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O caso Roman Polanski.

A justiça restaurativa em face das funções da pena e da justiça tardia

15/11/2009 às 00:00
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Palavras-chaves: justiça restaurativa, função da pena, pena tardia.


O caso Polanski

O renomado diretor cinematográfico Roman Polanski, nome artístico de Rajmund Roman Liebling, premiado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes e com o Oscar de melhor diretor, ambos por seu filme O Pianista, de [2002], é objeto de discussão judicial internacional entre os EUA e a Suíça no que tange a sua extradição. Polanski encontra-se preso em Zurique desde o dia 27 de setembro do corrente ano pelas autoridades helvéticas, uma vez constar contra si um mandado internacional de prisão. Polanski viajou à Suíça para receber um prémio pela sua carreira cinematográfica.

O pedido de extradição se baseia em um mandado de prisão emitido pelo Tribunal Superior do Estado da Califórnia, EUA, em 1° de fevereiro de 1978, onde Polanski é acusado de abuso sexual contra uma jovem de 13 anos no ano de 1977. Nesse ano, Polanski fora preso em Los Angeles, EUA, e se declarou culpado por manter relações sexuais com uma menor de 13 anos de idade. Na época do crime, Polanski contava com 44 anos de idade e fora liberado após 42 dias, devendo comparecer quando intimado ao Tribunal, o que não aconteceu, pois Polanski fugiu para a França, restando contra si um mandado de detenção e um mandado de captura internacional. Desde então, Polanski se refugiou na França, e como um cidadão francês, foi protegido pela extradição limitada do país com os Estados Unidos.

Hoje, passados mais de trinta anos da ação delitiva, Polanski, 76 anos de idade, está detido em Zurique, na iminência de ser extraditado aos EUA e a cumprir sua condenação imposta por aquela Corte. A acusação é grave: em 1977, o réu manteve relações sexuais com uma adolescente de 13 anos, e, ainda segundo a acusação, o réu ofereceu álcool e drogas à vítima durante uma sessão de fotografias na casa do ator Jack Nicholson, em Hollywood.


Funções da pena

A pena é uma sanção indubitavelmente de caráter aflitivo [01], imposta pelo Estado, em execução de uma sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal. Esta sanção consiste na restrição ou privação de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao delinqüente, promover a sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela intimidação dirigida à coletividade. Nos povos primitivos, a idéia da pena nasceu do sentimento de vingança, inicialmente na forma privada, e posteriormente foi alçada à categoria de direito.

Três teorias tentam explicar a finalidade da pena:

1.Teoria absoluta ou retributiva - a finalidade é punir o autor do delito. A pena é a retribuição do mal injusto praticado pelo criminoso. Enfim, a pena retributiva esgota o seu sentido no mal que se faz sofrer ao autor do delito como compensação ou expiação do mal do crime. Trata-se de uma medida doutrinaria, distante de qualquer tentativa de socialização do delinqüente

2.Teoria relativa ou da prevenção - a pena tem um fim pratico e imediato de prevenção geral ou especial do crime. Nessa teoria se reconhece que, segundo sua essência, a pena se traduz num mal para quem a sofre, e como instrumento político-criminal, alcançar a finalidade precípua, precisamente, a prevenção ou a profilaxia criminal.

3.Teoria mista ou unificadora - a pena tem a função mista de punir o criminoso e prevenir a prática do crime, pela reeducação e intimidação coletiva. Tenta, então, recolher os aspectos mais destacados das teorias absolutas e relativas numa só.


Justiça restaurativa

Há grande dificuldade e complexidade em definir a justiça restaurativa. Segundo Raffaella Pallamolla [02], seus objetivos estão direcionados à conciliação e reconciliação entre as partes, à resolução do conflito, à reconstrução dos laços rompidos pelo delito, à prevenção da reincidência e à responsabilização, dentre outros.

Trata-se de uma aproximação que privilegia, segundo Jaccoud [03], toda forma de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as conseqüências vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a reconciliação das partes ligadas a um conflito.

Damásio de Jesus [04] a define como sendo um processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente por um crime, chamados de ‘partes interessadas principais’, para determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela transgressão. A justiça restaurativa proporciona àqueles que foram prejudicados por um incidente a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos, ainda evitando reincidência. Trata-se de ação reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal.

Conclui Damásio:

Trata-se, enfim, de suprir as necessidades emocionais e materiais das vítimas e, ao mesmo tempo, fazer com que o infrator assuma responsabilidade por seus atos, mediante compromissos concretos. O Papel das Partes Interessadas é o elemento estrutural cujo enfoque é relacionar o dano causado pela infração penal às necessidades específicas de cada interessado "e às respostas restaurativas necessárias ao atendimento destas necessidades.


A iminência do cárcere

O crime de estupro é um dos mais horrendos tipos criminais, sobretudo o estupro de incapaz. Nada mais funesto e repugnante aos olhos da sociedade. Porém, datissima venia, diante de todo esposado, onde podemos encontrar guarida no encarceramento de um senhor septuagenário que cometera um crime aos quarenta anos de idade, ou seja, há mais de 30 anos?

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Quando a sociedade civil clama por justiça, esta somente se faz a contento se ocorrer próxima ao acontecimento que a gerou.

A sensação de impunidade para os acusados e a sensação de injustiça para toda a sociedade, porque se um crime dessa envergadura demora a ponto de todos ficarem soltos, que dirá de outros crimes que não tiveram essa repercussão tão grande. [05]

O vaivém dos processos dentro das instancias do poder judiciário contribui para a morosidade da justiça e cria na população a sensação de impunidade. [06]

Os crimes de complexidade vultosa depreendem, decerto, maior tempo para sua apuração e julgamento, o que ocasiona arrefecimento do ímpeto processual e, por conseguinte, o esquecimento social, produzindo o sentimento de impunidade.

Ao cair no esquecimento social, a justiça tardia, juntamente com a pena tardia, não mais consegue irradiar sua função preventiva, seja geral ou mesmo especial. Nesses casos, como o caso Polanski, uma vez sendo ele extraditado e encarcerado, a única função da pena restar-se-á puramente retributiva, punitiva, primitiva.

O cumprimento da reprimenda restritiva de liberdade no caso em tela somente nos transporta a pena como retribuição pelo mal causado. Ora, não há falar-se em prevenção, pois um delito ocorrido na década de 70 não tem a capacidade de influenciar ou mesmo servir de pano de fundo a atos atuais, mesmo porque já esquecido pela sociedade. Tenha-se a consciência que o fato ocorreu há 30 anos e não há 3 dias, 3 semanas ou 3 anos.

Também não há falar-se em prevenção especial, haja vista que se trata de réu septuagenário e o delito ocorreu, repetimos, há 30 anos. A pena por sua vez também não pode ter o caráter de readaptação, reintegração social, uma vez o réu estar inserido na sociedade desde então sem que tenha se manifestado à margem da legislação, ou seja, sem que tenha delinqüido ou mesmo reincidido. Resta, de certo, a pena como castigo, sofrimento, padecimento, ou seja, em sua função primitiva de punição.


Considerações finais

O crime de estupro sempre representou a principal expressão de violência contra a mulher [07]. Não importa o decurso de tempo, as marcas na alma parecem nunca se apagar.

Porém, no caso em comento, a vítima do delito, que contava apenas com 13 anos de idade à época do fato, Samantha Geimer, requereu na justiça americana que o processo contra Polanski fosse suspenso. A petição foi ofertada por seu advogado, Lawrence Silver, junto a Justiça da Califórnia [08].

Resta típica ocorrência aparente de justiça restaurativa, no mínimo em sua forma parcial. Eis um conflito patentemente resoluto, ao menos por parte da vítima, interessada primordial na contenda.


Referências

NERY, Dea Carla. Teorias da pena e sua finalidade no direito penal brasileiro. Disponível em: http://www.uj.com.br/publicacoes/doutrinas/2146. Acesso em: 12 de out. 2009.

MARCÃO, Renato; MARCON, Bruno. Rediscutindo os fins da pena. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2661>. Acesso em: 29 out. 2009.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 7ª edição. Editora Saraiva, 2004.

JACCOUD, Milene. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa. Brasília/DF: Ministério da Justiça e PNUD, 2005.

PALLAMOLLA, Raffaella da Porciúncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. 1ª edição. São Paulo: IBCCRIM, 2009.

JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7359>.


Notas

  1. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 7ª edição. Editora saraiva, 2004.
  2. PALLAMOLLA, Raffaella da Porciúncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. 1ª edição. São Paulo: IBCCRIM, 2009, p. 54.
  3. JACCOUD, Milene. Princípios, tendências e procedimentos que cercam a justiça restaurativa. Brasília/DF: Ministério da Justiça e PNUD, 2005, p. 169.
  4. JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7359>. Acesso em: 12 out. 2009.
  5. Pai do juiz Alexandre Martins assassinado em março de 2003. Gazeta Online. Disponível em: http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2008/12/40636
  6. Wanessa Rodrigues acerca do caso Blue Bar, onde fora assassinado em 12 de janeiro de 1997 o empresário Florival Lobo de Andrade e ainda se aguarda o julgamento. Diário da Manha. Disponível em: www.marconiperillo.com.br/site/iframe/noticias.
  7. Vide artigo deste autor em Jus Navigandi, Teresina, ano 13, n. 2241, 20 ago. 2009. CHAGAS, José Ricardo. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/13359>. A nova lei do estupro: O homem e a mulher como sujeitos ativo e passivo e o abrandamento punitivo.
  8. G1 Globo. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Cinema/0,,MUL1355298-7086,00.html
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Sobre o autor
José Ricardo Chagas

Criminalista. Doutorando em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidad del Museo Social Argentino. Especialista em Ciências Criminais pela Uniahna. Especialista em Polícia Comunitária pela Universidade do Sul de Santa Catarina. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CHAGAS, José Ricardo. O caso Roman Polanski.: A justiça restaurativa em face das funções da pena e da justiça tardia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2328, 15 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13849. Acesso em: 28 mar. 2024.

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