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"O estrangeiro".

Uma visão absurda do Direito em Camus

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30/05/2010 às 00:00
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5. CAMUS E A PENA DE MORTE

Segundo Camus, para quem a morte representava o fim definitivo da existência, uma vez que ele não acreditava em nenhuma forma de vida após a morte, morrer significava a suprema injustiça e o supremo absurdo, pois com a morte desaparece toda a oportunidade que o homem possa ter de ser feliz.

De todos os tipos de morte, segundo ele, merecia especial destaque a pena de morte, pelo seu primitivismo e barbarismo, uma vez que representava a institucionalização do absurdo refletindo o anti-humano que representou o inicio do século XX.

Ao longo da história humana a tendência da civilização ocidental foi sempre a de regulamentar e até banir a pena de morte. Na antiguidade e na idade média, os donos de terra tinham o direito de aplicar a justiça dentro de seus territórios, utilizando-se dos diferentes tipos de penas, inclusive da pena capital, para crimes que variavam muito em suas gravidades.

A Idade Média foi marcada por execuções: delinquentes comuns eram executados na roda ou por enforcamento, hereges queimados vivos, nobres e militares decapitados e criminosos políticos esquartejados. A Inquisição eliminava todo aquele que representasse um perigo para a manutenção de sua instituição. Este representou um período negro na história humana, em que a crítica e a reflexão filosófica ficaram obscurecidas. A Idade Contemporânea é caracterizada pela presença de diversos filósofos e pensadores. Montesquieu e Voltaire (e os enciclopedistas) condenaram a tortura e os julgamentos sumários. Cesare Beccaria, humanista italiano, em seu famoso tratado "Dos Delitos e das Penas" (1764), pede simplesmente a anulação da pena de morte, por considerá-la bárbara e inútil.

Entretanto, a reação contra a pena de morte começou a surgir no século XVIII com o movimento de libertação contra o Direito Penal antigo e o Antigo Regime. Beccaria foi o mais importante dentre os escritores que se voltaram contra a pena capital, no entanto, ele ainda a considerava legítima em dois casos, como se observa em seu tratado a respeito dos Delitos e das Penas:

Nos instantes confusos em que a nação está na dependência de recuperar ou perder sua liberdade, nos períodos de confusão quando se substituem as leis pela desordem; e quando um cidadão, embora sem a sua liberdade, pode ainda, graças às suas relações e ao seu crédito, atentar contra a segurança pública, podendo a sua existência acarretar uma revolução perigosa no governo estabelecido [17]

Beccaria, baseado no princípio de que o Estado não tem o direito de dispor da vida humana, princípio do qual se valeria Camus anos mais tarde, defendia que a função deste mesmo Estado era, antes, a de proteger e não a de suprimir a vida humana, a não ser para proteger o inocente diante da agressão injusta.

O único trabalho teórico de Camus sobre a pena de morte, de acordo com Barreto, foi o ensaio intitulado "Reflexions sur la guillotine" publicado na "Nouvelle revue française" e depois como capítulo do livro "Reflexions sur la peine de mort" escrito em conjunto com Arthur Koestler. [18]

Para Camus a grande importância do escritor estava no fato de a ele pertencer a responsabilidade de despertar a imaginação popular para as injustiças do mundo. Com relação à pena de morte caberia a ele desmistificá-la, desnudá-la diante da sociedade para que ela adquirisse a consciência do que estava sendo realizado em seu nome.

A respeito do primeiro argumento em favor da pena capital alegado por seus defensores, o de que a pena de morte era um castigo exemplar, Camus o considerava como falso, uma vez que para surtir este efeito ela deveria ter uma ampla publicidade, em vez de se realizar em uma madrugada diante de alguns poucos funcionários encarregados da execução.

Beccaria, a respeito de tal argumento, vai além, na defesa da vida ao afirmar que:

O espetáculo atroz, porém momentâneo, da morte de um criminoso, é um freio menos poderoso para o crime, do que o exemplo de um homem a quem se tira a liberdade, tornado até certo ponto uma besta de carga e que paga com trabalhos penosos o prejuízo que causou à sociedade. Essa íntima reflexão do espectador: ‘se eu praticasse um delito, estaria toda a minha existência condenada a essa miserável condição’ – essa idéia terrível assombraria mais vivamente os espíritos do que o temor da morte, que se entrevê apenas um momento numa obscura distância que diminui o seu horror [19]

A segunda justificativa apresentada pelos defensores da pena capital é a de que a execução tem como consequência a diminuição do numero de crimes. Camus, baseado em estatísticas verídicas, contesta este argumento, alegando que as paixões humanas não podem ser disciplinadas por textos legais. Para ele segundo afirma Barreto:

O homem não deixa de matar para evitar ser condenado. O medo da morte pode ser superado pela paixão, pela honra, pela vingança. Toda a história da moderna criminologia mostra como a pena deixou de ser um castigo, uma vingança da sociedade, e passou a constituir um instrumento de correção para aperfeiçoar o homem. A pena de morte é a eliminação de qualquer possibilidade de recuperação. Esta porta fechada para a recuperação do homem representa de fato o aspecto mais negativo da pena capital. [20]

Além disso, é considerado o fator psicológico e a complexidade da personalidade do criminoso para se deixar impressionar pela morte. Camus adverte que, considerando-se os crimes que deixariam de ocorrer com a morte do criminoso se estaria considerando fatos não palpáveis, dos quais a justiça não deverá se valer para apresentar suas conclusões. Neste caso, a morte que é algo muito concreto e verificável, estaria sendo aplicada por alguma coisa não verificável. Assim, o criminoso seria condenado menos pelo crime que realmente cometeu do que pelos crimes que poderiam ter sido cometidos.

A crítica de Camus à pena de morte está mais ligada à sua fidelidade ao homem e à sua ideia de felicidade. No entanto, tal crítica nada tem a ver com uma crença na bondade natural humana, como defendia Rousseau, mas a abolição desta pena era defendida como consequência de um pessimismo racional diante da falibilidade humana. A tudo isso se aliava sua profunda confiança na força do homem em recuperar-se, por isso ele defendia um tipo de instituição que fosse adaptável à natureza humana e que possibilitasse o desenvolvimento do homem como pessoa.

O efeito desumanizador da pena de morte, segundo Camus, era o mais sinistro e também o mais desconhecido pelo público. Por ele o criminoso deixa de ser uma pessoa tornando-se um objeto nas mãos do carrasco, além de cumprir uma pena extra, representada pela tortura que é a espera pela morte durante meses ou anos. Desta forma, o condenado anula-se como homem, pois não tem nem mesmo o direito ao instinto de autodefesa. Assim, continuando Barreto:

Camus descreve as formalidades que cercam a cerimônia de execução do condenado à morte. Enquanto o próprio boi nega-se ao comer quando vai para o matadouro, o homem condenado não se pode dar a este luxo. Ele é obrigado a fazer a ultima refeição para que a máquina judiciária esteja certa de que o condenado encontra-se no gozo de suas faculdades físicas e mentais. Existe em todo o processo uma injustiça fundamental, que aparece no constante tripudiar da maquina judiciária sobre o condenado, que vai desde as pequenas humilhações até o sofrimento da família do réu [21]


6. O ESTRANGEIRO: UM DIREITO ABSURDO

Em O Estrangeiro Camus questiona muitos aspectos da vida e dos valores humanos que passaram a ser vistos de uma maneira relativizada a partir do século XIX, entre eles merece especial destaque o funcionamento do sistema judiciário, tido para o autor como uma instituição absurda, uma vez que vem moldar o comportamento social de acordo com os preceitos morais dominantes.

No romance o protagonista, Meursault, é um homem habituado a uma vida monótona e cotidiana, que parece desprovido de toda curiosidade e sensibilidade, que não obedece a nada senão aos seus instintos mais elementares, determinando-se ao acaso e vivendo uma vida sem grandes acontecimentos. Meursault, ao longo do romance, relata como ele se torna, em questão de minutos, o assassino de um árabe em uma praia na Argélia. Após o crime ele é preso, julgado e condenado à morte.

O protagonista do romance, após levar uma existência que revela o seu total alheamento em relação à realidade que o cerca, não demonstra, em momento algum, uma posição a respeito do que quer que seja. Meurseault é o homem ao qual não pertencem os acontecimentos de sua própria vida, tal é a sua indecisão, ou, alienação.

Durante os interrogatórios o personagem age de forma incomum para quem deseja a absolvição. Meurseault demonstra frieza, certa despreocupação em relação ao resultado do julgamento, ele não apresenta qualquer argumento a seu próprio favor, nem ao menos se defende. Ao longo do seu processo ele parece não ter consciência de seu crime, tornando-se um objeto de escândalo para o procurador, o juiz e até para o seu próprio advogado. Como um estrangeiro àquele universo das leis e da justiça ele ignora os valores convencionais que dão "sentido à vida".

Em sua obra O Estrangeiro, Camus, como Kafka em seu romance O processo, provoca este confronto entre o leitor e sua realidade, que passa a ser vista de um ângulo diferente. Porém, Camus, ao contrário de Kafka, não se utiliza de situações absurdas, sobrenaturais, mas ele vai buscar dentro da própria realidade, ou melhor, dentro do próprio homem, este novo ângulo de visão.

O relato em primeira pessoa apresenta os acontecimentos registrados pela ótica de Meurseault, o condenado. O leitor é forçado a, influenciado por esta narrativa, perceber os fatos de forma diversa da de um espectador comum, a ver com a visão de Meurseault, ou seja, com a visão de alguém que, embora viva nesta sociedade, desconhece completamente as suas regras.

Meurseault é um estrangeiro à realidade do funcionamento de uma sociedade cujas instituições jamais poderão sondar, em seu interior, os verdadeiros motivos que o levaram a cometer um assassinato. Ele não entende e nem aceita o rigor de sua pena, uma vez que em sua própria visão, ele não tinha a real intenção de matar o árabe. É por meio dessa estranheza que se estabelece entre o mundo dos homens, com suas instituições, e o personagem é que se trava o confronto do leitor com a sua realidade.

Alheio à realidade em que vive, Meurseault não conhece outro mundo senão aquele dos sentidos, o qual invocava constantemente como a invocar a sua verdadeira pátria, distante das realidades das convenções e dos costumes de uma sociedade à qual ele não dava a mínima importância, onde as situações e não as sensações é que determinavam as atitudes.

Por ocasião do julgamento, este alheamento da realidade sobressai. Em seu pensamento tudo era muito simples, pois quisera acabar com tudo aquilo que bem lhe parecia uma farsa, um teatro onde dois homens, que muito pouco sabiam a seu respeito, podiam descrever-lhe o caráter, as intenções e até a alma. De um lado, o seu advogado, e do outro, o procurador, ambos deveriam resolver sobre o seu destino enquanto, a ele, caberia acompanhar a tudo como um mero espectador:

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Uma coisa me incomodava vagamente. Apesar das minhas preocupações, às vezes, eu ficava tentado a intervir, e meu advogado me dizia, então, ‘cale-se, é melhor para o seu caso’. De algum modo, pareciam tratar deste caso à margem de mim. Tudo se desenrolava sem a minha intervenção. Acertavam o meu destino, sem me pedir uma opinião. De vez em quando tinha vontade de interromper todo mundo e dizer : ‘mas afinal quem é o acusado. [22]

A cada argumento das partes o protagonista se via cada vez menos no processo, porque desconhecia na sua ingenuidade, ou na sua "doença", os artifícios de oratória utilizados nos tribunais, onde o réu é pintado de tal forma que disso dependerá o convencimento do júri, e, às vezes, até mais disto que dos fatos propriamente ditos, a ponto de afirmar: "Mas a mim parecia-me que me afastavam ainda mais do caso, reduziam-me a zero e, de certa forma, substituíam-me. Mas acho que eu já estava muito longe desta sala de audiência.". [23]

Destes artifícios se valeram as partes durante todo o processo, a ponto de em nenhum momento considerarem a perda de uma vida humana (a vida do árabe) como o fato principal do processo. Apelou-se mais para os "crimes" de Meursault contra as convenções sociais, contra as instituições estabelecidas e contra os costumes. Era alegado o fato de não ser casado com a mulher com quem dormia, de ter fumado durante o velório de sua mãe, de não ter chorado no enterro, entre outros. A sua principal desumanidade residia no fato de haver mantido, durante anos, sua mãe em um asilo, sem ao menos visitá-la durante este período, o que é observado quando o procurador, no clímax do seu discurso, no momento em que pede a pena de morte ao réu, afirma ser este culpado, não somente de seu crime, como também do crime que seria julgado no dia seguinte - referindo-se a um famoso caso de parricídio - conforme observado no seguinte trecho:

« ainda na opinião dele, um homem que matava moralmente a mãe, devia ser afastado da sociedade dos homens, exatamente como o que levantava a mão criminosa contra o autor dos seus dias » [24]

Ao ser inquirido pelo procurador, representante da justiça, percebe-se que este dá pouca importância ao caso que está sendo tratado e à vitima, preferindo ressaltar hábitos nada convencionais de Meursault, considerados imorais, insensíveis e desrespeitosos para provar a sua culpa perante o júri.

Para Camus uma das principais características do homem absurdo era a falta de iniciativa, o não determinar-se que fez de Meursault um joguete nas mãos de um sistema judiciário cujo funcionamento ele ignorava completamente. Diante do juiz, ao ser interrogado a respeito de seu advogado, ele diz:

Depois quis saber se eu já escolhera um advogado. Admiti que não, e perguntei-lhe se era absolutamente necessário ter um advogado.- por que – perguntou ele. Respondi que achava o meu caso muito simples. Sorriu ao dizer : - é uma opinião. No entanto, a lei existe. [25]

A inconsciência de Meurseault o leva a confiar ingenuamente sua defesa nas mãos de pessoas que ele nem ao menos conhecia, e a uma justiça cujos caminhos ele igualmente ignorava. Este desconhecimento é reforçado por Camus em determinados trechos do romance onde os procedimentos judiciais aparecem para o personagem como algo obscuro, quase irreal

: "Recebeu-me numa sala guarnecida de cortinas, tinha em cima da mesa um única lampião, que iluminava a poltrona onde me fez sentar, enquanto ele mesmo ficava na sombra. Já tinha lido descrições semelhantes em livros e tudo isso me pareceu um jogo ». [26]

Meurseault entrega-se sem nenhum questionamento a este mundo onde prevalece o formalismo e as verdades cuidadosamente articuladas. Ele desconhece que neste universo da justiça a verdade é algo que se pode inventar, questionar, adaptar da melhor maneira possível a fim de convencer o júri. Meurseault ignora este artifício. Como um estrangeiro ao mundo em que vive ele ignora, ou simplesmente, não liga para a existência de convenções sociais, deste jogo que o homem costuma fazer de apresentar-se diante da sociedade não como realmente é, mas como melhor lhe convém ser, a exemplo de seu diálogo com o advogado quando este tentava convencê-lo a encontrar argumentos para a sua absolvição, onde ele diz:

"perguntou-me se ele poderia dizer que, no dia, eu controlara os meus sentimentos naturais. – não, não é verdade – respondi. Olhou-me de modo estranho, como se eu lhe inspirasse uma certa repulsa. » [27]

Após sua condenação Meurseault passa a refletir a respeito de sua existência e de conceitos sobre os quais nunca havia pensado antes, a considerar a importância de sua liberdade e a arrepender-se de sua inconsciência, uma vez que passa a ter longe de si tudo o que significava de fato esta liberdade: os amigos, a namorada, o banho de mar, enfim, a realização da vida dos sentidos que para ele significava a própria felicidade.

Ao longo de todo o processo de Meurseault, Camus critica um Direito baseado em conceitos superados e em uma moral decadente. Em nenhum momento ele questionará a culpa ou inocência do personagem, pois o que pretende ressaltar é a forma como se desenrola esta justiça.

Meurseault simplesmente é condenado, não porque matou um árabe, pessoa humana, em uma praia na Argélia, mas por não conseguir se adequar aos valores morais de uma sociedade conservadora, em outras palavras, por ser ateu, por não dar nenhuma importância à instituição do casamento, por não chorar durante o enterro de sua mãe, entre outros motivos.

Observa-se que a valoração atribuída às instituições sociais aparece acima da valoração que é atribuída à vida da pessoa humana, uma vez que em nenhum momento a pessoa do árabe é mencionada durante o julgamento.

Assim, Camus passa a considerar a verdadeira finalidade das instituições jurídicas de seu tempo que será, a seu ver, não a de buscar a realização, a felicidade do homem, explorando as suas potencialidades e adaptando-se à sua natureza, mas a de manter a ordem vigente, adequando este homem às necessidades de um sistema socioeconômico que determinará a cada um o seu devido lugar na sociedade.

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Sobre a autora
Silvia Cristina Costa Porto

Graduada em Letras e Literatura Francesa pela universidade Federal do Maranhão, graduanda em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PORTO, Silvia Cristina Costa. "O estrangeiro".: Uma visão absurda do Direito em Camus. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2524, 30 mai. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14931. Acesso em: 29 mar. 2024.

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