1964, pela primeira vez na história, o Governo Federal norte-americano passou a destinar recursos financeiros para um programa oficial de assistência jurídica em questões de natureza civil, vinculado ao denominado "Office of Economic Opportunity", agência governamental que havia sido criada na administração do Presidente Lindon Johnson para conduzir as ações do projeto intitulado "guerra contra a pobreza", acima referido [29]. Paralelamente, no campo da Justiça criminal, o ano de 1963 fora marcado por outro acontecimento histórico no cenário do acesso igualitário à Justiça, com o julgamento do caso "Gideon v. Wainwright" pela Suprema Corte dos Estados Unidos, em que – como já mencionado – se fixou a obrigação dos Estados de prover, gratuitamente, advogados para todo acusado incapaz de arcar com as despesas inerentes à própria defesa, sempre que houvesse possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade.

Considerando-se esses dois acontecimentos históricos, temos que a segunda metade da década dos 60 foi marcada por um expressivo desenvolvimento dos serviços de assistência jurídica gratuita aos pobres nos EUA, tanto na área cível quanto na área criminal.

Percorrida essa breve trajetória histórica, que será complementada em alguns pontos específicos, quando necessário, conforme o desenvolvimento do tema deste trabalho, cremos ser oportuno passar agora à análise das duas vertentes, bem demarcadas por sinal, que configuram o sistema norte-americano de assistência jurídica aos mais pobres. Conforme já assinalado, por diversas razões históricas, via de regra, há uma separação entre as entidades e órgãos que atuam na prestação de serviços jurídicos gratuitos em causas cíveis e aquelas que promovem estritamente o patrocínio e a defesa criminal. Por isso, na sistematização deste capítulo, optamos por proceder a análise dessas duas vertentes separadamente, uma em cada seção.

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Sobre o autor
Cleber Francisco Alves

Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro, Professor Universitário, Doutor em Direito pela PUC-RJ

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Cleber Francisco. A assistência jurídica gratuita aos pobres nos Estados Unidos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 13, n. 2007, 29 dez. 2008. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12139. Acesso em: 29 mar. 2024.

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