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A inconstitucionalidade da vedação à concessão de liberdade provisória prevista no artigo 44 da Lei nº11343/06

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Sobre recentes discussões atinentes a eventual cabimento de concessão de Liberdade Provisória a pessoas presas em flagrante delito após 08 de outubro de 2006, acusadas de cometimento de crime de tráfico (previsto na Lei nº 11.343/2006), ouso expor duas teses que seguem a justificarem o ponto de vista de que cabe a referida concessão em tal situação.


1ª tese - A ilegalidade:

A Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, Nova Lei de Tóxicos, entrou em vigor no dia 8 de outubro de 2006, e seu artigo 44, caput, veda expressamente a concessão de Liberdade Provisória, com ou sem fiança, em se tratando da prática dos crimes previstos nos artigos 33, caput e § 1º, e 34 a 37.

A nova disciplina imposta pela Lei nº 11.464, de 28 de março de 2007, derrogou o artigo 44 da Nova Lei de Tóxicos e, portanto, não subsiste a regra proibitiva do benefício em questão.

Note-se que a Lei nº 11.464/2007 é posterior à Nova Lei de Tóxicos e a redação do artigo 2º, caput, da Lei nº 8.072/90, foi mantida, estando preservada sua aplicação aos crimes hediondos [01], tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e terrorismo [02].

É indiscutível o cabimento, em tese, de Liberdade Provisória, sem fiança, em se tratando de crime de tráfico de drogas e delitos equiparados, previstos na Nova Lei de Tóxicos. A opção legislativa neste sentido restou clara [03].

"Ao interpretar-se o panorama jurídico da coexistência das duas mencionadas leis, não há qualquer dúvida de que a Lei n.º 11.464/07, lei nova geral, tem o sentido de abolir as disposições preexistentes referentes à matéria liberdade provisória. Seja porque há a incompatibilidade do artigo 2º, inciso II, da Lei n.º 8.072/90, alterada pela Lei n.º 11.464/07, com a redação do artigo 44 da Lei n.º 11.343/06, no que tange à concessão de liberdade provisória aos acusados de tráfico de drogas, seja porque interpretar-se de forma diferente seria ferir o apotegma constitucional da isonomia. É que restaria proibido a concessão de liberdade provisória a crime equiparado a hediondo e permitida a concessão da benesse aos crimes ontologicamente considerados hediondos, tais como o homicídio praticado em atividade típica de grupo de extermínio, homicídio qualificado, latrocínio, extorsão qualificada pela morte, extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada, estupro, atentado violento ao pudor e epidemia com resultado morte.

Ao Estado não cabe apenas o mister de legislar, para efetivar os direitos fundamentais previstos na constituição, mas, realizar esse trabalho de forma adequada e proporcional. E isso significa dizer que quando a tarefa de legislar for realizada de modo a não abranger situações jurídicas idênticas entre si, haverá incongruência legislativa, afrontando-se, de per si, o princípio da isonomia.

À evidência, na hipótese do tema em apreço, é bom que se destaque, não há um fator sequer que justifique o tratamento diferenciado entre os acusados de tráfico ilícito de entorpecentes, cuja hipótese penal é disciplinada na Lei n.º 11.343/06, e os acusados de crimes hediondos previstos na Lei n.º 8.072/90. Ao que se percebe, não há qualquer pertinência lógica em conceber esse tratamento diferenciado." [04]

E ainda que não se aceite essa primeira tese, de mesmo modo resta infundada qualquer negativa de concessão de Liberdade Provisória, pelos outros fundamentos a seguir contidos em outra tese.


2ª tese - A Inconstitucionalidade:

O pedido de Concessão de Liberdade Provisória, feito por algum cidadão preso em flagrante [06] delito sob acusação de tráfico de drogas a Autoridade Judiciária [07], que por sua vez nega o pedido sem justificar a negativa, unicamente ponderando se tratar de vedação legal contida na lei nº 11.343/2006 [08] (exatamente como se fazia ao se referirem as decisões judiciais à condição de crime hediondo, que vedaria automaticamente a concessão de Liberdade Provisória, ato já tisnado de inconstitucional pelos Tribunais Superiores, mas que ora se evidencia repetir de forma oblíqua), o que ensejaria – por si só – a negativa à concessão da Liberdade Provisória pleiteada, deve ser analisado sob essa luz que ora se acende.

Como se nota, essa novel Lei nº 11.343/2006 trouxe vedação automática, idêntica àquela anteriormente existente na Lei de Crimes Hediondos (Lei nº 8.072/90), com sua redação anterior à sua modificação perpetrada pela norma oriunda do texto da Lei nº 11.464/07 [09]. Inobstante, a própria Lei de Crimes Hediondos com aquela primeva redação já foi reconhecida [10] como inconstitucional por vedar [11] progressão de regime mediante presunção de necessidade objetiva, individualizada, como se possível fosse combinar presunção com objetividade e individualização. Quanto à negativa de concessão de Liberdade Provisória (com ou sem fiança) prevista na redação original dessa Lei de Crimes Hediondos, o Excelso Supremo [12] e o próprio Colendo Superior Tribunal de Justiça [13] já se pronunciaram em outras oportunidades, apesar de o terem feito de forma difusa, inter partes, quando provocados, reconhecendo de mesma forma a inconstitucionalidade dessa vedação.

E o mesmo Excelso Supremo reconheceu inconstitucional (agora em controle concentrado, na ADI nº 3.112) a vedação automática à concessão de Liberdade Provisória (com ou sem fiança) existente na Lei de Armas, nº 10.826/03 [14], por violar a presunção de não-culpabilidade, proporcionalidade e o devido processo legal [15] (ampla defesa e contraditório). Assim, resta evidente que qualquer forma presumida e infraconstitucional de se proibir seja concedida Liberdade Provisória, ainda que sem fiança (quando ausentes os elementos que ensejam a Prisão Preventiva, ou quando impossível ao requerente que preste a fiança estabelecida) é inconstitucional, além de evidentemente incivil e injusta.

Como princípio cardeal do Direito devido processo multinormativo [16], já mencionava CANOTILHO, em seu Direito Constitucional e Teoria da Constituição [17]¸ao relembrar JHERING:

"a forma é inimiga jurada do arbítrio e irmã gêmea da liberdade".

Ademais, os Juízes devem dirigir o processo de forma a não sacrificar a justiça e o devido processo, em favor do formalismo (Corte Interamericana, Caso Myrna Mack Chang, sentença 25.11.2003, parágrafo 211) [18], a se reconhecer respeito ao devido processo do Direito substancial. Que se peque pelo excesso, mas nunca pela falta, em respeito ao substantive due process of law [19].

A óbvia e inelutável conclusão é de que a omissão constitui nulidade (cf. artigo 564, item IV, do CPP [20]) e implica violação da garantia constitucional de que ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal, a cujo respeito disserta J. CRETELLA JÚNIOR:

"A expressão ‘devido processo legal’ é versão ad litteram da expressão inglesa due process of law, cuja tradução correta e correspondente em nossa língua deverá ser ‘adequado processo jurídico’. Due, em inglês, é ‘devido, próprio, adequado. ...

"DEVIDO PROCESSO LEGAL é aquele em que todas as formalidades foram observadas..." [21]

"Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal." [22]

"Verba cum effectu sunt accipienda. Não se presumem, na lei, palavras inúteis’. Literalmente: ‘Devem-se compreender as palavras como tendo alguma eficácia.’" [23]

Não é demasiado trazer o que a Doutrina nacional menciona sobre o assunto que ora se traz à baila:

"A lei do processo penal contém regras puramente técnicas, normas imperfeitas, em que o preceito é desacompanhado de sanção; mas as normas realmente jurídicas, isto é, aquelas que não são apenas formalmente jurídicas, por estarem incorporadas à lei, mas que são substancialmente, essencialmente jurídicas, que regulam atos sem os quais o processo não atinge suas finalidades de Direito, essas são normas perfeitas, contêm preceito e sanção.

"De que adiantaria prescrever a forma, o lugar, o tempo dos atos processuais, se os respectivos preceitos pudessem ser violados, desatendidos, desobedecidos sem qualquer consequência?" . [24]

"Assim como ocorre com o descumprimento do modelo legal, também a inobservância da norma constitucional acarreta a desconformidade com o modelo imposto pela Lei Maior, ocasionando o fenômeno da atipicidade constitucional.

"No caso de atipicidade constitucional, descumprida a observância do tipo imposto pela Constituição, a estatuição de invalidade há de ser buscada na própria Constituição ou no ordenamento como um todo. (...)

"Em outras hipóteses, como a da inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, a Constituição não estabelece a sanção de ineficácia para as provas obtidas em desconformidade com o art. 5º, LVI, CF. A sanção deverá ser buscada nos princípios gerais do ordenamento.

"O preceito constitucional com relevância processual como norma de garantia

"Os preceitos constitucionais com relevância processual têm a natureza de norma de garantia, ou seja, de normas colocadas pela Constituição como garantia das partes e do próprio processo.

"Da idéia individualista das garantias constitucionais-processuais, na ótica a exclusiva de direitos subjetivos das partes, passou-se, em épocas mais recentes, ao enfoque das garantias do devido processo legal como sendo qualidade do próprio processo, objetivamente considerado, e fato legitimante do exercício da função jurisdicional. (...) Isso representa um direito de todo o corpo social, interessa ao próprio processo para além das expectativas das partes e é condição inafastável para uma resposta jurisdicional imparcial, legal e justa". [25]

"Como já se disse, a infringência à norma constitucional com conteúdo de garantia acarreta, como sanção, a nulidade absoluta". [26]

"A expressão due process of law, advertiu Thomas Cooley, é usada para ‘explicar e expandir os termos vida, liberdade e propriedade e para proteger a liberdade e a propriedade contra a legislação opressiva ou não razoável (...)’ (The general principles of Constitutional Law in the United States of America, Boston, Little, Brown, and Co., 1931, p. 279).

"Todavia, do modo como veio na Constituição de 1988, o devido processo legal extrapola o trinômio básico vida, liberdade, propriedade. Isto porque, ‘os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte’ (art. 5º, § 2º).

"De qualquer forma, tudo aquilo que for referente à proteção da vida, da liberdade, coaduna-se com o sobreprincípio do devido processo legal. Diz-se sobreprincípio, porque ele é o fundamento sobre o qual todos os outros direitos fundamentais repousam". [27]

Um dos pilares sobre os quais se assenta o Estado brasileiro é a dignidade da pessoa humana, e dentre os princípios pelos quais o país se rege em suas relações internacionais está a prevalência dos Direitos Humanos, sendo o Brasil signatário dos principais pactos internacionais sobre direitos humanos, inclusive o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado na legislação interna por força do Dec. 591, de 06.07.1992, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), à qual aderiu por força do Dec. 678, de 06.10.1992 [28].

Não é outro o motivo pelo qual o Legislativo Federal, antevendo o rumo que a Lei de Crimes Hediondos – em especial as vedações existentes na sua redação anterior à Lei nº 11.464/07 - vinha tomando aos olhos dos Tribunais Superiores (o Enunciado nº 05 [29] da Proposta de Súmulas Vinculantes do STF – EC/45 [30] - tratava exatamente desse assunto, o que demonstra sua gravidade, bem como a uniformidade de entendimento), a modificou com a já referida Lei nº 11.464/07 [31], e assim retirou de seu texto original as vedações às progressões de regime (apesar de hodiernamente serem possíveis, são absurdamente severas, resultando mais num mero paliativo quanto à declaração que o STF vinha dando há tempos sobre a inconstitucionalidade da Lei nº 8.072/90 original) e à concessão de Liberdade Provisória sem fiança (permanecendo na nova redação unicamente a vedação à concessão de fiança).

Até mesmo a negativa de substituição de penas privativas de liberdade por penas restritivas de direito, anteriormente presente na Lei nº 8.072/90 (mas não na Lei nº 11.409/02, que antecedeu a Lei nº 11.343/06 sobre o mesmo tema – combate às Drogas), foi rechaçada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça logo em seguida ao início das decisões emanadas das Turmas [32] do Excelso Supremo Tribunal Federal que reconheciam ser inconstitucional a negativa de progressão de regime com base na Lei nº 8.072/90 original. Contudo, hoje essa vedação de substituição de penas privativas de liberdade por penas restritivas de direito, apesar de ter sido afastada da Lei de Crimes Hediondos, foi inserida na Lei de Tóxicos nova (11.343/06), vedação que certamente deverá ser reconhecida como inconstitucional pelos Magistrados que a analisarem pontualmente, até que em controle concentrado o faça o Excelso Supremo, como nas outras oportunidades mencionadas alhures.

Por isso, em que pese ser a Lei Antidrogas especializada [33] (tanto as já revogadas 6.368/76 e 10.409/02 ou a atual, 11.343/06), destarte aplicável em detrimento da Lei de Crimes Hediondos (mais genérica) naquilo em que com ela conflite, mesmo com sua nova redação (11.343/06) [34], resta a mesma inconstitucional no tocante à vedação de concessão de Liberdade Provisória pelos mesmos motivos que se deram ao reconhecimento de que as outras Leis já mencionadas eram inconstitucionais no tocante à essa vedação.

Contudo, mercê o registro que há decisões recentes de Turma do Excelso STF (HC/93302, HC 93991/SP DJ 27-06-2008 e HC 92495 / PE DJ 13-06-2008) [35] que afirmam ser a vedação de concessão liberdade provisória presente na Lei 11343/06 constitucional, o que é um absoluto contra-senso às decisões proferidas anteriormente, e já mencionadas. Por exemplo, quando aquele pretório Excelso analisava a vedação de liberdade provisória com fiança na Lei de Tortura, dizia que caberia liberdade provisória sem fiança porque a CRFB/88 previa isso. Em outro exemplo, reconheceu inconstitucional a vedação automática prevista no Estatuto do Desarmamento (10.826/03), como já lançado alhures.

"... não é possível reconhecer como legítimas as reiteradas decisões que estão sendo proferidas no âmbito da Primeira Instância, Tribunais de Justiça dos Estados, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, no sentido de que incabível a liberdade provisória aos acusados de tráfico ilícito de entorpecente, delito equiparado a hediondo, apenas em razão da vedação prevista no artigo 44 da Lei n.º 11.343/06..."[36]

Adequado ao presente estudo, transcrever trecho da decisão proferida pelo eminente Ministro do Excelso Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, em medida cautelar concedida nos autos do processo da Ação com pedido de Habeas Corpus nº 94.404 MC/SP [37], em que analisava a vedação automática à concessão de liberdade provisória, prevista na Lei de Crime Organizado (Lei nº 9.034/95):

"... a compulsória adoção, por autoridades judiciárias nacionais, de medidas de privação cautelar da liberdade individual, ou que vedem, em caráter imperativo, a concessão de liberdade provisória, não podem prevalecer em nosso sistema de direito positivo, sob pena de gravíssima ofensa à garantia constitucional da presunção de inocência, dentre outros princípios constitucionais que informam e compõem o estatuto jurídico daqueles que sofrem persecução penal instaurada pelo Estado.

Daí não ser apropriado invocar-se o art. 7º da Lei nº 9.034/95 para, com apoio nele, justificar-se um decreto judicial de privação cautelar da liberdade individual (Apenso 01, fls. 207).

Mostra-se importante ter presente, no caso, que o referido art. 7º da Lei do Crime Organizado (Lei nº 9.034/95) proíbe, de modo abstrato e "a priori", a concessão da liberdade provisória "aos agentes que tenham tido intensa e efetiva participação na organização criminosa".

Essa regra legal veio a ser reproduzida, com conteúdo material virtualmente idêntico, pela Lei nº 10.826/2003, cujo art. 21 estabelecia que "Os crimes previstos nos arts. 16, 17 e 18 são insuscetíveis de liberdade provisória" (grifei).

A vedação apriorística de concessão de liberdade provisória é repelida pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que a considera incompatível, independentemente da gravidade objetiva do delito, com a presunção de inocência e a garantia do "due process", dentre outros princípios consagrados pela Constituição da República. Foi por tal razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 3.112/DF, Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI, declarou a inconstitucionalidade do art. 21 da Lei nº 10.826/2003, (Estatuto do Desarmamento), em decisão que, no ponto, está assim ementada:

"(...) V - Insusceptibilidade de liberdade provisória quanto aos delitos elencados nos arts. 16, 17 e 18. Inconstitucionalidade reconhecida, visto que o texto magno não autoriza a prisão ‘ex lege’, em face dos princípios da presunção de inocência e da obrigatoriedade de fundamentação dos mandados de prisão pela autoridade judiciária competente." (grifei)

O eminente penalista LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com Raúl Cervini ("Crime Organizado", p. 171/178, item n. 4, 2ª ed., 1997, RT), expõe, de modo irrefutável, a evidente inconstitucionalidade do art. 7º da Lei nº 9.034/95, advertindo, com absoluta correção, que a vedação legal em abstrato da concessão da liberdade provisória transgride "o princípio da presunção de inocência", afronta "a dignidade humana" e viola "o princípio da proibição do excesso".

Essa mesma orientação é perfilhada por GERALDO PRADO e WILLIAM DOUGLAS ("Comentários à Lei contra o Crime Organizado", p. 87/91, 1995, Del Rey), que também vislumbram, no art. 7º da Lei do Crime Organizado, o vício nulificador da inconstitucionalidade, resultante da ofensa ao postulado da presunção de inocência e do desrespeito ao princípio da proporcionalidade, analisado este na dimensão que impõe, ao Estado, a proibição do excesso.

Diversa não é, na matéria, e com referência específica ao art. 7º da Lei do Crime Organizado, a lição de ROBERTO DELMANTO JUNIOR ("As modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração", p. 142/150, item n. 2, "c", 2ª ed., 2001, Renovar), que adverte, com inteira razão, apoiando-se em magistério de outro eminente autor (ALBERTO SILVA FRANCO, "Crimes Hediondos", p. 489/500, item n. 3.00, 5ª ed., 2005, RT), que se mostra inconstitucional a proibição abstrata, em lei, da concessão da liberdade provisória, pois tal vedação, além de lesar os postulados do "due process of law" e da presunção de inocência, também se qualifica como ato estatal que transgride o princípio da proporcionalidade, no ponto em que este impõe, ao Estado, a proibição do excesso.

Vê-se, portanto, que o Poder Público, especialmente em sede processual penal, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade.

Como se sabe, a exigência de razoabilidade traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo.

O exame da adequação de determinado ato estatal ao princípio da proporcionalidade, exatamente por viabilizar o controle de sua razoabilidade, com fundamento no art. 5º, LV, da Carta Política, inclui-se, por isso mesmo, no âmbito da própria fiscalização de constitucionalidade das prescrições normativas emanadas do Poder Público.

Esse entendimento é prestigiado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que, por mais de uma vez, já advertiu que o Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade.

Coloca-se em evidência, neste ponto, o tema concernente ao princípio da proporcionalidade, que se qualifica - enquanto coeficiente de aferição da razoabilidade dos atos estatais (CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, "Curso de Direito Administrativo", p. 56/57, itens ns. 18/19, 4ª ed., 1993, Malheiros; LÚCIA VALLE FIGUEIREDO, "Curso de Direito Administrativo", p. 46, item n. 3.3, 2ª ed., 1995, Malheiros) - como postulado básico de contenção dos excessos do Poder Público.

Essa é a razão pela qual a doutrina, após destacar a ampla incidência desse postulado sobre os múltiplos aspectos em que se desenvolve a atuação do Estado - inclusive sobre a atividade estatal de produção normativa - adverte que o princípio da proporcionalidade, essencial à racionalidade do Estado Democrático de Direito e imprescindível à tutela mesma das liberdades fundamentais, proíbe o excesso e veda o arbítrio do Poder, extraindo a sua justificação dogmática de diversas cláusulas constitucionais, notadamente daquela que veicula, em sua dimensão substantiva ou material, a garantia do "due process of law" (RAQUEL DENIZE STUMM, "Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro", p. 159/170, 1995, Livraria do Advogado Editora; MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "Direitos Humanos Fundamentais", p. 111/112, item n. 14, 1995, Saraiva; PAULO BONAVIDES, "Curso de Direito Constitucional", p. 352/355, item n. 11, 4ª ed., 1993, Malheiros).

Como precedentemente enfatizado, o princípio da proporcionalidade visa a inibir e a neutralizar o abuso do Poder Público no exercício das funções que lhe são inerentes, notadamente no desempenho da atividade de caráter legislativo. Dentro dessa perspectiva, o postulado em questão, enquanto categoria fundamental de limitação dos excessos emanados do Estado, atua como verdadeiro parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.

Isso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.

A jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal, bem por isso, tem censurado a validade jurídica de atos estatais, que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos das pessoas (RTJ 160/140-141, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 176/578-579, Rel. Min. CELSO DE MELLO - ADI 1.063/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Em suma, cabe advertir que a interdição legal "in abstracto", vedatória da concessão de liberdade provisória, como na hipótese prevista no art. 7º da Lei nº 9.034/95, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao art. 21 do Estatuto do Desarmamento, considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por semelhante regra legal, eis o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal.

O magistrado, no entanto, sempre poderá, presente situação de real necessidade, evidenciada por fatos que dêem concreção aos requisitos previstos no art. 312 do CPP, decretar, em cada caso, quando tal se mostrar imprescindível, a prisão cautelar da pessoa sob persecução penal..."

Segundo esse mesmo Ministro Celso de Mello (em medida cautelar concedida nos autos do processo da Ação com pedido de Habeas Corpus nº 96.715-9/SP), o Excelso Supremo Tribunal Federal – analisando a vedação existente na Lei nº 11.343/06 - tem censurado a validade jurídica de atos estatais "... que, desconsiderando as limitações que incidem sobre o poder normativo do Estado, veiculam prescrições que ofendem os padrões de razoabilidade e que se revelam destituídas de causa legítima, exteriorizando abusos inaceitáveis e institucionalizando agravos inúteis e nocivos aos direitos da pessoa ... Daí a advertência de que a interdição legal in abstracto, vedatória da concessão de liberdade provisória, como na hipótese prevista no artigo 44 da Lei 11.343/06, incide na mesma censura que o Plenário do Supremo Tribunal Federal estendeu ao artigo 21 do Estatuto do Desarmamento, considerados os múltiplos postulados constitucionais violados por semelhante regra legal, eis o legislador não pode substituir-se ao juiz na aferição da existência, ou não, de situação configuradora da necessidade de utilização, em cada situação concreta, do instrumento de tutela cautelar penal ...", concluiu o Ministro na decisão monocrática, cuja Ementa segue:

Habeas Corpus nº 96.715-9/SP - Medida Cautelar deferida em

19 de dezembro de 2008

EMENTA: "HABEAS CORPUS". VEDAÇÃO LEGAL ABSOLUTA, EM CARÁTER APRIORÍSTICO, DA CONCESSÃO DE LIBERDADE PROVISÓRIA. LEI DE DROGAS (ART. 44). INCONSTITUCIONALIDADE. OFENSA AOS POSTULADOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA, DO "DUE PROCESS OF LAW", DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA PROPORCIONALIDADE. O SIGNIFICADO DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE, VISTO SOB A PERSPECTIVA DA "PROIBIÇÃO DO EXCESSO": FATOR DE CONTENÇÃO E CONFORMAÇÃO DA PRÓPRIA ATIVIDADE NORMATIVA DO ESTADO. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ADI 3.112/DF (ESTATUTO DO DESARMAMENTO, ART. 21). CARÁTER EXTRAORDINÁRIO DA PRIVAÇÃO CAUTELAR DA LIBERDADE INDIVIDUAL. NÃO SE DECRETA PRISÃO CAUTELAR, SEM QUE HAJA REAL NECESSIDADE DE SUA EFETIVAÇÃO, SOB PENA DE OFENSA AO "STATUS LIBERTATIS" DAQUELE QUE A SOFRE. EVASÃO DO DISTRITO DA CULPA: FATOR QUE, POR SI , NÃO AUTORIZA A PRISÃO PREVENTIVA. IRRELEVÂNCIA, PARA EFEITO DE CONTROLE DA LEGALIDADE DO DECRETO DE PRISÃO CAUTELAR, DE EVENTUAL REFORÇO DE ARGUMENTAÇÃO ACRESCIDO POR TRIBUNAIS DE JURISDIÇÃO SUPERIOR.  PRECEDENTES. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. [38]

E nessa mesma esteira de entendimento, decidiu por unanimidade a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça:

Processo penal. Tráfico de drogas. Liberdade provisória. Possibilidade. Vedação legal do art. 44 da L. 11.343/06 que deve ser afastada.

"A gravidade abstrata do delito atribuído ao agente é insuficiente para a manutenção de sua prisão provisória, sob pena de afronta à garantia constitucional de presunção de não-culpabilidade. Precedentes. Da mesma forma, a invocação da repercussão social do delito não se presta para a justificação da constrição cautelar, sob pena de antecipação do cumprimento da reprimenda, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio, notadamente quando a quantidade de drogas encontrada em poder dos agentes não se mostra expressiva. Precedentes. Unicamente a vedação legal contida no artigo 44 da Lei 11.343/2006 é insuficiente para o indeferimento da liberdade provisória, notadamente em face da edição da Lei 11.464/2007, posterior e geral em relação a todo e qualquer crime hediondo e/ou assemelhado. Precedentes. Dado provimento ao recurso para deferir ao recorrente os benefícios da liberdade provisória" (STJ – 6ª Turma - RHC 24.349 – relatora a eminente Desembargadora convocada Jane Silva – julgado em 11.11.2008 - DJU 01.12.2008).

É bem verdade que a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada (e não outorgada, e isso merece registro) em 1988, prevê casos em que não se concede a fiança [39] (a Carta Magna não veda a concessão de Liberdade Provisória, mas unicamente a concessão de fiança), mas são casos devidamente estabelecidos como tais [40], e ademais, o CPPB prevê Liberdade Provisória sem fiança, quando ausentes [41] os elementos que ensejariam a Prisão Preventiva [42].

"... O direito à Liberdade Provisória não é absoluto, estando sujeito a condições e limitações. Da mesma forma que a detenção e a prisão provisória, a lei deveria manter um equilíbrio justo entre os direitos do indivíduo e os interesses legítimos do Estado..." [43]

Alberto Silva Franco [45] deixa claro que Liberdade Provisória é gênero, onde residem as espécies sem fiança e com fiança. Não são, portanto, idênticas as situações, tanto que o texto constitucional as difere [46]. Enaltece ainda suas ponderações há tempos publicadas na doutrina escrita nacional, em que registra ser obrigação imposta ao Legislador Ordinário se manter dentro dos limites impostos pelo Legislador Constituinte, pois esse último expressou as restrições que deveria o Legislador Ordinário regulamentar, não cabendo, portanto, a esse Legislador Ordinário, destarte superveniente, ultrapassar os limites em assunto desse jaez, impondo restrições que não foram previstas na Lei Maior; destarte acaso instituídas restrições inéditas pelo Legislador Ordinário, certamente estarão em confronto aos vários direitos e princípios inscritos no micro-sistema [47] existente na Carta, tal como redigida pelo Legislador Constituinte.

Sendo assim, ainda que tivesse incorrido em equívoco o legislador ordinário (acreditando-se que ele objetivasse algo diverso daquilo que ao final promulgou), esse retirou a possibilidade de concessão de fiança em certas situações (323 [48] do CPP, que se alinha ao micro-sistema previsto pelo legislador constituinte na CRFB/88, artigo 5º, XLIII) mas não de Liberdade Provisória, a qual por exclusão será sempre concedida sem fiança quando o acusado se livrar solto (artigo 321 [49] do CPP), quando não for permitida a concessão de fiança (artigo 323 do CPP – nesse caso é possível que o legislador quisesse dizer que não caberia Liberdade Provisória – com ou sem fiança - mas unicamente afirmou que não caberia fiança, não alcançando assim essa vedação a Liberdade Provisória sem fiança) ou quando não tiver o acusado condições de prestá-la (artigo 350 [50] do CPP).

Canotilho já salientava: "...uma lei restritiva mesmo adequada e necessária pode ser inconstitucional quando adote ''cargas coativas'' de direitos e garantias ''desmedidas'', ''desajustadas'', ''excessivas'' ou ''desproporcionais'' em relação aos resultados obtidos" [51].

A ordem constitucional prevê a tripartição de poderes como meio de fiscalização e controle institucional, cabendo ao Judiciário a observância da legalidade, para cuja tarefa deve manter-se isento. Alberto Silva Franco ensina com precisão que "é inafastável, no Estado Social e Democrático de Direito, uma ligação muito estreita entre o juiz e a Constituição. Entre os dois deve viger uma relação de intimidade: direta, imediata, completa" [52].

O mesmo mestre Silva Franco, ao prefaciar obra da brilhante professora Alice Bianchini [53], deixa mais uma lição:

"... Se o legislador falha em qualquer dos momentos desse processo para o qual está, de imediato, convocado a atuar, o juiz deve ocupar seu espaço, não para substituí-lo porque não é sua tarefa realizar os concatenados momentos do processo incriminador, mas para declarar a lei embora vigente, não tem validade por afrontar, de modo flagrante, os princípios constitucionais que devem reger a intervenção punitiva...de tão pesada carga negativa permite, a pretexto de uma cruzada mundial, reduzir liberdades, subverter garantias materiais e processuais já consagradas, desconhecer direitos reconhecidos a todo os seres humanos e fenecer o regime democrático. Já, há algum tempo, se cogitara de um ‘direito penal do inimigo’ em contraste com o direito penal do cidadão ... "

Nessa mesma esteira, Zaffaroni [54]:

..."Las manifestaciones autoritárias em el orden procesal no se agotan em lo que hace a la competencia, sino que, siguiendo la tendencia del decrecho proceal penal autoritário, se estabelecen procedimientos especiales, diverso del proceso ordinario. Sua características son también las próprias de la `guerra`, es decir, mayor rapidez em detrimento de la seguridad del procesado...una celeridade que procure uma mayor `eficácia` repressiva ... Es bastante elocuente la tendência a suprimir garantias procesales ..."

Já trazia essa orientação Luiz Flávio Gomes ao tratar da premência do estudo dos institutos de Direito Internacional, que hoje regulam os limites desses poderes internos – acima referidos - dos Estados soberanos, quando escreveu o artigo "Do Estado de Direito legal ao transnacional" [55], onde esclarece o roteiro da evolução do Absolutismo ao Estado de Direito legalista para o constitucionalista, seguido então pelo transnacionalista. E menciona que já se concebe até mesmo, no começo desse novo milênio, a existência do Estado de Direito global:

"O Estado de Direito legal (ou legalista ou positivista ou burguês-liberal) nasceu no século XIX (por força da burguesia ascendente), mas é evidente que foi antecedido de vários movimentos filosóficos que contestavam o poder absoluto (ou seja: o "ancién regime" ou Estado absoluto monárquico). Esse modelo de Estado legalista retratou a primeira onda evolutiva do Estado.

Dois outros modelos de Estado (na verdade sub-modelos) tentaram superar esse Estado liberal, mas, continuaram fulcrados fundamentalmente no legalismo, sem alcançar o "paradigma" constitucionalista: Estado social de Direito e Estado democrático de Direito.

O Estado social de Direito constituiu reação contra o individualismo e abstencionismo do Estado liberal; o Estado democrático configurou uma tentativa de concretização material do Estado social (ou seja: superação do individualismo, do neocapitalismo etc.). Duas correntes socialistas se destacaram: uma de cunho marxista (que conduziu às revoluções na Rússia, em 1917, e na China, em 1949) e outra não marxista. Ambas contestavam o individualismo burguês, a insuficiente garantia que o Direito representava para grande parcela da população, a ausência de proteção efetiva dos direitos individuais e econômicos, a irrealização da igualdade material etc.

Confiava-se no intervencionismo estatal, ou seja, o Estado não pode ficar ausente do objetivo de alcançar conquistas econômicas e sociais. Nascia, desse modo, o chamado Estado de bem-estar ou Estado de bem-estar social, que acabou recebendo o impulso do movimento de democratização material.

O Estado democrático de Direito surgiu justamente para possibilitar a todos a justiça social. A síntese se dá com o Estado democrático e social de Direito, que vem a ser a soma das liberdades conquistadas com o Estado liberal mais a busca pela justiça social.

A segunda onda evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça vem representada pelo chamado Estado de Direito constitucional (EDC), que se apresenta, desde a Segunda Guerra Mundial, como a base jurídico-normativa (mais evoluída) das sociedades civilizadas. A evolução do velho Estado de Direito legal (liberal ou social ou democrático social) para o Estado de Direito constitucional retrata um avanço (jurídico e político) extraordinário. Há uma mudança de "paradigma", que nenhum meio acadêmico pode (mais) ignorar. Pode-se não concordar com o novo paradigma, mas não se pode deixar de ensiná-lo (de mostrá-lo).

Recorde-se que o Estado, enquanto regido (exclusivamente) pelas regras, valores, normas, princípios e garantias do clássico Estado de Direito legal (EDL) - Estado de legalidade -, alcançou, sobretudo durante o século XX, sua mais aguda crise.

Dentre os múltiplos aspectos dessa crise, de acordo com Ferrajoli, sobressaem três: (a) crise de legalidade (estamos vivenciando verdadeiros Estados de sub-legalidade); (b) crise na sua função social (os Estados modernos estão se tornando cada vez mais neoliberais, deixando de cumprir suas tarefas básicas consistentes na distribuição da justiça, saúde, educação etc.) e (c) crise do tradicional conceito de soberania (os Estados decidem cada vez menos os seus destinos, que freqüentemente são ditados e guiados por órgãos internacionais) [56].

Uma das principais conseqüências que decorreram da crise anunciada consistiu na transformação do velho Estado de Direito legal (EDL), que foi cedendo espaço para a construção de um novo paradigma (de Estado, de Direito e de Justiça) que pode (e deve) ser conhecido (e reconhecido) como Estado de Direito constitucional (EDC), cuja premissa lógica reside no valor da dignidade humana, de genealogia bem conhecida: estoicismo, Velho Testamento, cristianismo, direito natural etc. Do governo de homens (Estado absoluto) evoluímos para o governo das leis (Estado legalista) e deste estamos nos dirigindo para o governo do Direito.

Mas uma coisa é o Estado de Direito constitucional regido pela Constituição de cada país, modelo de Estado de Direito esse que é criado e aplicado pelos legisladores e juízes respectivos. Outra bem distinta consiste em enfocar esse mesmo Estado de Direito sob a ótica internacional (ou regional ou comunitária ou, em síntese, transnacional). Não são dois modelos excludentes, ao contrário, são complementares. No caso brasileiro, aliás, complementares e sucessivos (porque somente agora, no princípio do século XXI, é que se começa a prestar atenção no aspecto internacional do Estado de Direito constitucional, sobretudo a partir dos votos de Gilmar Mendes - RE 466.343-SP - e Celso de Mello - HC 87.585-TO).

Estudar hoje o Estado de Direito constitucional sem o complemento da transnacionalidade significa conhecer apenas a metade do que se deve saber. E se o estudante ou operador jurídico sabe manejar tão somente os códigos (ou seja: a legalidade), conhece apenas um terço do que se deve saber. Para além da legalidade (Estado de Direito legal) está a constitucionalização e a transnacionalidade do Direito.

Eis as três palavras-chave que podem exprimir as evoluções do Estado, do Direito e da Justiça: legalidade, constitucionalização e transnacionalização. Cada uma delas corresponde a uma onda evolutiva.

Uma quarta onda, neste princípio de novo milênio, também já começa a ser vislumbrada: trata-se do Estado de Direito global (que já conta com seus primeiros ordenamentos jurídicos e órgãos supralegais: Estatuto de Roma e TPI, ONU e Tribunal de Justiça Internacional etc.).

Conhecer e saber manejar todas essas ondas evolutivas do Estado, do Direito e da Justiça é a primeira tarefa do estudante ou operador do Direito antenado com o seu tempo."

Não se olvide, ainda, que a classificação de tráfico de drogas eventualmente presente no Auto de Prisão em Flagrante pode vir a ser modificada quando oferecida a Denúncia, no curso do processo, ou mesmo quando proferida sentença, e em alguma dessas ocasiões ser desclassificada a acusação para outro tipo penal dentre os vários novos tipos existentes na Lei nº 11.343/06, e que não configuram tráfico (única situação em que essa Lei veda a concessão de Liberdade Provisória), pois no próprio artigo 33 e em outros da Lei nº 11.343/06 há condutas que não configuram tráfico [57]. Nessa hipótese, terá o Acusado ficado órfão do direito à Liberdade Provisória, que posteriormente se esclareceu sempre lhe coube [58]. Ademais, é certo que o Acusado é beneficiário das definições sobre situações duvidosas. (STF – HC – Relator o eminente Ministro Marco Aurélio – RT 6599/423). [59]

Ainda o professor Gomes [60], quando se posiciona acerca do assunto, afirma que a leitura feita dessas normas, quando se conclui pela impossibilidade de concessão de liberdade provisória, cuida-se de decisão juridicamente equivocada e político-criminalmente incorreta (porque seguidora de um punitivismo exacerbado, típico do Direito penal do inimigo, que refoge do abrigo da razoabilidade). Só retrata mais uma manifestação do "poder punitivo interno bruto" (PPIB), que é exercido pelas agências repressivas do Estado de Polícia:

"... A lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/1990), em sua redação original, proibia, nesses crimes e nos equiparados, a concessão de liberdade provisória (essa é a liberdade que acontece logo após a prisão em flagrante, quando injustificada a prisão cautelar do sujeito). Tráfico de drogas sempre foi considerado crime equiparado (desde 1990). A mesma proibição foi reiterada na nova lei de drogas (Lei 11.343/2006), em seu art. 44. A partir de 08.10.06 (data em que entrou em vigor esta última lei), a proibição achava-se presente tanto na lei geral (lei dos crimes hediondos) como na lei especial (lei de drogas).

Esse cenário foi completamente alterado com o advento da Lei 11.464/2007 (vigente desde 29.03.07), que suprimiu a proibição da liberdade provisória nos crimes hediondos e equiparados (prevista então no art. 2º, inciso II, da Lei 8.072/1990). Como se vê, houve uma sucessão de leis processuais materiais. O princípio regente (da posterioridade), destarte, é o seguinte: a lei posterior revoga a lei anterior (essa revogação, como sabemos, pode ser expressa ou tácita; no caso, a Lei 11.464/2007, que é geral, derrogou parte do art. 44 da Lei 11.343/2006, que é especial). Em outras palavras: desapareceu do citado art. 44 a proibição da liberdade provisória, porque a lei nova revogou (derrogou) a antiga, seja porque com ela é incompatível, seja porque cuidou inteiramente da matéria.

Se o princípio regente é o da posterioridade (lei posterior revoga a anterior), jamais poderia a decisão ter invocado (como invocou) o da especialidade, que pressupõe a vigência concomitante de duas ou mais leis, aparentemente aplicáveis ao caso concreto. Confundiu-se, como se nota, o instituto da sucessão de leis (conflito de leis no tempo) com o conflito aparente de leis.

A diferença entre o conflito aparente de leis penais (ou de normas penais) e a sucessão de leis penais (conflito de leis penais no tempo) é a seguinte: o primeiro pressupõe (e exige) duas ou mais leis em vigor (sendo certo que por força do princípio ne bis in idem uma só norma será aplicável); no segundo (conflito de leis penais no tempo) há uma verdadeira sucessão de leis, ou seja, a posterior revoga (ou derroga) a anterior. Uma outra distinção: o conflito aparente de leis penais é regido pelos princípios da especialidade, subsidiariedade e consunção. O que reina na sucessão de leis penais é o da posterioridade.

Na teoria do direito em geral (logo, também no Direito penal), consoante lições clássicas de Ross e Bobbio (citados por COBO DEL ROSAL e VIVES ANTÓN, Derecho penal-PG, 4. ed., Valencia: Tirant lo blanch, 1996, p. 155), são inconfundíveis os princípios da especialidade, hierarquia e posterioridade. Quando uma lei nova (geral) cuida da mesma matéria contemplada na lei especial antiga, não paira nenhuma dúvida sobre a incidência do princípio da posterioridade, que implica a revogação (ou derrogação) da lei anterior. Em outras palavras: lei posterior geral (é o caso da Lei 11.464/2007, que cuida dos crimes hediondos e equiparados) revoga (ou derroga) a lei anterior específica (art. 44 da lei de drogas - Lei 11.343/2006).

A questão se torna complexa apenas quando a lei posterior é especial. Isso se deu com a Lei 9.455/1997 (lei da tortura), que passou a permitir progressão de regime. A jurisprudência da época (que hoje perdeu sentido em razão do advento da Lei 11.464/2007) acabou se firmando no sentido de que "não se estende aos demais crimes hediondos a admissibilidade de progressão no regime de execução da pena aplicada ao crime de tortura" (Súmula 698 do STF, que perdeu sentido a partir do momento em que o próprio STF julgou inconstitucional a proibição de progressão de regime nos crimes hediondos - HC 82.959). Nessa súmula assentou-se a inaplicabilidade do princípio da posterioridade quando a lei posterior é especial. Ou seja: lei posterior especial (Lei 9.455/1997) não revoga a lei anterior geral (Lei 8.072/1990), isto é, só vale para os casos específicos nela definidos.

O inverso é diferente: lei posterior geral revoga lei anterior especial. É por isso que a nova lei geral dos crimes hediondos (Lei 11.464/2007) vale para o caso de tortura (regida por lei especial), inclusive no que diz respeito à exigência de 2/5 ou 3/5 (primário ou reincidente) para a progressão de regime, ressalvados os fatos precedentes (ocorridos até 28.03.07), que continuam admitindo progressão depois de 1/6 da pena (art. 112 da LEP).

Com a Lei 11.464/2007 (nova lei geral dos crimes hediondos e equiparados), frente à Lei 11.343/2006 (lei de drogas), deu-se a mesma coisa. Cuida-se de uma lei nova posterior que é geral, que revoga (ou derroga) a anterior especial. Tendo havido derrogação do art. 44 da Lei 11.343/2006 (na parte em que proibia a liberdade provisória), desde 29.03.07, ele já não pode ser utilizado. A decisão ora comentada (HC 81.241) não só aplicou texto legal já derrogado, como invocou princípio incorreto (o da especialidade, que pressupõe duas ou mais leis vigentes). No caso o princípio regente é o da posterioridade (a lei posterior afasta a lei anterior).

Os equívocos prosseguem: o segundo fundamento da decisão reside no art. 5º, inc. XLIII, da Carta Magna, que proíbe a concessão de fiança nos crimes hediondos ou equiparados: "se proibiu a fiança também não cabe liberdade provisória". As incorreções da tese são múltiplas: (a) fiança não se confunde com liberdade provisória; (b) a proibição de uma não afasta a outra (os textos restritivos de direitos devem ser interpretados restritivamente); (c) agora a lei nova dos crimes hediondos (Lei 11.464/2007) já não proíbe a liberdade provisória nesses delitos; (d) a jurisprudência do STF invocada na decisão (HC 86.814-2 etc.), não só já era questionável como agora está ultrapassada depois do advento da Lei 11.464/2007. Quantos equívocos! Espera-se que sejam corrigidos prontamente, seja pelo próprio STJ, seja pela Corte Suprema do país (STF)."

Visando ponderar acerca dessas situações, tem sido utilizada a Exceção de Pré-Cognição Penal [61], semelhante à Exceção de Pré-Executividade Cível, em processos de Ações Penais onde, dependendo da tipificação inicial, há certos benefícios processuais. Essa possibilidade hoje encontra-se prevista nos artigos 395 [62] a 397 do CPP, inseridos pela Lei nº 11.719/08 (pela especificidade aplicam-se os artigos 55 e 56 [63] da Lei nº 11.343/06 em detrimento desse artigos do CPP, mas ainda aguarda-se pronunciamento da Jurisprudência e Doutrina acerca da convivência dessas normas), pois que com a instituição do juízo de prelibação, onde o Juiz pode inclusive absolver o acusado em julgamento antecipado da lide, é possível o exercício mental de um juízo condenatório, inclusive com a fixação da pena - concretamente - para efetivar a rejeição da denúncia em razão da prescrição pela pena em concreto perspectiva [64], pela evidente falta de interesse de agir [65], uma das condições da ação [66].

No caso de processos que apuram crimes previstos na Lei nº 11.343/06, a Exceção se torna desnecessária porque há previsão da defesa preliminar [67], mas de qualquer forma fica evidente a conseqüência prejudicial ao Acusado caso a tipificação inicial lhe retire prerrogativas ou garantias (e.g., a concessão de Liberdade Provisória).

E como já mencionado alhures, a defesa preliminar hoje resta prevista em vários textos legais, e.g, artigo 4º, § 1º da Lei 8.038/90, artigos 396-A, 406 e 514 do CPP, artigo 2º, II do Decreto-Lei 201/67 e artigo 364 do RITJMG – também mencionada na Lei nº 5.250/67 [68], Lei nº 9.099/95, Lei nº 11.343/06 e Lei nº 8.429/92, esta última sem caráter criminal.

Por esses motivos, é que essa vedação prevista na Lei nº 11.343/07 é inconstitucional, devendo por isso ser afastada, para que o Juiz fundamente objetivamente (315 do CPPB e 93, IX da CRFB/88, entre outros [69]) a necessidade da custódia cautelar do preso em flagrante delito (demonstrando eventuais motivos que ensejariam a Prisão Preventiva, delineadas no artigo 312 do CPP), em modo a mantê-lo segregado cautelarmente. Não existindo tais motivos, que seja concedida Liberdade Provisória ao mesmo, ainda que sem fiança, mas sempre com sua vinculação aos atos processuais e ao Juízo.

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Questiona-se, nessa seara de estudo processual, a legitimidade jurídica da prisão cautelar do Acusado preso em Flagrante Delito, que permanece preso, sustentando que a permanência de sua segregação cautelar somente pode existir acaso ocorram e se demonstrem razões que possam justificar, objetivamente, a necessidade da sua custódia preventiva; inexistindo a necessidade da decretação da sua Prisão Preventiva, exatamente porque não há elementos a ensejarem a sua Prisão Preventiva, e por conseqüência vedar-lhe a Concessão de Liberdade Provisória.

A eventual negativa pelo simples fato de se tratar de crime de tráfico de drogas – e não porque estaria presente algum dos elementos que ensejariam a Prisão Preventiva – é, data venia, inconstitucional, ilegal e afronta o entendimento dominante no Colendo Superior Tribunal de Justiça e no Excelso Supremo Tribunal Federal, como se deduz.

Essas orientações legalistas, superficialmente balizadas em entendimentos sufragados pela constante manutenção de um erro cometido ab initio por algum equivocado analista, nada mais são que a comprovação da já mencionada facilidade que se encontra em manter uma posição dura, reacionária, fascista, acolhedora socialmente, ainda que fundada em equívocos, à ter que discutir, discordar e fundamentar o motivo e a motivação pela qual essa orientação não pode (como de fato nunca pôde) ser adotada.

Essa perpetração de uma idéia – independentemente de sua correição – já foi objeto de análise pelo sempre seguido doutrinador, professor Luiz Flávio Gomes, que tratou do tema no seu artigo "Por que os economistas (em geral) falharam na previsão da crise econômica?" [70], cujos trechos seguem:

... É impressionante como os economistas, da mesma maneira que os financistas e investidores, se iludem com as aparências. É incrível como não vasculham mais a realidade para desnudarem o que está "oculto" no "aparente". Ficam no "aparente do aparente" (Nilton Bonder) e um acaba servindo de espelho para o outro. Terminam por fazer um discurso "clonado" (repetitivo) - os economistas e financistas - ou por terem um comportamento idêntico (os investidores). Se a bolsa na Ásia começa mal, a tendência (quase que) implacável é o mundo todo acabar o dia mal. Um investidor copia o outro (sem atinar muito para as realidades que estão por trás da aparência) ... Nilton Bonder (O segredo judaico de resolução de problemas, Imago, RJ: 1995) enfatiza: "Quem não enxerga sabe que não vê. Mas pior é o que vê e pensa que tudo o que vê é o que é. Todos nós temos que enfocar o ''aparente do aparente'' não como verdades sabidas, sim, como um estágio para descobrir nossas ignorâncias." E aconselha: "Saiba ser sensível a todas as possibilidades que um enunciado ou contexto apresenta. Seja um literalista e busque listar todas as realidades compatíveis com o que não sabe (...) Todo aquele que deseja aprender do óbvio deve voltar-se para aquilo que o óbvio pode ensinar sobre o que não é óbvio. Infelizmente, na maioria das vezes somos cativados pela estética do óbvio e o absorvemos com um ilusório senso de superioridade. Percebemos a clareza e nos sentimos poderosos, enquanto o lugar do saber está na intimidante percepção das escuridões".

A terrível crise mundial que atravessamos talvez pudesse ter sido evitada ou suavizada se os economistas, financistas e investidores soubessem que "nada suscita maior percepção das trevas que a luz da obviedade"...

Com essa análise conseguimos entender várias opções ideológicas do Judiciário, como o "in dubio pro societate" [71] e a "impossibilidade de liberdade provisória com ou sem fiança aos presos em flagrante por crime de tráfico de droga". Alguém errou, e a maioria ficou naquele círculo vicioso do erro....é muito mais fácil lavar as mãos, não ter que pensar, agir, assumir responsabilidades...."voto com o relator"... "o problema da criminalidade e da sociedade não são meus (Judiciário), mas vou acabar com ele assim mesmo pois sou a "ultima ratio" do poder Estatal: prendam os criminosos, retirem deles todos os direitos fundamentais, pois eles são os inimigos do Estado, e por isso não merecem qualquer respeito".

Jean Baptiste Poquelin Molière [72] em seu tempo já pregava que "Estando em moda, todos os vícios passam por virtudes e qualquer hipócrita representa o papel de homem de bem com razoável perícia."

Por detrás de toda norma aberta, subjetiva, há uma ideologia que a mantém viva, a despeito do que se abomina quanto à existência dos textos de onde se extraem normas intencionalmente inconclusivas e ilimitadas. Eis o perigo: não podemos viver de ideologia, sob qualquer pretexto, mas sim de regras, direitos indisponíveis, comuns a todos.

"...O escopo do processo penal, como ensina MANZINI, é o de verificar o fundamento da pretensão punitiva e não o de torná-la realizável a todo custo. Prevê ele, em consequência, ao lado de normas que asseguram os meios de verificação da culpabilidade, outras dispostas a evitar o erro e o arbítrio. Desta forma, junto ao interesse repressivo, o processo penal assegura, no estado livre, a tutela do interesse eventualmente em perigo da liberdade individual ... " [73]

Alice Bianchini [74] em sua obra cuja leitura nos parece obrigatória para se conhecer os limites da atuação Estatal no campo repressivo, traz algumas lições:

"... A função de minimizar a violência que grassa no interior da sociedade, a ser desempenhada pelo direito penal em um Estado deste tipo, considerando os princípios que a ele se impõe observação, somente pode ser concebida com restrições de alcance. Ultrapassados os limites, perderá, o direito penal, legitimidade ... Criminalizar ou não determinada conduta é questão a ser resolvida a partir da análise de considerações que versem sobre a situação paradoxal de que, para proteger bens e direitos individuais e coletivos há que se sacrificar bens e direitos individuais ... é realizada a averiguação da relação custo/benefício que tal intervenção provoca, há que servir de guia para se chegar à conclusão que pareça a mais indicada ... Cabe ao Estado, na perspectiva em que se o compreende, por meio de, também, outras instâncias, as tarefas de fazer acreditar que há alternativas e de reforçar a confiança em suas instituições ... Se o direito penal pode contribuir, com a dimensão que se arvora possuir, para este desiderato, será criando um modelo de direito penal mais apto a diminuir a violência que se fixa no interior da sociedade sem se fazer, do mesmo modo – ou mais -, violento, sempre cuidando de só atingir no mínimo possível a liberdade individual da qual é garante. A criminalização de conduta deve pautar-se, neste quadro, por processo meticuloso, cujos aspectos materiais ..."

Dar credibilidade à Justiça é fazer com que ela seja justa, e não, má. Todos sabemos que a privação cautelar da liberdade individual é qualificada pela nota da excepcionalidade. Não obstante o caráter extraordinário de que se reveste, a Prisão Preventiva pode efetivar-se, desde que o ato judicial que a formalize tenha fundamentação substancial, com base em elementos concretos a reais que se ajustem aos pressupostos abstratos - juridicamente definidos em sede legal - autorizadores da decretação dessa modalidade de tutela cautelar penal (RTJ 134/798, Relator para o Acórdão, eminente Ministro CELSO DE MELLO).

É por essa razão que o Excelso Pretório, em pronunciamento sobre a matéria (RTJ 64/77), tem acentuado, na linha de autorizado magistério doutrinário (JULIO FABBRINI MIRABETE, "Código de Processo Penal Interpretado", p. 376, 2ª ed., 1994, Atlas; PAULO LÚCIO NOGUEIRA, "Curso Completo de Processo Penal", p. 250, item nº 3, 9ª ed., 1995, Saraiva; VICENTE GRECO FILHO, "Manual de Processo Penal", p. 243-244, 1991, Saraiva), que, uma vez comprovada a materialidade dos fatos delituosos a constatada a existência de meros indícios de autoria - e desde que concretamente ocorrente qualquer das situações referidas no artigo 312 do Código de Processo Penal Brasileiro -, torna-se legítima a determinação [75], pelo Poder Judiciário, dessa especial modalidade de prisão cautelar.

Por outro lado, Antônio Magalhães Gomes Filho [76], sobre o princípio da presunção de não-culpabilidade (ou de inocência, ou não-culpa), relata:

"As prisões decretadas anteriormente à condenação, que numa visão mais radical do princípio nem sequer poderiam ser admitidas, encontram justificação apenas na excepcionalidade de situações em que a liberdade do acusado possa comprometer o regular desenvolvimento e a eficácia da atividade processual."

Registre-se, ainda, que se reconhece que a mera condição de primariedade do Acusado não pré-exclui, só por si, a possibilidade de decretação da medida cautelar constritiva da liberdade individual (RTJ 99/651 - RT 649/275 - RT 662/347), e nem o mero reconhecimento de hediondez do crime (à época vigia a Lei de Crime Hediondo com a hedionda redação original), por si só, ensejaria essa determinação (ou decretação).

"O Preso primário, de bons antecedentes, tem o direito de defender e solto, independentemente de fiança. Essa regra aplica-se aos processos em curso e abrange os Acusados autuados em flagrante, presos preventivamente, pronunciados ou condenados por sentença de primeira instância" [77].

As jurisprudências do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Goiás [78] e do Excelso Supremo Tribunal Federal, bem por isso, têm acentuado, de maneira inequívoca, a esse propósito, que:

"A primariedade e os bons antecedentes e a existência de emprego não impedem seja decretada a Prisão Preventiva, porquanto os objetivos a que esta visa (garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou segurança da aplicação da lei penal) não são necessariamente afastados por aqueles elementos. O que é necessário é que o despacho - como inocorre no caso - demonstre, com base em fatos, que há possibilidade de qualquer destas finalidades não ser alcançada se o réu permanecer solto."

RTJ 121/601, Relator o eminente Ministro MOREIRA ALVES

Presente esse contexto, cabe verificar se os fundamentos subjacentes à decisão que nega a concessão de Liberdade Provisória ajustam-se, ou não, ao magistério jurisprudencial firmado pelo Excelso Supremo Tribunal Federal, no exame do instituto da Prisão Preventiva.

É certo que a antecipação cautelar da prisão [79] – qualquer modalidade autorizada pelo ordenamento positivo (modalidades de prisão sem pena [80]: Prisão em Flagrante [81], Prisão Temporária [82], Prisão Preventiva [83], e duas outras modalidades, que não existem mais no ordenamento jurídico brasileiro porque eram automáticas, com necessidades presumidas; Prisão Decorrente da Decisão de Pronúncia e Prisão Decorrente da Sentença Penal Condenatória Recorrível, pois o que existe hodiernamente em razão da Lei nº 11.689/08 que modificou sensivelmente o CPPB, é Prisão Preventiva determinada concomitante à Decisão de Pronúncia [84] ou à Sentença Penal Condenatória Recorrível [85]. Ao lado dessas, ainda nessa categoria, se encontram as prisões Civil [86], Administrativa [87] e Disciplinar [88] - não se revela conflitante com o princípio constitucional de não-culpabilidade, não-culpa ou da inocência (RTJ 133/280 - RTJ 138/216 - RTJ 142/878 - RTJ 148/429 - HC 68.726-DF, Relator o eminente Ministro NÉRI DA SILVEIRA), desde que fundamentada a necessidade concreta da decisão, evidenciando o fumus boni iuris (fumus comissi delicti – prova da existência do crime e indício suficiente de autoria), assim como periculum in mora (periculum libertatis – garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, para assegurar a aplicação da lei pena – 312 do CPP -, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência previstas na Lei nº 11.340/06 – 313, IV do CPP -,em razão da magnitude da lesão evidenciada em crimes contra a ordem tributária previstos na Lei 7.942/86 [89] - artigo 30 dessa lei referida – ou mesmo no caso de crimes falimentares previstos na Lei 11.101/05 [90] – artigo 99, VII do diploma legal mencionado) [91].

Frise-se que a reserva constitucional do poder de julgar, deferida ao Juiz natural e especialmente mais efetiva quando se trata de acusação criminal, não pode ser transferida a conjecturas ou presunções, se não por outras razões, pelo menos porque uma transferência dessa natureza elimina completamente o direito constitucional de defesa e impede que o processo penal seja a sede da demonstração e da refutação, atividades próprias da cognição (nullum iudicium sine probatione).

Por isso, a dúvida quanto à verdadeira conformação da conduta concretizada pelo Preso em Flagrante resolve-se, aplicando o princípio in dubio pro reo, pela adoção da tese favorável ao agente, ainda mais quando outros fatores não induzem a crer tratar-se de necessidade da segregação cautelar. Esse é o critério da resolução da incerteza no processo penal.

Hodiernamente, a aplicação de princípios de Direitos Fundamentais, fundada em especial do Direito Transnacional, é baseada não mais no Princípio do in dubio pro reo, mas sim no princípio das interpretações pro homine.

Evidentemente, o processo penal não pode se desenvolver de maneira superficial, porquanto usurpada estaria, de modo arbitrário, a função jurisdicional e reduzido o papel do próprio processo a meio de homologação das versões de incriminação produzidas fora do ambiente do contraditório pelo qual, com a mediação judicial, normalmente há a tendência à equiparação das partes processuais (princípio da igualdade das partes ou paridade de armas).

Eventual dúvida se dirime em favor da prevalência dos direitos fundamentais do acusado, entre eles a regra da presunção da não-culpabilidade (classificação refutada por Luiz Flávio Gomes, que vê nela implícita homenagem ao autoritarismo fascista de Rocco) e da inocência, um dos elementos de que é composto o crime, como prevêem a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, artigos 1º, inciso III, 4º, inciso II, 5º, inciso LVII, §§ 1º, 2º e 3º, artigo 129, inciso I, artigo 14, "2" do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, adotado na legislação interna brasileira por força do Dec. 591, de 06-07-1992, artigo 8º, "2" da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San Jose da Costa Rica), à qual o Brasil aderiu por força do Dec. 678, de 06-10-1992, dentre outros vários.

Além, claramente, da própria exigência da fundamentação das decisões [92] que é a mais clara concretização do exercício de cidadania, na esteira da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, artigos 1º, incisos II, III, 5º, incisos XXXIII, XXXV, 93, inciso IX, artigos 2º,165, 2ª parte c/c artigos 2º, e 131, 2ª parte, 249, 333, 400, 458, incisos II, III, todos do Código de Processo Civil Brasileiro, 3º, 41, 42 e 43 (revogado pela Lei 11.719/08, e substituído pela nova redação dada aos artigos 395 e 396), 74, 209, 261, 312, 315, 316, 381, 406, 407, 408, 409/02 (com as modificações trazidas pela Lei 11.689/08), 571, 619, todos do Código de Processo Penal Brasileiro e artigo 50 da 9.784/99.

"... La motivación es la exteriorización por parte del juez o tribunal de La justificación racional de determinada conclusión jurídica. Se identifica, pues, com la exposición Del razonamiento.No existiria motivación si no há sido expresado em la sentencia El porque de determinado temperamento judicial...Sobre todo em um sistema procesal que tiene El principio de inocência como regla de juicio [93]..." [94]

Impõe-se advertir, no entanto, que a prisão cautelar - que não se confunde com a prisão penal (carcer ad poenam) – não objetiva infligir punição à pessoa que sofre a sua decretação. A prisão penal tem finalidade instrumental, já a prisão penal tem finalidade retributiva e preventiva [95].

"...La prisión preventiva es uma medida cautelar, no punitiva, y (...) a su vez no debe constituir la regla general, como expressamente lo consagra el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (art. 9.3), pues de lo contrario se estaria privando de la libertad a personas cuya responsabilidad criminal no há sido establecidam en violación del principio de inocencia..." [96]

Não traduz, a prisão cautelar, em face da estrita finalidade a que se destina, qualquer idéia de sanção. Constitui, ao contrário, instrumento destinado a atuar "em benefício da atividade desenvolvida no processo penal" (BASILEU GARCIA, "Comentários ao Código de Processo Penal", vol. III/7, item n. 1, 1945, Forense).

E essa mesma leitura deve ser feita com relação ao preso em flagrante sob acusação de tráfico de drogas – ao qual a Lei nº 11.343/06 veda peremptoriamente a concessão de qualquer modalidade de Liberdade Provisória – e que fica preso aguardando o término da instrução processual, ou mesmo de uma sentença penal (que poderá ser condenatória ou absolutória, ambas recorríveis) por tempo demasiadamente excessivo.

É o chamado excesso de prazo que tem ensejado a revogação de Prisões Preventivas, pois diante da ponderação de valores, princípios e regras, o direito fundamental liberdade prevalece diante do interesse da coletividade em apurar o possível ilícito penal, aliado à inércia, morosidade ou ineficiência do Estado-Juiz.

EMENTA: AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Excesso de prazo. Custódia que perdura por mais de dois anos. Instrução processual ainda não encerrada. Incidente de insanidade mental não concluído. Demora do exame não imputável à defesa. Feito de certa complexidade. Gravidade do delito. Irrelevância. Dilação não razoável. Constrangimento ilegal caracterizado. HC concedido. Aplicação do art. 5º, LXXVIII, da CF. Precedentes. A duração prolongada e abusiva da prisão cautelar, assim entendida a demora não razoável, sem culpa do réu, nem julgamento da causa, ofende o postulado da dignidade da pessoa humana e, como tal, consubstancia constrangimento ilegal, ainda que se trate da imputação de crime grave.

(STF - HC 94294, Relator o eminente Ministro CEZAR PELUSO, Segunda Turma, julgado em 05/08/2008, DJe-211 DIVULG 06-11-2008 PUBLIC 07-11-2008 EMENT VOL-02340-03 PP-00503)

EMENTA: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ASSOCIAÇÃO PARA O TRÁFICO. ART. 35 DA LEI 11.343/06. PRISÃO PROVISÓRIA. EXCESSO DE PRAZO. CONDIÇÕES OBJETIVAS E SUBJETIVAS. MULTIPLICIDADE DE RÉUS QUE NÃO PODE, POR SI SÓ, JUSTIFICAR A EXTENSÃO DESMESURADA DA CONSTRIÇÃO. SUPERAÇÃO EXCEPCIONAL DA SÚMULA 691. ORDEM CONCEDIDA. I - Primariedade e bons antecedentes, por si mesmos, não são aptos a desconfigurar a prisão preventiva, mas podem ser interpretados em favor do paciente para aquilatar-se a necessidade da prisão cautelar. II - Conquanto o writ não se preste à análise aprofundada de provas, a falta de razoabilidade da prisão cautelar, em relação ao paciente, pode ser depreendida, em parte, pelo teor indiciário acostado aos autos. III - Retardo desmesurado no recebimento da denúncia não pode ocorrer em prejuízo do paciente, ainda quando haja vários co-imputados. IV - Súmula 691 desta Corte pode ser superada em caso de flagrante ilegalidade, teratologia ou abuso de poder. Precedentes. V - Ordem concedida.

(STF - HC 93739, Relator o eminente Ministro RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 05/08/2008, DJe-177 DIVULG 18-09-2008 PUBLIC 19-09-2008 EMENT VOL-02333-02 PP-00375)

Na doutrina, o direito ao processo em prazo razoável normalmente aparece ligado à cláusula do due process of law. [97]

A preocupação com a duração do processo penal, que deve se desenvolver num prazo razoável, ou como figura em alguns textos, sem dilações indevidas, apareceu inicialmente nas declarações internacionais de direitos humanos.

O direito ao processo em prazo razoável deve ser analisado em um tríplice aspecto:

1) o direito a um processo, de qualquer natureza (penal, civil, trabalhista...), em prazo razoável ou sem dilações indevidas;

(2) o direito a um processo penal em prazo razoável ou sem dilações indevidas; e

(3) o direito ao desencarceramento do acusado preso cautelarmente, caso não seja julgado em um tempo razoável ou sem dilações indevidas.

A CADH (Pacto de San José da Costa Rica) estabelece, em seu art. 8.1, entre as garantias judiciais, que:

"...toda pessoa tem direito a ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determine seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza..."

Por sua vez, o art. 7.5, prevê que:

"... toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo..." [98]

Em suma, na CADH há, de um lado, o direito ao julgamento em prazo razoável, para qualquer processo, penal ou não penal; de outro, é assegurado, exclusivamente para o processo penal, em caso de acusado preso, que este seja posto em liberdade caso a duração do processo ultrapasse o prazo razoável. [99]

"... deveriam ser sopesados, de um lado, os valores constitucionais do exercício do poder-dever de julgar (art. 5º, XXXV) e, de outro, o direito subjetivo à razoável duração do processo e aos meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, LXXVIII da CRFB/88, artigos 7º, "5", 8º, "1" do Pacto de San José da Costa Rica e 9º, "3" do Pacto Internacional d Direitos Civis e Políticos), sobretudo quando em jogo a liberdade de locomoção ..."

(STF, HC 93784/PI, relator o eminente Ministro Carlos Britto, julgado em 16.12.2008)

Eis diante dessa constatação (de que o excesso de prazo enseja a revogação da Prisão Preventiva), de mesma maneira reputo ser aplicável esse raciocínio ao Preso em Flagrante que aguarda por longo tempo pelo deslinde

Se o preso em flagrante sob acusação de tráfico de drogas estiver preso por longo tempo (configurado aí o excesso de prazo) deverá ser ele posto em liberdade, pois ausentes os elementos que permitiriam sua manutenção em Prisão Preventiva, não se olvidando de reconhecer a aplicabilidade desse entendimento a pretexto da vedação prevista no artigo 44 da Lei nº 11.343/06, porque se refere a instituto distinto, que é a Liberdade Provisória.

Isso significa, portanto, que o instituto da prisão cautelar - considerada a função processual que lhe é inerente - não pode ser utilizado com o objetivo de promover a antecipação satisfativa da pretensão punitiva do Estado, pois, se assim fosse lícito entender, subverter-se-ia a finalidade da Prisão Preventiva, daí resultando grave comprometimento para o princípio da liberdade [100]. Não se deve transformar o processo penal na própria sanção que deveria limitar [101].

O professor italiano Luigi Ferrajoli [102], em sua obra Derecho y Razón: Teoría del Garantismo Penal, faz uma construção teórica [103] muito bem elaborada sobre as garantias dos cidadãos. Para Ferrajoli, que sugere até mesmo a abolição da prisão processual, o decreto de prisão antes do trânsito em julgado, "é ilegítimo e inadmissível".

Essa asserção permite compreender o rigor com que os Tribunais Superiores têm examinado a utilização, por Magistrados e Tribunais, do instituto da tutela cautelar penal, em ordem a impedir a subsistência dessa excepcional medida privativa da liberdade, quando inocorrente, como no caso, hipótese que possa justificá-la.

Impende assinalar, desde logo, que a configuração jurídica do delito previsto no artigo 12, da então vigente Lei nº 6.368/76, como crime hediondo (com a redação antes existente na Lei 8.072/90, modificada pela Lei 11.464/07, já comentada alhures), ou mesmo a nova tipificação da lei nº 11.343/06 e sua vedação intrínseca, não basta, só por si, para justificar fato impeditivo de concessão de Liberdade Provisória ao preso em flagrante.

Reverbere-se que o Excelso Supremo Tribunal Federal, a esse propósito, tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a justificar, só por si, a privação cautelar do status libertatis daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado.

Esse entendimento vem sendo observado em sucessivos julgamentos proferidos no âmbito daquela Corte, ainda que o delito imputado ao acusado seja pelo Ministério Público classificado como crime hediondo (HC 80.064-SP, Rel. p/ o acórdão Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RHC 71.954-PA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - RHC 79.200-BA, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.):

"A gravidade do crime imputado, um dos malsinados `crimes hediondos'' (Lei 8.072/90), não basta à justificação da Prisão Preventiva, que tem natureza cautelar, no interesse do desenvolvimento a do resultado do processo, a só se legitima quando a tanto se mostrar necessária: não serve a Prisão Preventiva, nem a Constituição permitiria que para isso fosse utilizada, a punir sem processo, em atenção à gravidade do crime imputado, do qual, entretanto, `ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória'' (CF, art. 5°, LVII)." (RTJ 137/287, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE)]

"A ACUSAÇÃO PENAL POR CRIME HEDIONDO NÃO JUSTIFICA A PRIVAÇÃO ARBITRÁRIA DA LIBERDADE DO RÉU.

- A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5°, LXI a LXV) - não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa Acusado da suposta prática de crime hediondo, eis, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5°, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada." (STF - HC 80.379-SP, Relator o eminente Ministro CELSO DE MELLO)

Caso não se aponte qualquer conduta, que, atribuída ao Acusado (Indiciado, em verdade, pois no momento de sua prisão em flagrante, sequer acusação formal há, como Denúncia ou Queixa-Crime oferecida), possa traduzir ato caracterizador de ilícita interferência na produção da prova penal, que se fizesse presumir que ele se ausentaria da sede do Juízo ou mesmo que cometeria crimes, caso em liberdade, não se decreta nem mantêm sua custódia cautelar, qualquer seja ela.

A mera afirmação de que o Peticionário, em liberdade, poderia frustrar, ilicitamente, a regular instrução processual revela-se insuficiente para fundamentar o decreto de prisão cautelar, se essa alegação - como ocorre na espécie dos autos - deixa de ser corroborada por necessária base empírica, tal como tem advertido, a propósito desse específico aspecto, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 170/612-613, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE - HC 79.781-SP, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, v.g.).

Sem que se registre situação de necessidade, torna-se arbitrária a ilegítima a decretação da Prisão Preventiva de qualquer pessoa.

II - Entre as medidas que asseguram o processo, a prisão preventiva é a ingerência mais grave na liberdade individual; por outra parte, ela é indispensável em alguns casos para uma administração de justiça penal eficiente.

O ordenamento interno de um Estado se revela no modo em que está regulada essa situação de conflito: os estados totalitários, sob a errônea antítese Estado-cidadão, exageraram facilmente a importância do interesse estatal na realização, o mais eficaz possível, do processo penal. Em um Estado de Direito, em troca, a regulação dessa situação, o Estado mesmo está obrigado ao ambos os fins – seguramente a ordem através da persecução penal e proteção da esfera de liberdade do cidadão.

III – Com isso, o princípio constitucional de proporcionalidade (sobre isso, PAEFFGEN, 1986, 165) exige restringir a medida e os limites da prisão preventiva ao estritamente necessário... [104]

É pertinente lembrar o que trazem Luiz Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli, ao comentarem a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) [105]:

"Em nossa opinião, todos os dispositivos que vedam a liberdade provisória devem ser declaradas inconstitucionais ou interpretadas "conforme a constituição", com base no princípio da proporcionalidade, que permite "acomodar a lei ao caso concreto, atendendo aos interesses em conflito" [106]. No mínimo, impõe-se uma relativização dessas normas. Se a proibição de concessão de liberdade provisória não fosse inconstitucional, poderia ser afastada concretamente, conforme as circunstâncias de cada caso, impondo-se a efetiva ponderação entre os interesses do Estado, Como titular do ius puniendi interesse na persecução penal, que se avalia pelos critérios da conseqüência jurídica esperadas, da importância da causa, do perigo de reiteração de fatos análogos, do grau de imputação assim como do êxito previsível da medida), e os interesses do indivíduo, como titular do ius libertatis (valendo-se os seguintes critérios: prejuízos para a saúde física ou psíquica ... para a vida familiar, profissional e social etc.) [107]"

Daí a correta advertência, que, sobre essa específica questão, faz a ilustre Magistrada, Maria Lúcia Karam, em precisa abordagem doutrinária do tema ("Prisão e Liberdade Processuais", in Revista Brasileira de Ciências Criminais, nº 2/83-93, 86, 1993, RT):

"Assim, quer na decretação da Prisão Preventiva strícto sensu, quer na manutenção da prisão decorrente de flagrante, como em qualquer decisão que importe na concessão da tutela cautelar consistente na prisão provisória, a necessidade de tal medida deverá estar devidamente demonstrada através de fatos que a revelem.

Veja-se o que diz, a respeito, o Professor Antonio Magalhães Gomes Filho: `Seja como for, o que importa ressaltar é a imperatividade da declaração expressa dos motivos que ensejam a restrição da liberdade individual no caso concreto, tanto nas hipóteses em que há pronunciamento jurisdicional prévio (Prisão Preventiva, prisão em virtude de pronúncia ou de sentença condenatória recorrível), como na convalidação da prisão em flagrante, em que o Juiz deve declarar as razões de sua manutenção a da não concessão da Liberdade Provisória (...). Sendo assim, não são suficientes à motivação das decisões sobre prisão as referências à `ordem pública'', à gravidade do delito ou aos antecedentes do acusado, sendo indispensável que se demonstre cabalmente a ocorrência de fatos concretos que indiquem a necessidade da medida por exigências cautelares de tipo fundamental ou final."

Na realidade, torna-se essencial rememorar, neste ponto - tal como o fez a Excelsa Primeira Turma da Corte Suprema, quando do julgamento do HC 68.530-DF, Relator o eminente Ministro CELSO DE MELLO (RTJ 135/1.111) - que

"Não há, em tema de liberdade individual, a possibilidade de se reconhecer a existência de arbítrio judicial. Os juízes a Tribunais, ainda que se cuide do exercício de mera faculdade processual, estão sujeitos, expressamente, ao dever de motivação dos atos constritivos do status libertatis que pratiquem no desempenho de seu ofício. A conservação de um homem na prisão requer mais do que um simples pronunciamento jurisdicional. A restrição ao estado de liberdade impõe ato decisório suficientemente fundamentado, que encontre suporte em fatos concretos".

A Excelsa Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, na qual se enfatizou, uma vez mais, que, ausentes razões de necessidade, revela-se incabível, ante a sua excepcionalidade, o ato de privação cautelar da liberdade individual:

"A Prisão Preventiva deve ser decretada, quando absolutamente necessária.

Ela é uma exceção à regra da liberdade.

Não mais subsistentes os motivos que levaram à sua decretação, como no caso concreto, impõe-se que seja revogada."

(STF - HC 80.282-SC, Relator o eminente Ministro NELSON JOBIM)

A prisão ex legi não pode existir por vários fundamentos já alinhados alhures, que deixam evidente não caber ao legislador se ocupar do posto do Magistrado que analisa cada caso concretamente, a então reconhecer se estão presentes elementos a ensejar a prisão cautelar do acusado. Afronta, sem dúvida, o Princípio da Proporcionalidade, em seu trinômio adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito [108].

A maior revolução da ciência jurídica neste princípio de novo milênio está na superação do formalismo positivista (obediência cega e obtusa da lei). Do método abstrato da mera subsunção estamos passando para o método concreto da ponderação, da razoabilidade, da proporcionalidade. O que mais importa, assim, não é a beleza do ordenamento ou do sistema jurídico (não se deseja mais um Palácio jurídico), senão suas conseqüências práticas e reais (busca incessante do justo em cada caso concreto).

Nas palavras do eminente Ministro GILMAR MENDES, ao proferir Voto no julgamento perante o Excelso Supremo Tribunal Federal, do Habeas Corpus nº 82.424-2 do Rio Grande do Sul:

O princípio da proporcionalidade, também denominado princípio do devido processo legal em sentido substantivo, ou ainda, princípio da proibição do excesso, constitui uma exigência positiva e material relacionada ao conteúdo de atos restritivos de direitos fundamentais, de modo a estabelecer um "limite do limite" ou uma "proibição de excesso" na restrição de tais direitos. A máxima da proporcionalidade, na expressão de Robert Alexy (Theorie der Grundrechte, Frankfurt am Main, 1986), coincide igualmente com o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais concebido de modo relativo - tal como o defende o próprio Alexy. Nesse sentido, o princípio ou máxima da proporcionalidade determina o limite último da possibilidade de restrição legítima de determinado direito fundamental.

A par dessa vinculação aos direitos fundamentais, o princípio da proporcionalidade alcança as denominadas colisões de bens, valores ou princípios constitucionais. Nesse contexto, as exigências do princípio da proporcionalidade representam um método geral para a solução de conflitos entre princípios, isto é, um conflito entre normas que, ao contrário do conflito entre regras, é resolvido não pela revogação ou redução teleológica de uma das normas conflitantes nem pela explicitação de distinto campo de aplicação entre as normas, mas antes e tão-somente pela ponderação do peso relativo de cada uma das normas em tese aplicáveis e aptas a fundamentar decisões em sentidos opostos. Nessa última hipótese, aplica-se o princípio da proporcionalidade para estabelecer ponderações entre distintos bens constitucionais.

Nesse sentido, afirma Robert Alexy:

"O postulado da proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma lei de ponderação, cuja fórmula mais simples voltada para os direitos fundamentais diz:

''quanto mais intensa se revelar a intervenção em um dado direito fundamental, maiores hão de se revelar os fundamentos justificadores dessa intervenção''."

(Palestra proferida na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro, em 10.12.98)

Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais de modo a exigir que se estabeleça o peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ("A Proporcionalidade na Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal", in Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional, 2ª ed., Celso Bastos Editor: IBDC, São Paulo, 1999, p. 72), há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito entre dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto para produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, se estabelece uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto).

Registre-se, por oportuno, que o princípio da proporcionalidade aplica-se a todas as espécies de atos dos poderes públicos, de modo que vincula o legislador, a administração e o judiciário, tal como lembra Canotilho (Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 2ª ed., p. 264).

A paz social é atingida toda vez que se comete um ilícito, e não só quando seja este de natureza criminal. E, por buscar o restabelecimento da ordem jurídica violada, conta o Direito com múltiplos instrumentos, dentre os quais a sanção penal, mas também, entre outros, a reparabilidade do dano extrapenal, medidas constritivas patrimoniais, sanções administrativas, etc. O que justificaria a opção do legislador, dentre todos os instrumentos de resposta normativa, pela ameaça da sanção penal, precisamente aquela que de regra atinge um dos mais importantes direitos individuais fundamentais, que é a liberdade (artigo 5º, caput, da Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988), enquanto bem jurídico-penal alcançado pela sanção? [109]

A resposta é uma só: por exigência de proporcionalidade - afinal, trata-se da mais grave das sanções do sistema jurídico -, somente os atentados mais conspícuos contra os bens, valores e interesses igualmente mais importantes ao juízo do mesmo sistema, ou o que hoje chamamos de bens jurídico-penais.

Foi por essa via, é bom lembrar, que se estruturou todo o arcabouço da moderna teoria do bem jurídico-penal, que, desde as origens, com FEUERBACH, sempre teve por finalidade prevenir o abuso incriminador mediante estabelecimento de critérios, seguros e imanentes ao sistema, aptos a instaurar e avaliar relação de proporcionalidade entre a gravidade da sanção penal e o objeto tutelado pela norma incriminadora.

Não há como identificar a paz social ao objeto jurídico específico do delito de que se trata, assim porque ela subjaz ferida em todos os crimes - as incriminações pretendem, em última instância, como é óbvio, preservar ou restabelecer a paz social -, como porque doutro modo se aniquilaria a própria idéia dogmática do bem jurídico-penal, elaborada pelo esforço de doutrinadores, do porte de FEUERBACH, BIRNBAUM, BINDING, VON LISZT, SAX, ROXIN, POLAINO NAVARRETE, BRICOLA, ANGIONI e FERRAJOLI, dentre outros, como relevante instrumento classificatório, sistemático, exegético, dogmático e crítico. [110] Se fora concebido, aliás, com tamanha vagueza e abstração, o bem jurídico seria incapaz de exercer qualquer dessas funções metodológicas, a começar pela mais simples, a classificatória [111].

ROXIN acentua, exatamente, esse ponto, afirmando que é função do Direito, como um todo, assegurar a convivência pacífica, e do Direito Penal (em verdade, devemos evitar o uso de Direito Penal em detrimento de Direito Criminal) [112], como instrumento excepcional, assegurar os bens jurídicos fundamentais, verbis:

"o hodierno Estado democrático de direito, enquanto laico e fundado na soberania popular, não pode perseguir o aperfeiçoamento moral dos cidadãos adultos, mas deve limitar-se a assegurar as condições de uma convivência pacífica (...); o direito penal, ao fornecer seu contributo em tal direção, deve antes de tudo garantir os bens jurídicos fundamentais que estão sob os olhos de todos, como a vida, a integridade física, a liberdade, o patrimônio, etc." (destaque inexistente no original). [113]

Ademais, hodiernamente têm sido utilizadas medidas cautelares inominadas em substituição às prisões cautelares (e.g., apreensão de passaporte), bem menos danosas a quem as sofre, e menos dispendiosa ao Estado, certamente [114].

A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CRFB, artigos 1º, III, 5º, incisos III, LXI a LXV) - não pode ser ofendida, por isso mesmo, por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais, que, fundadas em preocupante discurso de conteúdo autoritário, culminam por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos a garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República Federativa do Brasil, a ideologia germânica da Lei e da Ordem.

Mesmo que se trate de pessoa Acusada da suposta prática de crime até então adjetivado de hediondo (com a redação original da hedionda Lei), e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível - por efeito de insuperável vedação constitucional (CRFB/88, artigos 1º, III e 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade.

É que ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado (HC 79.812/SP, Relator o eminente Ministro CELSO DE MELLO, Pleno).

O princípio constitucional da não-culpabilidade, em nosso sistema jurídico, consagra uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao acusado, como se estes já houvessem sido condenados definitivamente por sentença do Poder Judiciário.

EMENTA: "''HABEAS CORPUS''. TRAFICO ILICITO DE ENTORPECENTE. PRISAO EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISORIA. INDEFERIMENTO. AUSENCIA DE INDICACAO DOS REQUISITOS DA PRISAO PREVENTIVA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL CONFIGURADO. A MANUTENCAO DA PRISAO EM FLAGRANTE, AINDA QUE PELA PRATICA DE CRIME ERIGIDO A CATEGORIA DE HEDIONDO, NAO DISPENSA O MAGISTRADO DE JUSTIFICAR A IMPRESCINDIBILIDADE DA MEDIDA COERCITIVA, NOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA PRISAO PREVENTIVA, SENDO A NEGATIVA DO BENEPLACITO A ESTE PRETEXTO, SITUACAO CARACTERIZADORA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL A LIBERDADE DE LOCOMOCAO DO PACIENTE, SANAVEL PELA VIA DO ''WRIT''. ORDEM CONCEDIDA."

(TJGO 2ª Câmara CriminalHabeas Corpus nº 23048-3/217 de Rialma – Relator o eminente Desembargador Aluísio Ataídes de Sousa – Julgado em 05/08/2004 – Publicado no DJ nº 14.339 de 24/08/2004)

Reverbere-se a exaustão: revelando-se absolutamente desnecessária a Prisão Preventiva do Indiciado (registra-se que a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante, como já mencionado ao início um dos estágios em que se divide a Prisão em Flagrante, é formal indiciamento do sujeito passivo), não estarão presentes, portanto, elementos a se negar sua Liberdade Provisória caso tenha sido preso em Flagrante Delito e assim permaneça, notadamente porque inexistentes motivos juridicamente idôneos que possam justificar a mais remota necessidade, quanto mais a imprescindibilidade dessa custódia processual.

EMENTA: "HABEAS CORPUS.'' TENTATIVA DE HOMICIDIO. PRISAO EM FLAGRANTE. PEDIDO DE LIBERDADE PROVISORIA. INDEFERIMENTO. DECISAO NAO FUNDAMENTADA. ILEGALIDADE DO CONSTRANGIMENTO. ORDEM DEFERIDA. O INDEFERIMENTO DE LIBERDADE PROVISORIA, REQUERIDA PELO ACUSADO PRESO EM FLAGRANTE, EXIGE SEJA FUNDAMENTADO, POR FORCA DO INCISO IX, ART. 93, DA CONSTITUICAO FEDERAL, NAO VALENDO COMO TAL SIMPLES REFERTENCIA DE MODO GENERICO A POSSIVEL CLASSIFICACAO DO DELITO COMO HEDIONDO, PORQUANTO A LEI ORDINARIA E QUE DEVE ADAPTAR-SE AOS PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA PRESUNCAO DA INOCENCIA DA LIBERDADE, ENQUANTO NAO SOBREVIER DECISAO CONDENATORIA TRANSITA EM JULGADO. CONCEDIDA A ORDEM POR UNANIMIDADE."

(TJGO2ª Câmara CriminalHabeas Corpus nº 22625-0/217 de Corumbá de Goiás – Relator o eminente Desembargador Jamil Pereira de Macedo – Julgado em 13/04/2004 – Publicado no DJ nº 14.270 de 123/05/2004)

Inobstante tal fato, a simples classificação do tipo como tráfico de tóxicos, a qual deve ser interpretada cum grano salis, não impede a concessão de Liberdade Provisória sem arbitramento e conseqüente pagamento de fiança, sempre com a necessária vinculação ao Juízo, acaso não se configurem quaisquer dos elementos ensejadores da Prisão Preventiva ao caso que se leve à baila.

"... A Lei nº 8.072/90 de 25 de junho de 1990, nasceu, pois, dos reclamos dos defensores da ideologia do law and order, objetivando especificar e tornar aplicável as medidas restritivas de direitos e garantias fundamentais determinados pela Constituição Federal ...

Liberdade Provisória, convém salientar, não se confunde com fiança, nem com crime afiançável. De acordo com o CPP, a Liberdade Provisória sem fiança pode ser concedida a qualquer delito afiançável ou não, quando faltar os requisitos da prisão provisória.

CPP, Art. 310 - Quando o juiz verificar pelo auto de prisão em flagrante que o agente praticou o fato, nas condições do art. 19, I, II e III, do Código Penal, poderá, depois de ouvir o Ministério Público, conceder ao réu Liberdade Provisória, mediante termo de comparecimento a todos os atos do processo, sob pena de revogação.

Parágrafo único - Igual procedimento será adotado quando o juiz verificar, pelo auto de prisão em flagrante, a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a Prisão Preventiva (arts. 311 e 312).

A Constituição Federal também identifica esta diferença no art. 5º, inciso LXVI (...Liberdade Provisória, com ou sem fiança). A Lei 8.072/90 avançou o dispositivo constitucional trazendo dúvidas e discussões, uma vez que a Constituição Federal não menciona a vedação da Liberdade Provisória, apenas afirma a inafiançabilidade daqueles crimes.

Brota daí...

... inconstitucional a proibição da Liberdade Provisória. Argumentam que além da Constituição Federal não mencionar este efeito, ela consagra o direito à Liberdade Provisória, pois, de acordo com o art. 5º, inciso LXVI, ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a Liberdade Provisória, com ou sem fiança, Odone Sanguiné aponta que a vedação da Liberdade Provisória "eqüivale à privação de liberdade obrigatória infligida como pena antecipada, sem prévio e regular processo e julgamento" (Inconstitucionalidade da Proibição da Liberdade Provisória, in Fascículos de Ciências Penais, nº 4, pp. 20-21). Luiz Flávio Gomes declara que "não pode o legislador, com critério abstrato, substituir o juiz na tarefa de prender ou mandar soltar, que é eminentemente concreta. O legislador não pode, a pretexto de atualizar a concretização dos direitos fundamentais, instituir a legalização de tais direitos" (Crime Organizado, 2ª Ed., 1997, Ed. RT, p. 17). Também seguem este entendimento Alberto Silva Franco, Rogério L. Tucci e Magalhães Gomes Filho entre outros. Não obstante a segunda corrente ser correta, do ponto de vista doutrinário, a primeira vem sendo largamente aplicada pelos tribunais, e a questão parece ainda estar longe de ser pacificada."

Luciano Henrique Cintra, Advogado, Especial para O NEÓFITO [115]

Assim, deve-se adotar posicionamento idêntico ao do Colendo Superior Tribunal de Justiça, quando da interpretação do artigo 2º, II, da Lei de Crimes Hediondos original, que pode ser apreendido dos seguintes julgados, já seguido em diversas ocasiões pelos Egrégios Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e dos Territórios:

"RECURSO ESPECIAL. TRÁFICO ILÍCITO DE ENTORPECENTES. LIBERDADE PROVISÓRIA. CRIME HEDIONDO. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. SUPERVENIÊNCIA DE DECRETO CONDENATÓRIO. NÃO IMPOSIÇÃO DE PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE. VIA ESPECIAL. DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO NÃO CONHECIDO.

1. Consoante entendimento pacificado nesta Egrégia Corte, a segregação provisória não se justifica unicamente pelo fato imputado estar elencado como crime hediondo, sendo indispensável que estejam presentes os pressupostos autorizadores da Prisão Preventiva.

2. Ademais, consoante informações prestadas pela Vara de Origem, o Juízo processante já proferiu sentença condenatória, onde não foi imposta pena privativa de liberdade, razão pela qual não cabe, nesta via especial, a imposição de prisão cautelar.

3. Recurso especial não conhecido."

(RESP 351889-AM, DJ 04/08/2003, p. 00356, Relator Min. LAURITA VAZ, Decisão 24/06/2003, v.u., Órgão Julgador: Quinta Turma). Destaques inexistentes no original

APELAÇÃO CRIMINAL. DIREITO DE APELAR EM LIBERDADE. CRIME HEDIONDO. CONCESSÃO DE ORDEM DE HABEAS CORPUS. Paciente que cumpriu todas as obrigações lhe impostas para responder o processo em liberdade. Teve seu recolhimento à prisão por força dos dispositivos do art. 35 da Lei 6.368/76, não estando presente nenhum dos requisitos da Prisão Preventiva faz jus a concessão de ordem de HABEAS CORPUS para que possa aguardar o trânsito em julgado da sentença em liberdade. ORDEM CONCEDIDA. MAIORIA.

(TJDF – 2ª Turma Criminal - Habeas Corpus nº 20030020097282HBC DF – Relator o eminente Desembargador ROMÃO C. OLIVEIRA – Julgado em 13.11.2003 - Publicação no DJU de 19/05/2004 - Página 36). Destaques inexistentes no original

Face a eventual acusação de tráfico ilegal de drogas, não se poderia solicitar o arbitramento de fiança porque se trata de crime punido com reclusão, bem como porque a pena mínima excede a 02 (dois) anos e há vedação constitucional à concessão de fiança, diante desta conclusão, se determine a concessão de Liberdade Provisória, na modalidade sem arbitramento e pagamento de fiança, mas ainda com vinculação, aguarde o Preso em Flagrante o prosseguimento da apuração jurisdicional em liberdade, se ausentes quaisquer dos elementos ensejadores da Prisão Preventiva, tal como preceitua o artigo 310 do Código de Processo Penal Brasileiro.

"EL ASILAMIENTO PREVENTIVO DEL IMPUTADO SE ASEMEJA, PUES, A UNA DE AQUELLAS MEDICINAS HEROICAS QUE DEBEN SER PROPINADAS POR EL MÉDICO CON SUMA PRUDENCIA, PORQUE PUEDEN CURAR AL ENFERMO PERO TAMBIÉN OCASIONARLE UN MAL MÁS GRAVE; ¡QUIZÁ UN PARANGÓN EFICAZ ES EL QUE SE PUEDE HACER CON LA ANESTESIA, E SOBRETODO CON LA ANESTESIA GENERAL, LA CUAL ES UN MEDIO INDISPENSABLE PARA EL CIRUJANO, PERO! AY SE ÉSTE ABUSA DE ELLA!" [116]

Nesse sentido, a CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) foi clara a respeito dos limites que supõem o exercício do poder penal do Estado:

"Está más allá de toda Duda que el Estado tiene el derecho y el deber de garantizar su propria seguridad. Tampoco puede discutirse que toda sociedad padece por las infracciones a su ordem jurídico. Pero, por graves que puedan ser ciertas acciones y por culpables que puedan ser los reos de determinados delitos, no cabe admitir que el poder pueda ejercese sin limite alguno o que el Estado pueda valerse de cualquier procedimiento para alcanzar sus objetivos, sin sujeción al derecho o a la moral. Ninguna actividad del Estado puede fundarse sobre el desprecio a la dignidad humana." [117]

Ainda sobre a necessidade de interpretação das normas de Direito humanitário para análise quanto ao cabimento de segregação cautelar, vale a pena trazer à baila [118]:

Las explicitas disposiciones de la CADH (art. 7), la DUDH (art. 9, y 9.3), la DADDH (art. XXV) y el PIDCP (art. 9) se desprende el reconocimiento al derecho a la libertad ambulatória; se precisa que este solo podrá ser restringido excepcionalmente (no será la regra general) [119]... La privación de la libertad durante el processo penal – que solo se debe poner em manos de órganos judiciales (única "autoridade competente" em el "juicio prévio") – resulta así uma medida cautelar [120] excepcional [121] dirigida a neutralizar los peligros graves (por los serios y los probables) que se puedan cernir sobre el juicio prévio, con riesgo de apartalo de sua finalidade de afianzar la justicia [122].

Finalmente, mesmo que rebarbativamente, oportuno evidenciar que de acordo com o texto constitucional, prima-se pelo núcleo duro dos direitos fundamentais, pela dignidade da pessoa humana, e pela incorporação dos preceitos de direitos humanos, versados em Tratados Internacionais, com força hierárquica, no mínimo, supra legal (portanto, a suplantar a Lei de Execuções Penais, a Lei de Crimes Hediondos, a Lei nº 11.343/06, Código de Processo Penal Brasileiro e o Código Penal Brasileiro).

No artigo 5º, 2, a Convenção Americana de Direitos Humanos prevê o já mencionado princípio da humanidade da pena (e como muito mais razão de seu necessário antecedente, a Persecução Penal, que engloba Inquérito e Ação Penal). Como princípio cardeal do Direito penal [123] ela proíbe o tratamento cruel, desumano ou degradante, o que vem repetido na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, no artigo 5º, III.

A Regra 6.2 da Resolução 45/110 da Assembléia Geral das Nações Unidas (Regras de Tóquio) refere-se expressamente à humanidade com que deve ser aplicada e executada a prisão (cautelar). Despiciendo salientar que, na verdade o princípio da humanidade é válido e informador de todo e qualquer tipo de intervenção penal no âmbito dos direitos fundamentais da pessoa.

A base internacional do princípio reside na Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 5º, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos assim como na Convenção Americana de Direitos Humanos. No plano interno, são abundantes os dispositivos constitucionais que servem de apoio para a construção do referido princípio (artigos 1º, II, III, 4º, II, 5º, IIII, XL, XLVI, XLVII, b, §§ 1º, 2º e 3º da CRFB/88, respaldados pelo artigo 5º, 2, 6, da Convenção Americana de Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, e artigo 7º, 10º, 1, 3, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, e artigo 5º da Declaração Universal dos Direitos do Homem).

O respeito do princípio da humanidade da pena constitui [124] certamente uma das características fundamentais das penas e da Política criminal nos últimos três séculos [125], especialmente porque é certo que não se prepara a pessoa para a liberdade (ou para se adequar às normas de projeção de conduta) privando-a da liberdade. Certamente por isso Beccaria, no Iluminismo, combateu vigorosamente a crueldade das penas do Direito Penal do "Antigo Regime" (direito medieval) [126].

Não se pode permitir que seja inserido em nosso ordenamento regramentos fulcrados no Direito Penal do Inimigo [127]. Todo endurecimento penal ofensivo à dignidade humana, para além de constituir expressão desse modelo de "direito" penal, enquadra-se no movimento punitivo simbólico e emergencial, desenvolvido desde os anos 80, sobretudo na Itália (para combater – inicialmente – as organizações mafiosas).

Esse tipo de restrição se mostra oriundo de um mesmo modelo que visa agir sob justificativa de combate ao inimigo (Direito Penal do Inimigo), presumida, preventiva e dogmáticamente, o terrorismo com a promulgação pelo Presidente dos EUA em 26 de outubro de 2001 do USA Patriot Act, onde direitos fundamentais dos cidadãos são sufragados em prol de uma suposta supremacia de direitos coletivos e nacionais [128]. Vale, para contrapor a esse viés retrocesso, mencionar a Convenção de Genebra, assinada 1864, que inaugura o que se convencionou chamar direito humanitário, em matéria internacional; isto é, o conjunto das leis e costumes da guerra, visando minorar o sofrimento de soldados doentes e feridos, bem como de populações civis atingidas por um conflito bélico. É a primeira introdução dos direitos humanos na esfera internacional, lembrando que já fora analisado pela Corte Internacional de Justiça (CIJ) [129] ser obrigação cogente de todos os países respeitar os Convênios de Genebra de 1949 (com seus protocolos adicionais, que versam sobre crimes de guerra e direitos humanos das pessoas envolvidas nas mesmas), por ser princípio geral de Direito Internacional Humanitário [130], que certamente não permitem a aplicação e proliferação do Direito Penal do Inimigo.

De modo algum – e isso se menciona ilustrativamente - pode o autor de um crime (ainda que tivesse ocorrido o trânsito em julgado de sua condenação, que não ocorre in casu) ser tomado como "bode expiatório", como paradigma para a sociedade (opinião pública não é o mesmo que opinião publicada) [131], como meio de se alcançar a finalidade de prevenção geral.

Para os eminentes Ministros Sepúlveda Pertence (STF - RHC nº 79.785/RJ) e Gilmar Mendes [132], têm caráter supralegal esses preceitos, (é a tese que prevaleceu ao findar o julgamento do RE 466.343/SP). Já os Ministros Carlos Velloso e Celso de Mello (votos proferidos por esse último Ministro no HC 87.585/TO [133] e no HC 94.404 MC/SP [134]) entendem que têm caráter constitucional. Vale registrar, contudo, que se consideram com nível hierárquico supraconstitucional de acordo coma Convenção de Convenção de Viena/69 [135] e a de Havana/28, que reconhecem a condição supralegal (na verdade, utiliza-se a expressão legal em sentido latu, pois gênero de que é espécie o texto constitucional) de quaisquer tratados, que permanecem vigentes no Estado mesmo se o Estado modificar sua Constituição interna.

Ressalte-se que o Código de Processo Penal Brasileiro, que vige hoje, foi criado em 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, ou seja, fora constituído numa outra época, numa outra realidade social. O Estado Democrático de Direito era apenas um ideal, o sonho de uma nação que sofria com o regime ditatorial que prevaleceu no Brasil por mais de vinte anos, a partir de 1964, e que objetivava controlar os diversos segmentos representativos da sociedade brasileira. Em que pese ter sofrido várias modificações (dentre as mais relevantes, as ocorridas em 2008 pelas Leis nos 11.689, 11.690 e 11.719), o bojo no Código ainda é esse que se menciona ao início do presente parágrafo.

Outras precauções devem ser tomadas em especial evidência porque o procedimento investigatório que inicia a ação penal originária (no qual cabe exclusivamente ao Delegado configurar o tipo de tráfico ou o tipo de uso próprio, cujas nuances posteriores são totalmente distintas) tem caráter Inquisitivo, e para que se mitiguem essas suas características – retoricamente abomináveis – é que se exigem o cumprimento ao devido processo do Direito:

"... há doutrinadores que defendem que o sistema de julgamento nos procedimentos administrativos é injusto, porque uma única instância investiga, faz análise preliminar, decide denunciar, instrui o procedimento instaurado, faz análise prévia, julga, impõe sanção, e analisa a formalidade existente no procedimento e o cumprimento de suas próprias decisões, bem como julga eventuais recursos ..." [136]

"... A defesa, no processo ... moderno, constitui interesse público, que transcende as conveniências do acusado para projetar-se na perspectiva da reta administração da justiça. Por isso mesmo, o defensor não atua como representante do Acusado. Suas funções são mais largas e mais amplas. Como afirma MULLER-MEININGEN ("Der Verteidiger im heutingen Strafrecht", no volume Schul und Suhne, 1960, pág. 53), a sociedade que punisse arbitrariamente estaria irremediavelmente comprometida e fadada à dissolução. A defesa é, nesse sentido, autêntico órgão de controle de auto-proteção social ("in disem Sinne ist die Verteidigung ein Kontrollorgan des gesellschaftlichen Selbstschutzes"). A defesa é, em suma, como ensina de modo insuperável EBERHARD SCHMIDT ("Deutsches Stratprozessrecht", 1967, pág. 51), um órgão da administração da justiça e não mero representante dos interesses do acusado. E isso, porque ela se exerce, substancialmente, para a preservação e tutela de valores e interesses do corpo social, sendo assim garantia de proteção da própria sociedade ("Garantie zum Schutz der Gesellschaft")..." [137]

A plenitude da defesa, tido como um plus, à ampla defesa, deve ser exercitada não somente no Júri popular (artigo 5º, XXXVIII, "a" [138] da CRFB/88), mas também em procedimentos que tramitam na Administração Pública (Judiciário, como um todo, e demais órgãos estatais), sendo certo que a defesa técnica não precisa restringir-se a uma atuação exclusivamente técnica, podendo também se valer de argumentação extrajurídica, invocando razões de ordens social, emocional, de política criminal etc. [139]

A importância da defesa, em especial no processo punitivo, já era lembrada pelo eminente mestre Rui Barbosa:

"... Recuar ante a objeção de que o acusado é "indigno de defesa", era o que não poderia fazer o meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita do processo nas suas mínimas formas. Cada uma delas constitui uma garantia, maior ou menor, da liquidação da verdade, cujo interesse em todas se deve acatar rigorosamente ..." [140]

Apenas por mero diletantismo, analisa-se que restam aqui (como, por exemplo, ao analisar-se a possibilidade de Denúncia Anônima) evidentes colisões aparentes de direitos fundamentais – e.g, publicidade, informação, livre expressão do pensamento, dignidade da pessoa humana, vedação da pena perpétua por ordem interna (ressalvado casos de entrega ao Tribunal Penal Internacional, dentro de sua específica jurisdição – artigo 5º, § 4º, CRFB/88) e desumana, regra da não-culpabilidade, devido processo direito (ampla defesa, contraditório etc), interesse público – a serem dirimidos diante de análise da proporcionalidade (com seus inerentes requisitos; necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito).

As regras pertencem ao mundo do juridicamente existente e do peremptoriamente válido, os princípios estão no indefinido mundo do possível ou do concomitantemente possível. No conflito de regras, uma elimina a outra, por questão de invalidade. Na colisão entre princípios, um apenas afasta o outro no momento da resolução do embate, quando as possibilidades jurídicas e fáticas de um deles forem maiores do que as do outro.

O artigo 26 da Convenção de Viena deixa claro que a norma mais favorável, internacional ou interna, deve ser aplicada sempre, diante de eventual conflito. Utilizam-se normas de reenvio (uma norma reenvia para outra a dimensão de um direito humano). E.g, o artigo 5º, parágrafo 2º da CRFB/88 (norma de reenvio na CRFB, que reenvia para o Direito Internacional) e artigo 30 da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (norma de reenvio na Convenção, que reenvia para o direito interno). Como uma não exclui a aplicação da outra, aplica-se o princípio da lente de aplicação pro-homine, portanto a mais benéfica, sempre, valendo lembrar Alexy, e sua obra Teoria de Los Derechos Fundamentales.

A primeira tarefa da Teoria dos Direitos Fundamentais enquanto disciplina jurídica é uma interpretação dos direitos fundamentais constitucionais. Todavia as regras de interpretação jurídica se esbarram rapidamente em determinados "limites", devido às colisões de direitos fundamentais. Estas, por sua vez, podem ocorrer de duas formas: uma ampla, entre um princípio de direito fundamental individual e outras normas de interesse coletivo, e outra estrita, apenas entre princípios de direitos fundamentais.

Primeiramente, as colisões de direitos fundamentais em sentido estrito surgem sempre que o exercício ou realização do direito fundamental de um titular do direito produz efeitos negativos sobre os direitos fundamentais de outro titular. Pode-se tratar de direitos de caráter idêntico, como ocorre na hipótese se desferirem tiros sobre um seqüestrador com o objetivo de proteger a vida do refém, ou de direitos de caráter diversos, como ocorre entre a liberdade de Imprensa e de opinião e os direitos fundamentais à honra e à vida privada dos atingidos pela manifestação da opinião. Já as colisões de direitos fundamentais em sentido amplo ocorrem entre direitos fundamentais individuais e interesses fundamentais coletivos, sendo que não há uma relação de precedência

Essa breve análise ora posta sobre colisão de direitos fundamentais, regras e princípios, se mostrou necessária para que se tenha no presente caso que ora se analisa o registro de que não se pode entender que pondera o interesse estatal punitivo, acusatório, máximo, em detrimento do legítimo exercício da ampla defesa, do contraditório, do - já exaustivamente mencionado neste estudo - substantive due process of law, a quem tem indiscutível direito qualquer acusado no sistema processual penal brasileiro, e por conseguinte, na seara punitiva do direito interno da Administração Pública (em sentido retórico, pois inserido o Poder Judiciário).

Vale trazer para finalizar, uma vez mais, trecho do ontológico Eles, os Juízes, Vistos por um Advogado, de Piero Calamandrei:

"... O Direito, enquanto ninguém o perturba e o contraria, nos rodeia, invisível e impalpável como o ar que respiramos, inadvertido como a saúde, cujo valor só compreendemos quando percebemos tê-la perdido...O Juiz é o direito feito homem...Só se esse homem for capaz de pronunciar a meu favor a palavra da justiça, poderei perceber que o direito não é uma sombra vã..." [141]

Diante disso, é que observam situações onde haverá colisão de interesses, ambos fundados em direitos fundamentais [142], entre um Órgão do Estado de o próprio particular, súdito desse Estado. Nessa situação, ainda que excepcional, deverá ser realizado o trabalho de análise e conceituação de ponderação dos valores de cada um desses direitos fundamentais, para que ao final prevaleça aquele que mereça a devida guarida por parte do Direito interno ou mesmo Internacional.

A evolução do Direito Internacional Público permite afirmar que a responsabilidade internacional é um dos seus temas mais intrigantes, justamente por ser passível de contínuas alterações, sobretudo em matéria de direitos humanos, onde a tendência global é a permitir-se o indivíduo como parte em Cortes de Justiça Internacionais, como já ocorre na Europa e mesmo no sistema Interamericano, por intermédio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (vinculada à OEA e à Convenção Interamericana de Direitos Humanos), especialmente fundada em jus cogens.

Trata-se de verdadeira hipótese de conflito entre valores constitucionais, em que a solução que lhe predicaria o método da concordância prática, segundo o qual deve o intérprete harmonizar os preceitos divergentes no quadro da compreensão unitária da Constituição, parte do reconhecimento da natureza relativa do direito fundamental como valor jurídico (na verdade, não há direitos absolutos na ordem jurídica) [143]. Mas implica ainda outra idéia, a de que se não resolve conflito entre direitos fundamentais com o sacrifício prático de um deles, conforme o chamado princípio ou postulado do resguardo do núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias constitucionais. Este outro postulado, que concorre para definir o próprio campo de pertinência do critério da concordância prática, do qual está pré-eliminada a necessidade de sacrifício do núcleo substantivo de algum dos direitos (do contrário não se conceberia colisão entre eles), tal como decidido pelo Excelso Supremo Tribunal Federal ao julgar o RE 447.584/RJ.

A eficácia mediata dos direitos está freqüentemente relacionada com um caso de colisão de direitos. A posição jurídica de um indivíduo em face de outro somente pode prevalecer na medida em que se reconhece a prevalência de determinados interesses sobre outros.

"...En cualquier supuesto, resulta obvio que para el adecuado conocimiento de nuestro derecho positivo y sus instituciones fundamentales no se puede prescindir del conjunto normativo aportado por los tratados y las declaraciones internacionales sobre derechos humanos que vinculam a nuestro país..." [144]

"... Apesar del reconocimiento de estas garantias en el ámbito normativo de mayor jearquía – esto es, em constitucionaes y tratados internacionales de derechos humanos - , tanto las prácticas cotidianas de la justicia penal como la regulación legislativa Del procedimiento penal de los países de América Latina se han impuesto em nuestra realidad...Según los estúdios empíricos, nuestros países recurrem, como regla, al encarcelamento cautelar de personas inocentes, como si se tratara de una pena anticipada...El problema del abuso del encarcelamiento preventivo, además, resulta agravado significativamente por un problema adicional: las pésimas condiciones materiales en las que se cumpre la detención cautelar de las personas inocentes. Las terribles e inhumanas condiciones de nuestras prisiones, em las que se cumple el cierro cautelar o procesal ... Los tribunales de la justicia penal deben tener en cuenta, em toda decisión acerca de la restrición de la libertad de un inocente, que ellos constituyen la última protección que existe entre el poder penal del Estado y los derechos fundamentales de las personas..." [145]

Como mencionado, a teoria da ‘eficácia mediata’ (mittelbare Drittwirkung) revela também a preocupação do Bundesverfassungsgericht com a aplicação/concretização dos direitos fundamentais pelos Tribunais ordinários. A discussão sobre a eficácia indireta ganha relevo na medida em que as valorações estabelecidas pela Constituição não coincidem com a valoração do direito privado. Tal como sintetizado por Hesse, a orientação da Corte Constitucional revela que a função dos direitos fundamentais enquanto elementos de uma ordem objetiva impõe tão-somente a preservação de um standard mínimo de liberdade individual. Não se impõe, porém, uma redução generalizada da liberdade individual a esse padrão mínimo. ‘Se o Direito Privado deixa maior liberdade do que os direitos fundamentais, não deve a liberdade ser restringida mediante uma vinculação a esses direitos’.

E é nesse diapasão que se imaginam situações onde um indivíduo possa vir a ter algum interesse particular (como por exemplo, o direito de não ser processado penalmente, não ser incomodado em sua liberdade, não ser investigado penalmente, em não ter proibido seu direito de livre iniciativa privada ainda que pretenda exercer um ramo empresarial de jogo de prognósticos em autorização estatal, não ser incomodado em sua propriedade privada sem que seja desapropriado, ou incomodado caso queira desmatar toda a sua área de vegetação nativa etc.) afrontado pelo interesse coletivo, do Estado, ainda que por algum de seus Órgãos.

E, ocorrendo essa concorrência de interesses, mesmo colisão ou conflito, que se apliquem os princípios norteadores para análise quanto à prevalência do núcleo fundamental, o núcleo duro do direito fundamental, aquele intocável, para que em seu invólucro restante, seja feito o devido sopesamento para se concluir quanto a qual direito prevalecerá, e ainda que ambos prevaleçam, em qual medida isso ocorrerá ao final, no caso concreto.

Destarte, devem ser interpretadas essas normas de acordo com princípio e regras norteadoras da dignidade da pessoa humana, portanto deve ser analisado ao Indiciado/Acusado o direito à liberdade provisória de acordo com a interpretação sistemática do ordenamento válido, e não unicamente vigente.

A distinção de Ferrajoli entre vigência e validade da lei tem extrema pertinência nessa situação. Se existe vedação automática legal à possibilidade de se responder a uma Persecução Penal em liberdade, sem qualquer fundamentação objetiva (exigida pelo CPP, pela CRFB/88 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos), ela não é válida em face da antinomia com a Constituição e com os Tratados Internacionais que versem sobre Direitos Humanos.

No queda más que uma propuesta: la de continuar com la tarea de garantizarle al sujeto acusado de sea um verdadero actor del ritual judicial y no simplesmente un objeto al que se le permite estar físicamente dentro del cuadrado sagrado em el que se le importe justicia. Tal como nos enseña Luigi Ferrajoli em su Derecho y razón, que la tarea tienda a lograr "la tutela de los derechos fundamentales: los cuales – de la vida a la libertad personal, de las libertades civiles y políticas a las expectativas sociales de subsistência, de los derechos individuales a los colectivos – representan los valores, los bienes y los interesses, materiales y prepolíticos, que fundan y justifican la existência de aquellos `artifícios` - como los llamó Hobbes – que son el derecho y el estado, cuyo disfrute por parte de todos constituye la sabe sustancial de la democracia." [146]

Para finalizar, merece ser transcrito tão relevante texto que o Código De Ética Da Magistratura Nacional, editado pelo Augusto Conselho Nacional De Justiça, transforma em norma acerca da matéria ora mencionada:

Art. 32. O conhecimento e a capacitação dos magistrados adquirem uma intensidade especial no que se relaciona com as matérias, as técnicas e as atitudes que levem à máxima proteção dos direitos humanos e ao desenvolvimento dos valores constitucionais.

O estudo ora perfilado se apoiou no postulado da dignidade da pessoa humana o qual representa, considerada a centralidade desse princípio essencial, significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente no país e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo (STF - RHC 94358/SC - relator o eminente Ministro Celso de Mello - julgado em 29-04-2008).

Eis as teses e motivos pelos quais se entende que a concessão de Liberdade Provisória é perfeitamente comportável em caso de prisão em flagrante delito por suposto cometimento de crime de tráfico de drogas, tal como tipificado na Lei nº 11.343/06, mesmo ocorrendo essa prisão após 08 de outubro de 2006, data em que iniciara a vigência desse texto legal, e por conseguinte da norma nele originada.

Por esses motivos, é que se reputa ocorrer antinomia, por incompatibilidade vertical dupla (com a Carta Magna e com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos, dentre eles o Pacto de San José da Costa Rica) da norma extraída do texto presente no artigo 44 da lei nº 11.343/06, a qual veda a concessão de Liberdade Provisória, com ou sem fiança e independentemente de existirem motivos para a Prisão Preventiva de algum preso em flagrante sob acusação de Tráfico de Drogas no Brasil.

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Sobre o autor
Pedro Paulo Guerra de Medeiros

advogado, professor, doutorando em Ciências Jurídicas pela UMSA, especialista em Processo Penal e Processo Civil, MBA em Direito Empresarial, Direito Ambiental e Direito do Estado

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEDEIROS, Pedro Paulo Guerra. A inconstitucionalidade da vedação à concessão de liberdade provisória prevista no artigo 44 da Lei nº11343/06. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2457, 24 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14563. Acesso em: 28 mar. 2024.

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