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Direito e reforma agrária

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01/02/2000 às 01:00
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3. – Fontes do Direito Agrário

Constituem-se fontes do Direito Agrário, além da Constituição Federal, as normas infra-constitucionais constantes da lei, dos decretos, portarias e normas regulamentadoras da atividade agrária, bem como os costumes, como fonte consuetudiária, e a jurisprudência dos tribunais, daí poderemos sistematizá-las da seguinte forma:

          a)- a Constituição Federal;

          b)- o direito legislado federal;

          c)- o costume;

          d)- a jurisprudência.

Como fonte constitucional de Direito Agrário, a Constituição Federal vigente possui, dentre outros, os seguintes dispositivos regradores:

          a)- Garantia do direito de propriedade, cf. inciso XXII, art. 5º;

          b)- A função social como princípio basilar – inciso XXIII, art. 5º;

          c)- A desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária – inciso XXIV, art. 5º;

          d)- Proteção à pequena propriedade rural contra débitos decorrentes de sua atividade produtiva – inciso XXVI, art. 5º;

          e)- Capacidade da União para legislar sobre direito agrário – art. 22, inciso I;

          f)- Competência comum da União, Estados e Distrito Federal de proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inc. VI, art. 23); preservar as florestas, a fauna e a flora (inc. VII, art. 23) e fomentar a produção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar (inc. VIII, art. 23, CF);

          g)- Competência da União para desapropriar imóveis rurais, por interesse social, para fins de reforma agrária, promovendo a política agrícola e fundiária e a reforma agrária (Capítulo III, da Constituição Federal).

Registre-se, por oportuno, que a fonte primária, também chamada de fonte de criação, comum a todos os ramos do direito privado, é a vontade das partes, que vamos encontrá-la embutida nos usos e costumes que fizeram nascer, antes mesmo do surgimento do contrato, o vínculo obrigacional entre os sujeitos da relação jurídica agrária. Digamos que ainda hoje essa fonte é prevalente, porquanto é a partir do surgimento da vontade de contratar que nasce o instrumento regrador do vínculo obrigacional, o contrato. Este, por sua vez, terá que se ajustar aos ditames da legislação, constitucional e infra-constitucional. Portanto, o costume, ainda que não se constitua em fonte imperativa guarda relevante importância histórica.

A Constituição, pois, é a mais importante fonte formal de produção estatal do Direito Agrário, trazendo para o mundo do direito os princípios fundamentais, assegurados superiormente mercê dos obstáculos ao processo de revisão constitucional, o que lhes empresta o sêlo da imodificabilidade


4. – Princípios fundamentais de Direito Agrário

O que devemos entender por princípios fundamentais de Direito Agrário ontologicamente? Essa a primeira indagação que se há de impor para delimitação do campo de nosso estudo. Segundo o sistema, temos que

          princípios fundamentais de um determinado ramo da Ciência do Direito são aqueles sobre os quais o sistema jurídico pode fazer opção, considerando aspectos políticos e ideológicos. Partindo dessa premissa, teremos que considerar que, por isso mesmo, são princípios que admitem oposição frente a outros, de conteúdo diverso, tudo dependendo da tolerância do sistema em que se encontrem inseridos. Diferem, portanto, dos chamados princípios informativos, que são verdadeiros postulados irremovíveis do sistema, por não admitirem oposição, tais como os chamados princípios a)- lógico, b)- jurídico, c)- político e, d)- econômico, de franca aplicabilidade no sistema processual, a que o Direito Agrário terá que se vincular no instante em que passar a dispor, como os demais ramos do sistema, de um direito processual agrário.

Os princípios informativos, pois, são comuns a todos os ramos da Ciência do Direito. Já os princípios fundamentais, diversamente, são aqueles que se podem moldar, ou seja, podem se ajustar à ocasião, daí o poderem se opor um a outro que seja mais adequado ao fato e ao direito em discussão. Eis porque é conveniente denominarmos tais princípios de princípios peculiares ao Direito Agrário, exatamente porque guardam características de princípios próprios, não axiomáticos, exatamente porque têm necessidade de características ideológicas e admitem, portanto, antagonismo.

Assim entendido poderemos afirmar que se constituem princípios fundamentais de Direito Agrário, porque lhe são peculiares, próprios, dentre outros:

          a)- a função social da propriedade;

          b)- o progresso econômico e social do rurícola;

          c)- o combate sistemático ao minifúndio e ao latifúndio;

          d)- o imposto territorial rural.

Para o agrarista Paulo Torminn Borges2, esses princípios fundamentais se elastecem num rol de quatorze tópicos, apontando ele como tais:

          a)- a função social da propriedade;

          b)- o progresso econômico do rurícola;

          c)- o progresso social do rurícola;

          d)- fortalecimento da economia nacional, pelo aumento da produtividade;

          e)- o desenvolvimento do sentimento de liberdade (pela propriedade) e de igualdade (pela oferta de oportunidades concretas);

          f)- implantação da justiça distributiva;

          g)- eliminação das injustiças sociais no campo;

          h)- povoamento da zona rural, de maneira ordenada;

          i)- combate ao minifúndio;

          j)- combate ao latifúndio;

          l)- combate a qualquer tipo de propriedade rural ociosa, sendo aproveitável e cultivável;

          m)- combate à exploração predatória ou incorreta da terra;

          n)- combate aos mercenários da terra.

Esses princípios, pois, como veremos na seqüência, serão estudados separadamente, ainda que eles apareçam aqui, tão-somente, como indicadores de sua existência e integrantes de um arcabouço sistemático. Preferimos, assim, para melhor disciplinamento didático, nos atermos ao rol que indicamos, ainda que a classificação do mestre goiano não mereça ser desprezada, prestando-se, sem dúvida, para aprofundamentos futuros de nossos estudantes que pretendam ir além do simples bacharelado.


3. – REFORMA AGRÁRIA

Falar sobre a história da reforma agrária, no Brasil, como bem acentua um documento da FAO, é, verdadeiramente, falar sobre uma história de oportunidades perdidas, considerando que o tema sempre mereceu primazia nas rodas políticas, desde o início da colonização, pois, do mesmo modo como ocorreu com a América espanhola, nosso País foi incorporado ao capitalismo europeu no início do século 16, passando a fazer parte das colônias que forneciam matérias primas às metrópoles européias. O que predominava nos colonizadores era a avidez do lucro, daí a preocupação principal da coroa em concentrar os seus esforços na plantação da cana-de-açúcar, deixando para segundo plano a produção de gêneros alimentícios de subsistência, que eram produzidos por pequenos agricultores, normalmente em terras arrendadas a grandes proprietários, sem contar o esforço do braço escravo nos dias de tempo livre, ou seja, nos feriados, domingos e após terminar a tarefa diária exercitada na lavoura canavieira.

Sempre que o produto agrícola de exportação elevava de preço no mercado mundial, diminuía consideravelmente a produção de gêneros alimentícios de subsistência na colônia, e isso porque todas as terras eram ocupadas com o plantio do produto de exportação e todos os escravos eram requisitados para o trabalho nas áreas cultivadas, sem permissão para dela se afastar, a não ser nos períodos de descanso. Resta evidente que nesse período de dedicação exclusiva à cultura de exportação, a fome tomada conta da colônia, notadamente no seio da população escrava, gerando uma crise sem precedentes da agricultura de subsistência, a ponto de forçar a metrópole intervir, através de uma legislação que tornava obrigatório ao proprietário de terras destinar uma parte de seu domínio ao plantio de gêneros alimentícios de subsistência. Isso fez nascer pequenos produtores dedicados à agricultura, praticada em terras doadas pela Coroa, sem, no entanto, transferir o domínio da terra ao seu ocupante, que permanecia na condição de posseiro meramente. Aí está, pois, o embrião originário da pequena propriedade no Brasil.

Ainda colônia de Portugal, o Brasil não teve os movimentos sociais que, no século 18, democratizaram o acesso à propriedade da terra e mudaram a face da Europa. No século 19, o fantasma que rondou a Europa e contribuiu para acelerar os avanços sociais não cruzou o Oceano Atlântico, para assombrar o Brasil e sua injusta concentração de terras. E, ao contrário dos Estados Unidos que, no período da ocupação dos territórios do nordeste e do centro-oeste, resolveram o problema do acesso à terra, a ocupação brasileira - que ainda está longe de se completar - continuou seguindo o velho modelo do latifúndio, sob o domínio da mesma velha oligarquia rural.

As revoluções socialistas do século 20 - russa e chinesa, principalmente - embora tenham chamado a atenção de parcela da elite intelectual brasileira, não tiveram mais do que influência teórica. O Brasil também não passou pelas guerras que impulsionaram a reforma agrária na Itália e no Japão, por exemplo. Tampouco fez uma revolução de bases fortemente camponesas, como a de Emiliano Zapata, no México do começo do século.

Na Primeira República ou República Velha (1889-1930), grandes áreas foram incorporadas ao processo produtivo e os imigrantes europeus e japoneses passaram a desempenhar um papel relevante. O número de propriedades e de proprietários aumentou, em relação às décadas anteriores, mas, em sua essência, a estrutura fundiária manteve-se inalterada.

A revolução de 1930, que derrubou a oligarquia cafeeira, deu um grande impulso ao processo de industrialização, reconheceu direitos legais aos trabalhadores urbanos e atribuiu ao Estado o papel principal no processo econômico, mas não interveio na ordem agrária. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o Brasil redemocratizou-se e prosseguiu seu processo de transformação com industrialização e urbanização aceleradas. A questão agrária começou, então, a ser discutida com ênfase e tida como um obstáculo ao desenvolvimento do país. Dezenas de projetos-de-lei de reforma agrária foram apresentados ao Congresso Nacional. Nenhum deles, no entanto, foi aprovado.

No final dos anos 50 e início dos 60, os debates ampliaram-se a nível nacional com a ativa participação popular. As chamadas reformas de base (agrária, urbana, bancária e universitária) eram consideradas essenciais pelo governo, para o desenvolvimento econômico e social do país. Entre todas, no entanto, foi a reforma agrária que polarizou as atenções. Em 1962, foi criada a Superintendência de Política Agrária - SUPRA, como sucessora do antigo INIC – Instituto Nacional de Imigração e Colonização, com a atribuição de executar a reforma agrária.

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Em março de 1963, foi aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no campo, que até então estivera à margem da legislação trabalhista. Um ano depois, em 13 de março de 1964, o Presidente da República assinou decreto (Decreto-Lei nº 1.164) prevendo a desapropriação, para fins de reforma agrária, das terras localizadas numa faixa de dez quilômetros ao longo das rodovias, ferrovias e açudes construídos, em construção ou planejados pela União. No dia 15, em mensagem ao Congresso Nacional, propôs uma série de providências consideradas "indispensáveis e inadiáveis para atender às velhas e justas aspirações da população." A primeira delas, a reforma agrária.

Não houve tempo, entretanto, para que quaisquer daquelas providências pudessem ser postas em prática, pois no dia 1 de abril de 1964 (que os militares quiseram consagrar como 31 de março para não o associarem ao "dia internacional da mentira"), caiu o Presidente da República e teve início o ciclo dos governos militares, que duraria 21 anos.


Resultados Objetivos da Reforma Agrária

Nos primeiros 15 anos de vigência do Estatuto da Terra (1964-1979), o capítulo relativo à reforma agrária, na prática, foi abandonado, enquanto o que tratava da política agrícola foi executado em larga escala.

No total, foram beneficiadas apenas 9.327 famílias em projetos de reforma agrária e 39.948 em projetos de colonização. O índice de Gini, da distribuição da terra, no Brasil, passou de 0,731 (1960) para 0,858 (1970) e 0,867 (1975). Esse cálculo inclui somente a distribuição da terra entre os proprietários. Se forem consideradas também as famílias sem terra, o índice de Gini evidencia maior concentração ainda: 0,879 (1960), 0,938 (1970) e 0,942 (1975). Na verdade, em 50 anos, as pequenas alterações que ocorreram, em termos de concentração de terra, no Brasil, foram para pior, consoante mostram as estatísticas oficiais existentes e pouco divulgadas.

No início da década de 80, o agravamento dos conflitos pela posse da terra, na região Norte do país, levou à criação do Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários e dos Grupos Executivos de Terras do Araguaia/Tocantins - GETAT, e do Baixo Amazonas – GEBAM, reflexo da mania brasileira de se criar órgãos e órgãos e pouco ou quase nada resolver, posto que o Ministério da Agricultura, jurisdicionando o INCRA até então, vinha realizando um trabalho de regularização fundiária digno de encômios, pois os resultados auferidos poderiam muito bem se refletir no sucesso dos programas de reforma agrária, entretanto as terras devolutas apuradas mediante discriminação não recebiam imediata destinação, ficando à mercê dos invasores, de grileiros e dos comerciantes da posse, faltando, isto sim, uma vontade política de bem direcionar os programas de reforma agrária no País, autorizando-nos a afirmar que o balanço das realizações desses três órgãos, é pobre, ainda que se possa registrar alguns poucos milhares de títulos de terra distribuídos a posseiros regularizados.

Nos seis anos do último governo militar (1979-1984), a ênfase de toda a ação fundiária concentrou-se no programa de titulação de terras. Nesse período, foram assentadas 37.884 famílias, todas em projetos de colonização, numa média de apenas 6.314 famílias por ano. A ação fundiária no período 1964-1984, revela uma média de assentamento de 6.000 famílias por ano.

Em 1985, o governo do Presidente José Sarney elaborou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), previsto no Estatuto da Terra, com metas extremamente ambiciosas: assentamento de um milhão e 400 mil famílias, ao longo de cinco anos. No final de cinco anos, porém, foram assentadas cerca de 90.000 apenas.

A década de 80 registrou um grande avanço nos movimentos sociais organizados em defesa da reforma agrária e uma significativa ampliação e fortalecimento dos órgãos estaduais encarregados de tratar dos assuntos fundiários. Quase todos os Estados da federação contavam com este tipo de instituição e, em seu conjunto, ações estaduais conseguiram beneficiar um número de famílias muito próximo daquele atingido pelo governo federal.

No governo de Fernando Collor (1990-1992), o programa de assentamentos foi paralisado, cabendo registrar que, nesse período, não houve nenhuma desapropriação de terra por interesse social para fins de reforma agrária. O governo de Itamar Franco (1992-1994) retomou os projetos de reforma agrária. Foi aprovado um programa emergencial para o assentamento de 80 mil famílias, mas só foi possível atender 23 mil com a implantação de 152 projetos, numa área de um milhão 229 mil hectares.

No final de 1994, após 30 anos da promulgação do Estatuto da Terra, o total de famílias beneficiadas pelo governo federal e pelos órgãos estaduais de terra, em projetos de reforma agrária e de colonização, foi da ordem de 300 mil, estimativa sujeita a correções, dada a diversidade de critérios e a falta de recenseamento no período 1964-1994.

Nos países onde houve Reforma Agrária, os efeitos foram extraordinários, como é sabido, resultando no aumento das propriedades rurais (exceto no México e na Rússia) aumento de empregos, aumento de produção, melhoria extraordinária da qualidade de vida dos trabalhadores rurais (condições de bem-estar e de progresso social e econômico).

Como conclusão, óbvia, impõe-se uma Reforma Agrária no Brasil, de forma eficaz, democrática, econômica e social. Sem a extinção da condição de miséria de milhões de agrícolas, não teremos condições de desenvolvimento, mesmo porque se eles passarem a ter condições de progresso social e econômico, não se aumentará produção agrária, como passarão aumentar o mercado de consumo interno relativamente a alimentos bens industrializados.

Todos esperamos pelo fim da grande miséria e da fome em nosso País e isso só se alcançará com a Reforma Agrária, que é meta prioritária. O Brasil chega às portas do século 21 sem ter resolvido um problema com raízes no século 16.


NOTAS

  1. – "Agricultura y Derecho Agrario", apud Valdemar P. da Luz in Curso de Direito Agrário, Sagra-DC Luzzatto Editores, Porto Alegre, 1993, pág. 7
  2. – Institutos Básicos de Direito Agrário, Ed. Saraiva, São Paulo, 1991, pág. 26
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Sobre o autor
Ismael Marinho Falcão

advogado e jornalista em João Pessoa (PB), professor de Direito no Centro Universitário de João Pessoa

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FALCÃO, Ismael Marinho. Direito e reforma agrária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 39, 1 fev. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1671. Acesso em: 28 mar. 2024.

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