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Do patrimônio construído nas uniões concomitantes

22/08/2010 às 14:27
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Por muitos anos, o adultério foi considerado crime e se entendia inviável a concessão de qualquer tipo de efeito patrimonial à convivente, pois não era admitida a outorga de efeitos jurídicos a fatos ilícitos. Mesmo havendo uma relação estável e duradoura, a justiça não concedia à concubina qualquer tipo de direito: acabada a relação, ela nada recebia, ficando a mercê da sociedade e de seu preconceito, pois não era digna da proteção estatal.

Passados os anos, constatou-se que muitas injustiças ficavam evidenciadas quando da morte ou término de um relacionamento extraconjugal, no qual houve construção de patrimônio pelos partícipes da relação. Com isso, visando amenizar tamanhas injustiças, equiparou-se o concubinato à sociedade de fato, trazendo a matéria para a ótica do direito obrigacional.

O Direito de Família no nosso ordenamento jurídico não admite a bigamia, razão pela qual, o concubinato adulterino é insuscetível de gerar outros efeitos que não o meramente patrimonial, admitindo-se somente a sociedade de fato. [01]

Na resolução de questões patrimoniais, adota-se, com inúmeras discussões, a teoria da sociedade de fato para ser aplicada em relacionamentos concomitantes a um casamento, posto que, nesse caso, entende-se que não existe família propriamente dita, e, sim, mera sociedade de fato entre as partes.

Segundo orientação dominante, as relações dos concubinos adulterinos receberiam incidência das normas de direito obrigacional, aproximando a partilha dos bens comuns as dos sócios de uma sociedade comum. [02]

Ficando demonstrada a colaboração direta de ambos os integrantes da relação para o aumento patrimonial, a problemática torna-se mais fácil de ser solucionada com a equiparação desta relação à sociedade de fato. O problema surge quando o esforço não é direto.

Quando o esforço dos concubinos é ocasionado de forma indireta, o que ocorre na maioria das vezes com a mulher, se a mesma comprovar que o aumento patrimonial só ocorreu com base no suporte doméstico prestado por ela, poderá exigir indenização por serviços prestados durante o tempo que durou a relação. [03]

Procura-se com esta indenização não deixar a concubina desamparada, promovendo automaticamente o enriquecimento ilícito do homem e de sua esposa ou companheira que é abrigada pela lei. Esta indenização, para alguns doutrinadores, é considerada degradante, ferindo fortemente o princípio da dignidade da pessoa humana.

Há que se falar também que, havendo a colaboração direta dos dois concubinos para o aumento patrimonial, e, não havendo a observância da regra do direito das obrigações nesta situação, ficaria evidenciado o locupletamento ilícito de um dos concubinos em desfavor do outro. Seria dar ganho de causa ao enriquecimento ilícito ou sem causa. [04]

Neste sentido é a orientação do Superior Tribunal de Justiça – STJ demonstrada na ementa a seguir:

CONCUBINATO - SOCIEDADE DE FATO - HOMEM CASADO. A sociedade de fato mantida com a concubina rege-se pelo direito das obrigações e não pelo de família. Inexiste impedimento a que o homem casado, além da sociedade conjugal, mantenha outra, de fato ou de direito, com terceiro. Não há cogitar de pretensa dupla meação. A censurabilidade do adultério não haverá de conduzir a que se locuplete, com o esforço alheio, exatamente aquele que o pratica. [05]

A doutrina, por vezes, se mantém reticente ao assunto, referindo-se ao concubinato adulterino com certo preconceito. Neste sentido, podemos vislumbrar a análise do seguinte trecho doutrinário:

Mesmo que a relação com a ''outra'' se assemelhe ao concubinato e constitua, em alguns casos, uma sociedade de fato, passível de partilhamento dos bens adquiridos pelo esforço comum, não se pode identificá-la ao concubinato no moderno sentido da expressão. Em outras palavras, o direito não protege o concubinato adulterino. A amante, a amásia, ou qualquer nomeação que se dê à pessoa que, paralelamente ao vínculo do casamento, mantém uma outra relação, uma segunda ou terceira... ela será sempre a outra, ou o outro, que não tem lugar em uma sociedade monogâmica... . É impossível ao Direito proteger as duas situações concomitantemente, sob pena de se destruir toda a lógica do nosso ordenamento jurídico. Em síntese, a proteção do Estado às relações concubinárias, como entidade familiar, é somente aquelas não-adulterinas. [06]

Também neste viés:

[…] Quando ocorrer tal situação, na prática, o mais correto é indicar que o adúltero continua integrando tão-só a família constituída pelo matrimônio. Nesta ótica o casamento sempre deve prevalecer sobre as relações concubinárias adulterinas. Se é o varão o cônjuge adúltero e tem fora do casamento, com a concubina, um filho, pode-se somente considerar como uma entidade familiar à parte, a concubina e seu filho, nos termos do art. 226, § 4º, da CF, excluído o pai [...]. O concubino devidamente não se insere em nenhum contexto familiar, neste âmbito. Não forma com a mulher adúltera uma entidade familiar porque esta mulher integra, como esposa, a família constituída pelo casamento, com seu marido. [07]

Contudo, a sociedade evoluiu, adquirindo novos valores morais e patrimoniais. E com essa evolução, uma nova concepção se formou na definição do que seria justo e injusto, certo e errado, na aplicação da norma ao caso concreto, quando se fala em divisão de bens em relações que envolvem mais de duas pessoas.

Nas palavras de Maria Berenice Dias:

Como, em regra, o patrimônio está em nome e nas mãos do homem, é onerada a mulher com o encargo de provar que contribuiu de forma efetiva o aporte financeiro para o acréscimo patrimonial eventualmente ocorrido. Mas, se não houve aquisição de bens, nada lhe é deferido, nem alimentos e nem qualquer direito sucessório. Da relação que, indiscutivelmente existiu, safa-se o homem sem qualquer ônus ou encargos, ficando com a integralidade dos bens. O relacionamento desaparece, é condenado à invisibilidade. E, o grande beneficiado é o varão. Por manter dois vínculos afetivos simultâneos livra-se ileso. [08]

Questiona-se: - É razoável que este indivíduo, após adquirir um patrimônio considerável em ambas as relações, saia ileso de um deles, sem nenhuma obrigação, encargo ou punição?

Diz-se que justiça se faz, quando da dissolução de uma vida em comum, com comunhão de interesses, se busque, uns contra os outros, o arrimo necessário aos seus direitos. [09]

Hodiernamente, o Direito já vê com outros olhos o tema da dissolução patrimonial do de cujus, por exemplo, no caso de falecimento deste em constância de união dúplice. O primeiro fator a ser analisado é se houve dedicação de esforços da esposa e da companheira na construção do patrimônio do falecido. Em havendo esforço comum, deveriam ser repartidos de forma igualitária entre os três. Assim, a meação do cônjuge, que corresponde à metade do patrimônio comum, se transformaria em triação.

Neste sentido, são as palavras do Des. Rui Portanova:

Logo, reconhecida a união dúplice ou paralela, por óbvio, não se pode mais conceber a divisão clássica de patrimônio pela metade entre duas. Na união dúplice do homem, por exemplo, não foram dois que construíram o patrimônio. Foram três: o homem, a esposa e a companheira.

Logo, a clássica divisão pelo critério da meação é incompatível com a formação de patrimônio por três pessoas, e não mais por duas.

Aqui é preciso um outro pensar, diria um outro paradigma de divisão. Aqui se pode falar em uma outra foram de partilhar, que vai denominada, com a vênia do silogismo, de "triação", que é a divisão em três e que também deve atender ao princípio da igualdade.

A divisão do patrimônio pressupõe que os beneficiados sejam contemplados igualmente com sua parcela, da forma mais justa e equânime possível. Por isso, quando temos um único casal divide-se o patrimônio por dois. Mas quando o direito passa a regular a partilha da união dúplice nada mais responde ao critério igualizador do que a divisão por três. [10]

Evidencia-se a clara concepção de que não se está mais diante de união entre duas pessoas. Há um relacionamento triangular, ao qual se deve dar efeitos patrimoniais tão lógicos como na meação em que o patrimônio é dividido pela metade. A clássica divisão pelo critério da meação é incompatível com a formação de patrimônio por três pessoas, e não mais por duas.

O primeiro julgado referindo o neologismo "triação" ocorreu em março de 2005, no qual o Des. Rui Portanova explica didaticamente o instituto:


DISSOLUÇÃO DA UNIÃO PARALELA EM VIDA

Tomemos, como primeira hipótese, casos em que, durante um lapso de tempo do homem (por exemplo) viveu ao mesmo tempo o casamento com uma mulher e a união estável com outra mulher. Nesta hipótese a união estável se finda, não com a morte do homem, mas com um desentendimento dos companheiros.

Logo, no momento de fazer a "triação" estão todos os três vivos.

A solução parece simples: basta dividir por três o patrimônio adquirido durante o período em que se reconhece a união dúplice.

A segunda hipótese é a que apresenta maior complexidade. É aquela em que tanto o casamento como a união estável se extingue com a morte do varão.

Essa segunda hipótese foi a que a Câmara discutiu na busca da solução mais igualitária no presente caso.

E para tanto, duas novas hipóteses vieram à baila.


DISSOLUÇÃO COM A MORTE

Há duas maneiras de se pensar a divisão patrimonial quando se está diante de uma união dúplice que se encerra com a morte, como no presente caso, do homem que vivia ao mesmo tempo um casamento e uma união estável.

A primeira maneira seria tomar, como ponto de partida, aqueles mesmos critérios que foram considerados quando se tratava do fim da união dúplice em face do desentendimento dos companheiros da união estável.

Então se pode dividir o patrimônio comum por três. É a idéia de "triação". Um terço pertenceria a esposa, outro terço pertenceria à companheira e o último terço seria a herança deixada pelo "de cujus". [11]

Estudiosos do tema dizem que, atualmente, o concubino tem sido recompensado pela relação adulterina, com parte da pensão do falecido companheiro (adúltero), com a terça parte da herança e com a triação (em vez da meação) dos bens adquiridos onerosamente, mesmo quando cientes de que o companheiro era casado ou já convivia em união estável.

Neste sentido, já foi motivo de julgado pelo Des. Rui Portanova, no Tribunal de Justiça do Estado do RS:

APELAÇÃO. UNIÃO DÚPLICE. UNIÃO ESTÁVEL. PROVA. MEAÇÃO. "TRIAÇÃO". SUCESSÃO. PROVA DO PERÍODO DE UNIÃO E UNIÃO DÚPLICE. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante a outra união estável também vivida pelo de cujus. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. MEAÇÃO (TRIAÇÃO) Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre as companheiras e o de cujus. Meação que se transmuda em "triação", pela duplicidade de uniões. DERAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. POR MAIORIA. [12]

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Marília Andrade dos Santos discorre sobre o conceito de triação:

reconhecida a união dúplice ou paralela, por óbvio, não se pode mais conceber a divisão clássica de patrimônio pela metade entre duas. Na união dúplice do homem, por exemplo, não foram dois que construíram o patrimônio. Foram três: o homem, a esposa e a companheira. Logo, a clássica divisão pelo critério da meação é incompatível com a formação de patrimônio por três pessoas, e não mais por duas. Aqui é preciso um outro pensar, diria um outro paradigma de divisão. Aqui se pode falar em uma outra forma de partilhar, que vai denominada, com a vênia do silogismo, de "triação", que é a divisão em três e que também deve atender ao princípio da igualdade. A divisão do patrimônio pressupõe que os beneficiados sejam contemplados igualmente com sua parcela, da forma mais justa e equânime possível. Por isso, quando temos um único casal divide-se o patrimônio por dois. Mas quando o direito passa a regular a partilha da união dúplice nada mais responde ao critério igualizador do que a divisão por três. [13]

Importa ser dito também que o Tribunal de Justiça de São Paulo vem julgando da mesma forma que o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, orientando suas decisões no sentido de permitir a divisão dos bens do convivente entre a esposa e a concubina. A decisão foi assim ementada:

Inventário - reserva de bens - meação - pretensão de ex-concubina em ação de reconhecimento do concubinato e partilha - admissibilidade - alegação verosimilhante - tutela antecipada - natureza adulterina da relação e contribuição indireta da companheira - irrelevância - improvimento ao agravo de instrumento - Aplicação do art.273, caput, e inciso I, do Código de Processo Civil, e da Súmula 380 do Supremo Tribunal Federal. Pode ser concedida, a título de antecipada de tutela, e ação declaratória da existência de concubinato, cumulada com pedido de partilha, a reserva de bens capazes de garantir, no inventário, o alegado direito de meação da ex-concubina de de cujus, ainda que esse fosse casado e essa não trabalhasse fora. [14]

Partindo do princípio da igualdade entre os indivíduos, princípio este tão enfatizado na Constituição Federal, alguns aplicadores do direito, por entenderem fazer justiça, começaram a dividir o patrimônio que foi comprovadamente adquirido com esforços dos três envolvidos na união paralela de forma diversa ao tradicional, desconsiderando em parte, a tese da sociedade de fato anteriormente aplicada ao caso.

Não resta dúvida de que há uma grande dificuldade do jurista em aplicar corretamente a divisão patrimonial na busca pelo justo. A divisão do patrimônio pressupõe que os beneficiados sejam contemplados igualmente com sua parcela, da forma mais equânime possível.

Por certo que, só há de se dividir por três, aquele patrimônio que foi construído durante o período da união dúplice. Não se fala em divisão por três, sabendo que se trata de período em que a união paralela ainda não havia começado, ou se começado, o terceiro participante ainda não angariava esforços na obtenção do patrimônio. Durante o tempo em que o patrimônio foi constituído só por um casal a divisão será por meação.

Observa-se que este novo entendimento vem possibilitando à companheira o acesso aos bens que ajudou a adquirir, justamente por ter mantido por longo período, uma relação afetiva na qual se construiu um patrimônio, e em razão disso, ter presumivelmente participado em sua obtenção, quer pelo trabalho efetivo, quer apenas motivando o companheiro, dando a ele o respaldo necessário para que se mantivesse entusiasmado.


NOTAS

  1. LUZ, Valdemar P. da. Manual de Direito de Família.1ª. Ed. Barueri: Manole, 2009. p. 124.
  2. LOBO, Paulo. Direito Civil. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 166.
  3. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 172.
  4. DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4ª. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 173.
  5. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 47.103⁄SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, DJU 13.02.1995. Disponível em: <www.stj.jus.br>. Acesso em 15 de maio de 2010.
  6. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e União estável. 3ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 1996 apud GOMES, Cristiane Trani. Conseqüências patrimoniais do concubinato adulterino. Disponível em: <http://www.revista.mcampos.br/artigos/dirpdis/dirpdis1411034.htm>. Acesso em: 27 de abril de 2010.
  7. CZAJKOWSKI, Rainer. União Livre à luz das leis 8.971/94 e 9.278/96. Curitiba: Juruá, 1996, p. 49-50, apud ALBUQUERQUE FILHO, Carlos Cavalcanti de. Famílias simultâneas e concubinato adulterino. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/2839>. Acesso em: 27 de abril de 2010.
  8. DIAS, Maria Berenice. Adultério, bigamia e união estável: realidade e responsabilidade. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/files/journals/2/articles/9522/public/9522-9521-1-PB.pdf>. Acesso em 24 de abril de 2010.
  9. PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e União Estável de acordo com o novo Código Civil. 6ª. Ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 60.
  10. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 70009786419, Oitava Câmara Cível, Relator: Rui Portanova, julgado em 03/03/2005. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em 15 de maio de 2010.
  11. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 70009786419, 8ª Câmara Cïvel, Rel. Des. Rui Portanova, j. 03/03/2005. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em 15 de maio de 2010.
  12. RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº 70011258605, Oitava Câmara Cível, Relator: Rui Portanova, julgado em 25/08/2005. Disponível em: <www.tjrs.jus.br>. Acesso em 15 de maio de 2010.
  13. SANTOS, Marília Andrade dos. Meação em razão da extinção de união estável adulterina: estudo de caso. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/9243>. Acesso em: 18 de abril de 2010.
  14. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº 060.781-4, apud GOMES, Cristiane Trani. Conseqüências patrimoniais do concubinato adulterino. Disponível em:<http://www.revista.mcampos.br/artigos/dirpdis/dirpdis1411034.htm>. Acesso em: 22 de abril de 2010.
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Sobre o autor
Tiago Belo

Servidor Público do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BELO, Tiago. Do patrimônio construído nas uniões concomitantes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2608, 22 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17240. Acesso em: 28 mar. 2024.

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