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Assédio moral nas instituições de ensino

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02/03/2009 às 00:00
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CAPÍTULO 4

O assédio moral não é privilégio de uma ou outra sociedade, de uma ou outra instituição, seja familiar, escolar etc. O homem é um ser relacional e onde ele está existe relacionamento. Assim sendo, nos deparamos com as mais diversas atitudes, tanto positivas quanto negativas. Atitudes na categoria negativa podemos denominar como sendo aquelas que ofendem, humilham acarretando inúmeros prejuízos para a vítima, seja de ordem moral, psíquica, orgânica, econômica e outras. Atitudes essas, entre outras, que caracterizam o assédio moral.

O assédio moral não é algo novo mas a sua notoriedade se dá no final do século XX. Desde então, várias são as legislações que protegem as vítimas do assédio. Contudo podemos observar que são poucos os que ousam a se declarar vítimas e lutar pelos seus direitos até mesmo pelo desconhecimento da existência do assédio moral.

Dentre os segmentos da sociedade que mais tem se ocupado com o tema está o setor do trabalho. O assédio moral no âmbito laboral tem sido protegido por inúmeras legislações específicas deixando o trabalhador instrumentalizado; motivado para se proteger e se defender. A divulgação do tema é feita através dos sindicatos mediante palestras e outros canais.

Por mais que tenhamos alargado as fontes de pesquisa encontramos apenas uma bibliografia no Brasil com enfoque específico às Instituições de Ensino: Dissertação de Mestrado de autoria de Henrique Carivaldo de Miranda Neto no Centro Universitário do Triângulo, na cidade de Uberlândia realizada em 2002.

Marie-France Hirigoyen [19], elucida que "o meio educativo é um dos mais afetados pelas práticas do assédio moral. Contudo, poucos estudos foram feitos a esse respeito, com exceção do realizado em 1998 pela MGEN (Mutuelle généralle de l’Éducation nationale)".

Henrique Carivaldo de Miranda Neto, [20] defendeu sua tese de mestrado em 2002 com o título: Assédio Moral: Constrangimento e humilhação em Instituições de Educação Superior. Partiu do pressuposto de que as Instituições de Educação Superior (IES) constituem-se em ambiente de trabalho. Formulou a "hipótese de que as IES, enquanto ambientes de trabalho são afetadas por situações violentas presentes no contexto laboral, também são palco do assédio moral, onde professores constrangem e humilham alunos, podendo deteriorar a relação estabelecida entre ambos, no contexto pedagógico, influenciando negativamente o desenvolvimento dos processos educacionais".

Foram entrevistados 1.132 alunos universitários e pedido a eles que descrevessem situações constrangedoras e humilhantes por eles presenciadas ou vivenciadas nas IES. O mestrando na época, pode constatar que o assédio moral é real nas IES e que os alunos são vitimizados em sua auto-estima por docentes que, usando da relação hierárquica, constrangem e humilham seus alunos.

Jorge Forbes, [21] psicanalista, cita a frase do escritor Michel de Montaigne, século XVI: "A covardia é a mãe da crueldade" comparando o ato de assediar como um ato covarde. "Define o assédio moral como o uso do constrangimento do outro em uma disputa pessoal. Ele observa que o ato de diminuir propositadamente a liberdade do outro, para obter um benefício particular, pode revelar algo mais sério: uma espécie de satisfação sádica pessoal, o prazer de se sentir mais inteligente, mais competente, mais rápido".

Segundo Jorge Forbes o modelo das relações se dava verticalmente nas relações pessoais e corporativas e, agora, estamos diante de uma sociedade horizontalmente organizada. A participação das pessoas é esperada e valorizada o que difere de antigamente, onde as pessoas eram meras cumpridoras do dever ou, no caso da educação, grifo nosso, receptoras do saber.

Forbes dá uma dica para solucionar questões provenientes do assédio moral no setor empresarial e que nos parece apropriada para remetermos às instituições de ensino: "Manter nas empresas a consciência de que existe a possibilidade do assédio... É preciso nomear tudo, divulgar, esclarecer, ver o que cada situação significa para um e para outro, porque a subjetividade existe e foi liberada".

Forbes confirma quão antigo é o assédio, quando "cita um trecho de Futuro de uma Ilusão, 1927, de Freud: ‘Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte de seus participantes depende da opressão da outra parte, parte essa talvez maior, é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura, cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma cota mínima. Não é preciso dizer que uma civilização que deixa insatisfeito um número tão grande de seus participantes e os impulsiona à revolta não tem nem merece a perspectiva de uma existência duradoura’. Este é mais um indício, observa Forbes, de que as situações de assédio moral são provocadas por características inerentes ao ser humano. E que, por isso mesmo, requerem atenção redobrada por parte dos gestores de pessoas".

Henrique Carivaldo de Miranda Neto, dá uma enorme contribuição quando, a partir do resultado obtido, pôde categorizar e definir espécies de assédio moral. Ele obteve 12 categorias: agressão física; agressão verbal aos alunos; ameaças aos alunos; acusação agressiva e sem provas; assédio sexual; comentários depreciativos, preconceituosos ou indecorosos; tratamento discriminatório e excludente; rebaixamento da capacidade cognitiva dos alunos; desinteresse e omissão; uso inadequado de instrumentos pedagógicos, prejudicando os alunos; recusa em realizar seu trabalho e abandono do trabalho em sala de aula. Estas categorias podem ser apreciadas de forma mais detalhada no final deste trabalho (ANEXO 1).

Na conclusão do seu trabalho ele observa que, havendo ou não a intenção do docente, a situação de constrangimento e humilhação ocorre e o discente tem a sua dignidade atingida. Alerta para o fato que é "provável que os docentes ao constranger e humilhar seus alunos estejam agindo por defesa e, os discentes na posição de vítima, percebam estas atitudes como ataque".

Jean Claude Filloux [22], diz que Durkheim, sociólogo interessado na educação, "compara o ato pedagógico a um ato de colonização, e a relação entre o mestre e o aluno, a comparação na qual um tem força, domínio sobre o outro, o poder sobre o outro; é ele quem menciona a violência pedagógica. Durkheim diz sobre a educação moral que: Todas as vezes que duas populações, dois grupos de indivíduos, embora de cultura desigual, se encontram em contato contínuo, alguns sentimentos se desenvolvem que faz com que o grupo mais culto, ou que acredita ser o mais culto, tente violentar o outro".

Segundo ainda Jean Claude Filloux, "o exercício da função pedagógica é um terreno propício ao que Durkhein chama mais uma vez de megalomania escolar e de pedantismo, que considera como uma agressão... Durkhein escreveu, dentre outros, três livros: Educação e Sociologia, A Evolução Pedagógica na França e a Educação Moral. Filloux questiona se esses livros são mencionados na universidade ou na formação de professores de ciências da educação. Lembra que foi justamente Durkheim quem inventou esta origem da palavra ciência da educação: ‘Existe, portanto, nas próprias condições da vida escolar algo que leva, que inclina à disciplina violenta e enquanto não interferir com alguma força contrária consegue-se perfeitamente que esta cláusula se torne cada vez mais atuante na medida em que a escola se desenvolve em sua realeza’."

Há nas relações aspectos subjetivos e intersubjetivos que acabam por nortear os relacionamentos. Não é tarefa fácil, muito bem sabem os terapeutas, mas é necessário estarmos atentos para o fato de que eles existem. Descobri-los pode significar esclarecer os próprios conflitos e a necessidade muitas vezes fortuita de agredir ou humilhar o outro.

Conforme Ulisses F. Araújo [23], "um sujeito psicológico, é um sujeito de ‘carne e osso’ que é cada ser humano". Segundo ele, "é importante situar que nossa maneira de ser, de agir, de pensar, de sentir, de valorar é resultante da coordenação de vários sistemas (ou partes), que, na verdade, são subsistemas de um sistema mais complexo que define nossa individualidade.... Ter essa visão de totalidade nos ajuda a melhor compreender a realidade dos comportamentos humanos, facilita nossas relações com o mundo e nos ajuda a construir uma visão mais ampla da moralidade humana ao nos levar, por exemplo, a evitar determinados tipos de preconceito contra formas diferentes de pensar, sentir e agir das outras pessoas".

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Nesse sentido Raymundo de Lima [24] descreve sobre a questão do estigma. Diz que o "termo ‘estigma’ surgiu na Grécia Antiga, para se referir aos sinais do corpo que os gregos interpretavam como algo mau daquela pessoa. Assim negativamente marcada, a pessoa deveria ser evitada, especialmente em lugares públicos. Estigmatizar é como colocar um rótulo em alguém. No cotidiano escolar é estigmatizante e causa sofrimento psíquico quando uma pessoa sente-se reduzida a: ‘retardo’, ‘escravo’, ‘carvão’, ‘ceguinho’, ‘zarolho’, ‘perna torta’, ‘dumbo’, etc.

Antigamente, ser filhos de pais divorciados era motivo de discriminação. Usar óculos até hoje também pode ser motivo de discriminação, assim como, gravidez na adolescência. Enfim, ser diferente ainda é alvo de estigmatização por aqueles que se acham perfeitos.

Raymundo de Lima diz ainda que "se a escola ‘deixa’ esse tipo de atitude estará ‘autorizando’ o desenvolvimento de cidadãos injustos, superficiais e maus. A escola e universidade são instituições que supostamente reinam a razão (logos), mas na prática é um espaço social dominado pelas paixões, preconceitos, estereotipias e estigmas. Professores e funcionários também sofrem. São vítimas de apelidos e exclusão, tanto pelos alunos como pelos próprios colegas de trabalho. Os sinais mais freqüentes acontecem através do olhar, do distanciamento do corpo, das palavras que visam ‘queimar’ socialmente a pessoa, geralmente feito em forma de cochicho, de meias palavras, insinuações e, nos casos mais graves, através de atos de exclusão camuflados hoje tipificados de assédio moral. A vítima não sabendo como reagir, introjeta o estigma, terminando por achar-se merecedora da rejeição".

Raymundo de Lima [25] traz um dado interessante e preocupante. "Recente investigação das causas dos atos amoucos em que jovens cometeram assassinatos múltiplos em algumas escolas norte americanas, divulgado no programa de TV ’60 minutos’ (2003), aponta a estigmatização, a intimidação, a provocação, com um flagelo em todos os EUA e acontecem diariamente nas escolas. Todos os dias mais de 100 mil crianças deixam de ir à escola, por temor dessas ameaças. Após esse estudo, esses crimes não mais são considerados produtos de psicóticos ou loucos. Suspeita-se que a maioria dessas tragédias ‘absurdas’ naquele país é decorrente ‘dessa situação infernal em que jovens são humilhados todos os dias e que decidem preferirem matar ou morrer a serem provocados outra vez’."

Segundo Ilana Laterman [26], Debarbieux propõe, a partir da pesquisa que realizou nos estabelecimentos escolares na França, "que o termo violência, tal como é usado socialmente, não é suficiente para explicar o que ocorre dentro das escolas. Para ele, o que leva ao clima de violência e insegurança na escola não são necessariamente atos de violência em si, mas antes aqueles atos chamados de incivilidades. Por incivilidade, entende Debarbieux, que é uma grande gama de fatos indo da indelicadeza, má criação das crianças ao vandalismo... As incivilidades mais inofensivas parecem ameaças contra a ordem estabelecida transgredindo os códigos elementares da vida em sociedade, o código de boas maneiras.... Não são então necessariamente comportamentos ilegais em seu sentido jurídico mas infrações à ordem estabelecida, encontradas na vida cotidiana".

Observou Ilana Laterman na sua pesquisa envolvendo duas escolas públicas de 5ª. a 8ª. série em Florianópolis, SC, que "os estudantes reconhecem manifestações de violência como comportamento entre alunos. Além das ofensas e das brigas, brincadeiras muito agressivas, ameaças entre alunos, humilhações e pequenos furtos. Os alunos explicam as causas das violências principalmente a partir das particularidades dos colegas como a ignorância, imaturidade, serem folgados. No olhar dos alunos existe a violência em seus estabelecimentos. A violência caracterizada como de pouca intensidade, são principalmente incivilidades e determinadas indisciplinas. Com menor freqüência, existem também situações bastante tensas, especialmente no horário de saída das aulas. As razões para estes acontecimentos, segundo os alunos, relacionam-se com o modo de ser dos colegas e com fatores escolares como clima da escola, relacionamento com professores, aulas, tipo de gestão".

A mesma autora declara que "viu nas escolas pesquisadas um excesso de individualismo que não leva em conta o coletivo. Por exemplo: deu vontade de dar a borracha para o colega na outra ponta da sala? Jogue a borracha; Não estudou para a prova? Discuta com o professor; Cansou da aula? Faça um passeio pela sala..."

"Há um abismo entre a proposta de uma sociedade baseada no indivíduo e este caos das condutas sociais, estes comportamentos em que ‘cada um faz o que lhe dá vontade’. O respeito ao indivíduo tem que existir, mas também o respeito ao outro". [27]

Podemos apreender dos dados trazidos neste capítulo, quanto o assédio moral está presente no ambiente educacional, ambiente este que deve ser o garantidor dos direitos fundamentais assegurando o seu aprendizado e a sua propagação. Fatores como o individualismo e o egoísmo ficam bastante ressaltados. A violência se apresenta como uma manifestação dessas características, não só em direção ao outro mas também em direção a si mesmo, como nos relatos dos atos amoucos, onde os indivíduos matam e depois se suicidam. Nesse sentido não podemos deixar de mencionar o tipo de sociedade que estamos inseridos, uma sociedade capitalista onde a "lei do Gerson" parece prevalecer e se afirmar evidenciando assim a brutalidade da exclusão.

Isso nos leva a crer que há uma necessidade real para postularmos um cuidado maior do Estado com as instituições de ensino, não objetivando a punição em si, mas o agir de forma preventiva visando garantir a saúde da sociedade e o meio ambiente. O Art. 225 da Constituição Federal estabelece que: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações".

Não há como negar a preocupação do Estado com a educação. As leis estão postas nesse sentido e não nos deixam mentir. Há toda uma responsabilidade teórica e formal que é preservada e que nos é conhecida. Excelentes currículos, o zelo em manter a disciplina pedagógica garantindo a presença dos alunos na escola etc. Os slogans principalmente na época de eleições políticas nos revelam esta preocupação: "educação para todos", por exemplo. Contudo, parece escapar questões fundamentais que dizem respeito à subjetividade que permeiam as relações e que se tornam cruciais para o desenvolvimento adequado do indivíduo.

É importante ressaltar a escassez de material teórico e pesquisas nesse sentido, o do assédio moral nas instituições de ensino. Testemunhamos esse vazio durante o decorrer desse trabalho e travamos uma concordância com Marie-France Hirigoyen e Margarida Barreto que reconhecem os poucos estudos realizados nessa área [28].

Não nos parece que é a falta de interesse pelo tema, mas sim o conhecimento precário dos direitos que nos tutelam.

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Sobre a autora
Lidia Pereira Gallindo

Psicóloga, advogada, pós-graduada em psicologia jurídica, psicoterapeuta breve, atendimento familiar, psicodiagnóstico infantil e adolescente, MBA em gestão em gestão em direito educacional (em curso)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALLINDO, Lidia Pereira. Assédio moral nas instituições de ensino. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2070, 2 mar. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/12396. Acesso em: 28 mar. 2024.

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