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Princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (direito de ação)

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03/05/2010 às 00:00
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IV. Conteúdo e alcance jurídico do princípio

O princípio do direito de ação é visto pela doutrina como "a garantia das garantias", de natureza constitucional, pois é o único meio de acesso ao Judiciário pelo cidadão, vale dizer, o princípio em tela confere ao cidadão o direito de obter do Estado a tutela jurisdicional adequada.

Dissemos que o direito de ação enquadra-se no espectro das garantias constitucionais. Conquanto não pretendamos, neste estudo, nos alongarmos em derredor da distinção existente entre os termos direitos e garantias fundamentais, é entendimento quase uníssono na doutrina constitucionalista a ideia de que há diferença entre os referidos vocábulos, impondo-se, portanto, uma rápida discriminação.

Em tal esteira, pode-se dizer que os direitos são os bens jurídicos dos cidadãos, ao passo que as garantias são os meios de se assegurarem esse bens, ou seja, os direitos são bens jurídicos reconhecidos, que necessitam das garantias como instrumento para sua efetivação ou proteção.

Outrossim, asseveramos que o direito de ação outorga ao cidadão o direito de obter do Estado uma tutela jurisdicional adequada.

A noção de tutela jurisdicional deriva de uma das bases do tripé da Teoria Geral do Processo, que é a jurisdição. Ao lado da jurisdição, estão a ação e o processo, que, juntos, integram a trilogia estrutural do direito processual. Nessas condições, esses três pilares constituem os elementos estruturais, ou instituições fundamentais, do direito processual, consoante leciona Fernando de la Rúa:

"Al contenido de la teoría general del proceso se lo puede explicar en una visión esquemática y concisa. Comprende inicialmente el estudio de los elementos básicos generales con una información introductoria previa. Luego continúan los elementos estructurales, o instituciones fundamentales, que J. Ramiro Podetti designó como la trilogía estructural del derecho procesal: la acción, la jurisdicción e el proceso;" [35].

A jurisdição é a atividade estatal, cujo objetivo consiste na pacificação dos conflitos existentes, substituindo-se a vontade das partes pela atuação do Estado-juiz, que afirma a vontade da lei. Por outras palavras, pode-se dizer que jurisdição é a função estatal que visa assegurar a atuação do direito objetivo nos casos em que este não seja voluntariamente observado pelos jurisdicionados, ou, nas palavras de Calamandrei, conquanto não se possa dar uma definição absoluta do conceito de jurisdição, esta constitui aquele "poder ou função (chamada jurisdicional ou judicial) que o Estado, quando administra justiça, exerce no processo por meio de seus órgãos judiciais" [36].

Sobre o tema, discorre, ainda, Moacyr Amaral Santos:

"...a função jurisdicional do Estado visa à atuação da lei aos conflitos de interesses ocorrentes, assim compondo-os e resguardando a ordem jurídica. Sua finalidade é manter a paz jurídica, o que se dá com a afirmação da vontade da lei e conseqüente atribuição a cada uma das partes daquilo que é seu. Atuando a lei, a jurisdição faz justiça. Desse modo, tutela a ordem jurídica e, consequentemente, o direito subjetivo, quando ameaçado ou violado" [37].

Quando a atuação do direito objetivo é realizada por meio da intervenção do juiz, fala-se em tutela jurisdicional [38]. Tutelar é conferir proteção, de molde a preservar o direito material ameaçado, por meio de uma prestação. Tutela jurisdicional consiste, pois, "en la actividad de determinados órganos estatales, los jueces, que, em el ejercicio de su poder conferido por el Estado ponen en práctica, e el caso singular, determinados remedios previstos por la ley, en forma de asegurar la observancia del derecho objetivo" [39].

Portanto, a tutela jurisdicional pode definida como "el derecho de toda persona a que se le ‘haga justicia’; a que cuando pretenda algo de otra, esta pretensión sea atendida por un órgano jurisdiccional, a través de un proceso con unas garantías mínimas" [40], entendido este como um instrumento que confira às partes, através do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, a satisfação dos direitos debatidos.

Assim, o direito à tutela jurisdicional não é outro senão o direito "a un proceso no desnaturalizado, que pueda cumplir su misión de satisfacer las pretensiones que se formulen. Lo que no supone en modo alguno un derecho a obtener una sentencia favorable, ni siquiera una sentencia en cuanto al fondo" [41].

Entretanto, não basta que exista, tão-somente, a garantia formal de uma tutela jurisdicional por parte do Estado. É necessário que essa garantia seja eficiente e efetiva, vale dizer, é imprescindível que a tutela jurisdicional seja adequada.

A tutela jurisdicional adequada é aquela que o Estado entrega ao jurisdicionado, cumprindo adequadamente os objetivos pleiteados. É a outorga ao cidadão do provimento jurisdicional mais adequado à situação posta em conflito, com o intuito de resolver completamente a lide.

A ideia de tutela jurisdicional adequada parte da máxima chiovendiana segundo a qual "Il processo deve dare, per quanto possibile, a chi ha un diritto tutto e proprio tutto quello che egli ha diritto di conseguire", ou seja, o processo deve dar, na medida do possível, a quem tem um direito, tudo aquilo, e precisamente aquilo, que ele tem o direito de obter.

Como ressalta Luiz Guilherme Marinoni, "...a tutela jurisdicional apenas será adequada se puder realizar efetivamente o direito material" [42]. Isso significa que não basta que haja somente tutela jurisdicional, ou seja, não é suficiente que o Estado por meio da jurisdição estabeleça uma solução. É imprescindível que esta solução seja, de fato, adequada aos reclamos daquele que dela necessita. Afinal, o objetivo da chamada tutela jurisdicional adequada é o de fornecer aquela determinada prestação jurisdicional que solucionará a lide no plano do direito material, pondo um fim ao problema colocado ao Estado.

O direito processual não é indiferente à natureza dos interesses em conflito, não se contentando, pois, com um único procedimento e uma única forma de tutela, na medida em que a própria existência do direito substancial depende das formas de tutela jurisdicional adequadas colocadas à disposição pelo direito processual. Não se pode, portanto, falar em neutralidade do direito processual, uma vez que o direito substancial somente existe porque o direito processual predispõe procedimentos, formas de tutela jurisdicional adequadas às específicas necessidades de tutela das situações singulares afirmadas pela norma substancial. Nesse sentido, obtempera Andrea Proto Pisani:

"perché sia assicurata la tutela giurisdizionale di una determinata situazione di vantaggio violata, non basta que a livello di diritto processuale sia predisposto un procedimento quale che sia, ma è necessário che il titolare della situazione di vantaggio violata (o di cui si minaccia la violazione) possa utilizzare un procedimento (o più procedimenti) strutturato in modo tale da potergli fornire uma tutela effettiva e non meramente formale o astratta del suo diritto. Specificando, quindi, quanto detto poco fa, é possibile ora dire che il diritto sostanziale – sul piano della effettività, della giuridicità, non della sola declamazione contenuta nella carta stampata – esiste nella misura in cui il diritto processuale predispone procedimenti, forme di tutela giurisdizionale adeguate agli specifici bisogni di tutela delle singole situazioni di vantaggio affermate dalle norme sostanziali" [43].

Deduz-se, assim, que o objetivo da tutela jurisdicional adequada reside, decerto, em fornecer aquela determinada prestação jurisdicional que solucionará a lide, no plano do direito material: daí a ilação de que a tutela será tanto mais adequada quanto maior for a proximidade entre ação de direito material e ação de direito processual.

4.2. Direito público subjetivo

O direito de ação é um direito público subjetivo, cujo conteúdo é a atividade jurisdicional, que redunda no cumprimento da obrigação estatal pelo juiz, consistente no proferimento da sentença. Assim, prolatada a sentença, entende-se por realizado o direito subjetivo de ação.

Como visto supra, o cidadão dispõe de um poder jurídico (pretensão de tutela jurídica), que consiste na faculdade de exigir que o Estado-juiz exerça a atividade jurisdicional a que se obrigou e preste a tutela jurídica, dando a cada um o que é seu. Por tal razão, isto é, pelo fato de se referir a uma atividade pública, oficial, do Estado, diz-se que o direito de ação tem natureza pública.

A rigor, emerge o direito de ação como direito público subjetivo, porque se dirige ao Estado, que não pode recusar-se a prestar a tutela jurisdicional. Nesse sentido, o Estado fica obrigado à prestação jurisdicional (ainda quando o direito de ação seja exercitado contra ele), que poderá ser favorável ou desfavorável, desde que preenchidas as condições da ação, daí a natureza abstrata do direito de ação. É, sobremais, um direito autônomo, pois independe da existência de um direito material.

4.3. Destina-se a conferir proteção a situações de ameaça

O direito de ação destina-se a questionar não somente a violação de direito, mas, ainda, a simples ameaça de sua violação.

Para que se caracterize a ameaça, é imprescindível a manifestação externa dos atos tendentes a violar o direito, servindo a ameaça de fundamento jurídico-constitucional para provimentos emergenciais, como, por exemplo, o manejo de ações cautelares, de pedidos de antecipação de tutela, dentre outras medidas, que tenham o condão de assegurar a eficácia da futura sentença [44].

O simples temor de um estado de perigo, exprimido apenas no íntimo do indivíduo, mediante juízo subjetivo ou como um fenômeno psicológico, não justificam o acionamento do Judiciário. Urge, quando menos, sejam exteriorizados atos preparatórios a empreendimento futuro, cuja projeção possa configurar lesão a direito. A ameaça nunca poderá ser presumida, sendo necessário que decorra de indícios objetivos e assuma a feição de que uma efetiva lesão de direito é iminente [45].

4.4. Independe da qualificação jurídica do direito material a ser protegido

O direito constitucional de ação pode ser invocado de forma ampla, independentemente da qualificação jurídica do direito material a ser por ele protegido.

Sem embargo, tanto o titular do direito individual, quanto o do direito meta-individual, e mesmo os entes despersonalizados que possuam personalidade judiciária, a exemplo da massa falida, do condomínio e do espólio, podem pleitear a tutela jurisdicional adequada.

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Se antes existia dúvida quanto à extensão subjetiva do direito de acesso ao Judiciário, a atual Constituição da República extirpou eventuais incertezas, ao suprimir o adjetivo individual, que se seguia ao vocábulo direito, contido na Carta de 1967 (art. 153, §4).

Destarte, a norma vigente assegura a ampla garantia do direito de ação também quanto aos sujeitos, independentemente do direito material que se visa dar guarida.

4.5. Limitações

À exceção dos contornos impostos pelo próprio texto constitucional, não se admitem outras restrições ao direito de acesso ao Judiciário, mesmo porque cuida-se de garantia fundamental, cláusula pétrea, portanto, que sequer por via de emenda à Constituição pode ser alterada (art. 60, §4, IV, CF), o que significa que "lei alguma poderá auto-excluir-se da apreciação do Poder Judiciário quanto à sua constitucionalidade, nem poderá dizer que ele seja ininvocável pelos interessados perante o Poder Judiciário para resolução das controvérsias que surjam da sua aplicação" [46].

Por conseguinte, apenas em relação às ações concernentes à disciplina e competições esportivas é que pode ser exigido o esgotamento das instâncias da Justiça Desportiva, conforme determinado pelo art. 217, §1º, da Constituição Federal.

Afora isso, o princípio da proteção judiciária "fundamenta-se no princípio da separação dos poderes, reconhecido pela doutrina como a garantia das garantias constitucionais" [47], cifrando-se, pois, num dos "postulados básicos do Estado de Direito" [48], e, como tal, encontra-se protegido por uma declaração de imodificabilidade embutida pelo Poder Constituinte originário, que veda, peremptoriamente, a proposta de emenda tendente a abolir a separação dos Poderes (art. 60, §4º, II, CF).

Do exposto, infere-se que o princípio constitucional do direito de ação encontra-se protegido contra atos do Poder Constituinte derivado, que possam implicar sua mitigação ou eliminação, tanto porque trata-se de manifestação do princípio da separação dos poderes, como pelo fato de constituir garantia fundamental. A consequência disso é que qualquer lei tendente a modificar a Constituição Federal sob esse aspecto, será reputada inconstitucional, conforme lição de Bachof:

"Uma lei de alteração da Constituição (...) pode infringir, formal ou materialmente, disposições da Constituição formal. Dá-se o primeiro caso, quando não são observadas as disposições processuais prescritas para a alteração da Constituição; ocorre o último, quando uma lei se propõe alterar disposições da Constituição contrariamente à declaração da imodificabilidade destas inserta no documento constitucional (...) Não é necessário mostrar mais pormenorizadamente que a lei de alteração, embora sendo ela própria uma norma constitucional formal, seria, num como no outro caso, ‘inconstitucional’" [49].

Nesse sentido, também é o ensinamento de Jorge Miranda, que reconhece ser materialmente inconstitucional uma lei de revisão que: "a) Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais que devam reputar-se limites materiais da revisão, embora implícitos"; ou "b) Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos" ou "c) Estabeleça normas contrárias a princípios constitucionais elevados a limites materiais expressos, com concomitante eliminação ou alteração da respectiva referência ou cláusula" ou "d) Estipule como limites materiais expressos princípios contrários a princípios fundamentais da Constituição" [50].

Finaliza o referido jurista português dizendo que não assiste razão àqueles que negam a possibilidade de inconstitucionalidade material da revisão - ao argumento de que as normas por ela criadas ficariam no mesmo plano hierárquico das normas constitucionais e que seria contraditório indagar acerca da sua constitucionalidade -, uma vez que a inconstitucionalidade material da revisão é fenômeno homologo ao da ilegalidade da lei, ou seja, não é pelo fato das normas serem da mesma categoria ou do mesmo grau que deixam de interceder relações de constitucionalidade ou legalidade [51].

Nada impede, todavia, que, acaso possível, seja conferida à norma superveniente interpretação conforme a Constituição, evitando-se, desse modo, a sua declaração de inconstitucionalidade e consequente retirada do ordenamento. Tal medida, contudo, somente se apresentará possível quando a norma apresentar vários significados, uns compatíveis e outros incompatíveis com a norma constitucional. Segundo assinala Moraes, a finalidade da interpretação conforme a constituição reside em "possibilitar a manutenção no ordenamento jurídico de leis e atos normativos editados pelo poder competente que guardem valor interpretativo compatível com o texto constitucional" [52]. Essa é, também, a posição albergada pelo Supremo Tribunal Federal, como se pode perceber do julgamento, publicado no DJ de 04.02.05, da medida cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3395/DF, tendo como Relator o Ministro Cezar Peluso [53].

4.5.1. Limitações naturais

Como visto acima, o direito constitucional de ação tem, como uma de suas consequências, o direito ao processo, posto ser este o instrumento de atuação da atividade jurisdicional. Aquele, de nada serviria, se não implicasse a garantia deste.

O processo deve ser assegurado a todos, mas, especialmente, deve configurar instrumento hábil a conferir a tutela a que o cidadão realmente fizer jus, por isso a necessidade de preenchimento das condições da ação e dos pressupostos processuais e a imposição de observância dos prazos e formas dos atos processuais. Preditas exigências nada mais são do que limitações naturais ao exercício do direito de ação, quedando-se, portanto, legítimas.

Essa é também a opinião de Nelson Nery Junior, para quem o direito de ação "é um direito cívico e abstrato, vale dizer, é um ‘direito subjetivo à sentença tout court’, seja essa de acolhimento ou de rejeição da pretensão, desde que preenchidas as condições da ação" (destacamos) [54].

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Sobre a autora
Andréa Presas Rocha

Juíza do Trabalho Auxiliar da 16ª Vara de Salvador/Ba, mestre em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito do Trabalho pela PUC-SP, doutoranda em Direito Social pela Universidad Castilla La Mancha na Espanha e professora universitária.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Andréa Presas. Princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (direito de ação). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2497, 3 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14788. Acesso em: 29 mar. 2024.

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