Jovem, regozija-te na tua mocidade e alegra o teu coração na flor dos teus anos.
Eclesiastes, 11,9
O entusiasmo, o vigor e a alegria daqueles que já saíram da infância, mas que ainda não atingiram a maturidade plena, são proclamados desde os tempos bíblicos. Segundo o dicionário Houaiss, juventude é "período da vida do ser humano compreendido entre a infância e o desenvolvimento pleno de seu organismo" [01].
O conceito de jovem varia de acordo com o ramo do conhecimento e, em geral, adota-se um critério cronológico. Exemplificando: para a Medicina, a juventude é o período compreendido entre 15 e 25 anosde idade. [02]
Do ponto de vista religioso, o Alcorão [03] traz em seu bojo a seguinte definição:
1131. "Por idade adulta pode ser entendida a juventude madura, digamos, entre 18 e os 30 anos de idade". Por essa ocasião, a pessoa já se encontra firmemente estabelecida na vida; sua constituição física está completa, e seus hábitos mentais e morais estão formados. [04]
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – UNESCO, por outro lado, considera a juventude o período dos 15 anos até os 24 anos de idade [05].
Todas essas definições são pouco úteis do ponto de vista jurídico. Isso porque as faixas cronológicas supracitadas situam-se entre a menoridade e a maioridade legal, o que implica em status jurídicos totalmente distintos.
Exemplo disso é a Lei n° 8.069/1990, o chamado Estatuto da Criança e do Adolescente (E.C.A.). Em seu artigo 2°, esse diploma legal define como adolescente todo indivíduo entre 12 anos completos e os 18 anos incompletos.
Alguns indivíduos dessa faixa etária enquadram-se parcialmente nos critérios de juventude supramencionados. Entretanto, à luz do Direito, nenhum dos indivíduos contemplados pelo E.C.A. possui o pleno gozo para os atos da vida civil, embora a Medicina, por exemplo, já considere aqueles com idade superior a 15 anos como seres fisiologicamente plenos.
Para o Direito brasileiro, nos dias correntes, a maioridade civil é idêntica à maioridade penal e ambas iniciam-se no primeiro segundo do dia em que o indivíduo completa os 18 anos de idade, consoante dispõem os seguintes diplomas legais: Código Civil, art. 5º; Código Penal, art. 27 e Constituição Federal, art. 228.
Já o trabalho no segmento juvenil é juridicamente regulado por dispositivos específicos: a CLT, em seu artigo 403, expressamente proíbe o trabalho do menor de 16 anos de idade, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos, segundo dispõe a Lei n° 10.097/2000. Essa lei permite a contratação do jovem, na condição de aprendiz, até os 24 anos de idade, conforme o que também prevê o artigo 433 da CLT.
Tal tutela em face do trabalho juvenil constitui-se, historicamente, em uma inovação, tanto no Direito internacional quanto no ordenamento pátrio.
1.1. Exploração da força de trabalho juvenil: evolução histórica
A tutela do trabalho infantil e juvenil é um evento histórico recente. Entretanto, o trabalho de menores remonta às primeiras civilizações humanas.
Conta-nos Amauri MASCARO NASCIMENTO [06] que o trabalho infantil ocorre desde a Antiguidade, época em que o menor (caso não fosse escravo) trabalhava em ambiente doméstico e seu trabalho tinha fins artesanais.
Já na Idade Média, o trabalho das crianças e adolescentes passou a ter, como finalidade, o aprendizado de um ofício, que era ensinado pelos próprios pais ou nas corporações de ofícios.
Entretanto, a Revolução Industrial retirou desse trabalho juvenil o caráter de formação profissional, eis que era incompatível com a estratégia da mais-valia. [07]
Como nos explica Elson GOTTSCHALK [08], a organização industrial pautava-se pela racionalização e pela divisão do trabalho, o que, necessariamente, implicava na fragmentação do ofício. Assim, os trabalhos, antes executados artesanalmente, exigindo grande domínio da técnica, passaram a ser efetuados por máquinas, que eram muito mais eficazes e rápidas nessa execução.
Graças a isso, mulheres e crianças foram admitidas nas indústrias, sendo desnecessária prévia aprendizagem, eis que o manejo das máquinas exigia apenas repetição de movimentos.
Relata-nos Erotilde MINHARRO [09] que a força de trabalho dos homens era preterida à de mulheres, adolescentes e crianças, porque essas se sujeitavam à percepção de salários inferiores, embora cumprissem jornada laborativa idêntica à daqueles.
MINHARRO nos conta ainda que as primeiras leis de proteção dessa mão de obra surgiram por conta da indignação causada pelo emprego de crianças em trabalhos pesados e em jornadas extenuantes.
Por exemplo, em 1802, na Inglaterra, foi editada a chamada Lei de Peel (em homenagem ao Ministro que a idealizou, Robert Peel), o Moral and Health Act. A Lei de Peel proibia o trabalho de crianças por mais de dez horas diárias e também o trabalho noturno. Com a Lei Cotton Mills Act, tal proibição estendeu-se às cidades e limitou a idade mínima das crianças para trabalhar em nove anos. [10]
Em sua obra "O Germinal", Emile Zola [11] descreve, com as tintas precisas do Naturalismo [12], as duras condições de vida do proletariado, na França do século XIX, e, em especial, a dos trabalhadores das minas de carvão. Nessa obra, constatamos a difícil situação de jovens como Catherine, de quinze anos de idade, de Jeanlin, de doze, e de Etienne, de vinte e um anos, cujo regime laboral ultrapassava dezoito horas diárias, no insalubre e perigoso ambiente do interior das minas.
No trecho abaixo, Zola narra o inicio do dia da jovem Catherine, às quatro horas da madrugada. Exausta pelo trabalho na mina de carvão e pelas poucas horas de sono, cabia ainda a ela acordar antes do restante da família e preparar-lhes a refeição matinal.
Bruscamente, Catherine levantou-se. No seu cansaço, tinha ela, pela força do hábito, contado as quatro badaladas que atravessaram o soalho, mas continuara sem o ânimo necessário para acordar de todo. (...) Entretanto, Catherine fez um esforço desesperado. Espreguiçava-se, crispava as mãos nos cabelos ruivos que se emaranhavam na testa e na nuca. Franzina para os seus quinze anos, não mostrava dos membros senão uns pés azulados, como tatuados com carvão, que saíam da bainha da camisola estreita, e braços delicados, alvos como leite, contrastando com a cor pálida do rosto, já estragado pelas contínuas lavagens com sabão preto. Um último bocejo abriu-lhe a boca um pouco grande, com dentes magníficos incrustados na palidez clorótica das gengivas, enquanto seus olhos cinzentos choravam de tanto combater o sono.
Trata-se de uma obra de ficção, mas o eminente escritor conseguiu transmitir até nós aquilo que, na atualidade, é repudiado pela maioria dos ordenamentos jurídicos: o vilipêndio da dignidade humana. Mais do que isso, Zola retratou a ideologia da exploração do trabalho do menor.
Num contexto em que a pobreza e a fome eram a regra, esperava-se que os filhos cedo se tornassem o arrimo dos pais, num atávico mecanismo de sustento, o que pode ser percebido no trecho abaixo da mesma obra:
Jeanlin recebeu um forte corretivo, uma surra aplicada do lado de fora, na calçada, diante das apavoradas crianças do conjunto habitacional. Onde é que se vira coisa igual? Filhos que pusera no mundo, que desde o nascimento davam gastos, que deviam agora estar ajudando a manutenção da casa! Nesse grito havia a lembrança da sua atribulada juventude, da miséria hereditária que obrigava cada filho da família a ser um ganha-pão para o futuro. [13]
Essa ideologia ainda persiste mesmo nos nossos dias, especialmente nos meios rurais, em que os casais têm prole numerosa, para que os muitos filhos tornem-se os braços imprescindíveis nas lavouras.
Tal forma de pensar remonta ao início da formação gregária do homem, em que cada qual possuía sua cota de tarefas no clã familiar, eis que o auxilio mutuo era a regra e a utilização de toda mão de obra existente, indispensável.
O Código de Hamurabi [14] já previa medidas de proteção às crianças e aos adolescentes que, àquele tempo, trabalhavam como aprendizes. Segundo as disposições do códice babilônico, se o pai adotante ensinasse um ofício à criança adotada, esta não mais poderia retornar para seus pais biológicos. Vide transcrição abaixo:
XI - ADOÇÃO, OFENSAS AOS PAIS, SUBSTITUIÇÃO DE CRIANÇA.
(...)
188º - Se o membro de uma corporação operária, (operário) toma para criar um menino e lhe ensina o seu ofício, este não pode mais ser reclamado.
189º - Se ele não lhe ensinou o seu ofício, o adotado pode voltar à sua casa paterna. [15]
Assim, percebemos que, desde a antiga Babilônia, existe a preocupação em proteger o trabalho das crianças e dos jovens e em lhes ensinar uma profissão com que possam, no futuro, sustentarem-se, sendo úteis à sociedade.
Relata-nos o insigne Amauri MASCARO NASCIMENTO que, na Idade Média, nas chamadas Corporações de Ofício, crianças e adolescentes, assim como os adultos, eram submetidos a trabalho sem remuneração, durante o processo de aprendizagem de ofício, e também não tinham direito a intervalo intrajornada para as refeições. [16]
É bem verdade que esse sistema representou uma evolução aos modelos anteriores: a escravidão e, depois, a servidão campesina. Entretanto, os jovens aprendizes submetiam-se às determinações dos mestres até mesmo quanto ao direito à mudança de domicilio [17].
Para SEGADAS VIANNA, o sistema de Corporações "não passava de uma fórmula mais branda de escravização." [18] Sobre isso, ensina-nos mestre MASCARO que:
Os aprendizes eram menores que recebiam dos mestres os ensinamentos metódicos de um ofício ou profissão. (...) As corporações mantinham com os trabalhadores uma relação de tipo bastante autoritário e que se destinava mais à realização de seus interesses do que à proteção dos trabalhadores. [19]
Mas o assalariamento promovido no século XVIII pela Revolução Industrial, já às portas da Idade Contemporânea, não melhorou esse cenário de exploração.
Postula Michel FOUCAULT [20] que, a partir do século XVIII, iniciaram-se as relações entre o Estado moderno e a população, na sociedade ocidental. A partir dessa época, incumbiu à população dos países europeus o povoamento das colônias, a defesa do Estado (integrando os exércitos nacionais), e a composição da mão de obra do nascente setor industrial.
Na verdade, o êxito da Revolução Industrial deu-se à custa do trabalho de mulheres e crianças, a quem eram pagos os salários mais baixos. [21] Sobre esse difícil período, descreve-nos MARX que:
Milhares de braços tornaram-se de súbito necessários. (...) Procuravam-se principalmente pelos pequenos e ágeis. (...) Muitos, milhares desses pequenos seres infelizes, de sete a treze ou quatorze anos foram despachados para o norte. O costume era o mestre (o ladrão de crianças) vesti-los, alimentá-los e alojá-los na casa de aprendizes junto à fábrica. Foram designados supervisores para lhes vigiar o trabalho. Era interesse destes feitores de escravos fazerem as crianças trabalhar o máximo possível, pois sua remuneração era proporcional à quantidade de trabalho que deles podiam extrair. (...) Os lucros dos fabricantes eram enormes, mais isso apenas aguçava-lhes a voracidade lupina. Começaram então a prática do trabalho noturno, revezando, sem solução de continuidade, a turma do dia pelo da noite o grupo diurno ia se estender nas camas ainda quentes que o grupo noturno ainda acabara de deixar, e vice e versa. [22]
Provém dessa época a criação de legislação protetiva para o trabalho da mulher e do menor, como decorrência de intensa luta dos trabalhadores. [23] Conforme explica-nos Amauri MASCARO NASCIMENTO:
Os trabalhadores reivindicaram (...) um direito que os protegesse, (...) o direito a uma legislação em condições de coibir os abusos do empregador e preservar a dignidade do homem no trabalho, ao contrário do que ocorria com o proletariado exposto a jornadas diárias excessivas, salários infames, exploração dos menores e mulheres e desproteção total diante de acidentes no trabalho e riscos sociais como a doença, o desemprego etc. [24]
No Brasil, foi apenas no ano de 1927 que ocorreu a regulamentação do trabalho do menor, por meio do então chamado Código de Menores (Decreto nº 17.943-A de 12 de outubro de 1927), que proibia o labor antes dos 12 anos de idade. [25]
Segundo dispunha o artigo 1º desse Código, todo indivíduo com menos de 18 anos de idade era considerado menor.
Esse Código já descrevia a figura jurídica do aprendiz, cuja faixa etária deveria situar-se entre 12 e 14 anos. O Código de Menores vedava o trabalho desses aprendizes em minas, pedreiras ou oficinas, eis que tal labor poderia coloca-los em risco. Também proibia o trabalho no período noturno (compreendido entre as 19 e as 5 h), bem como fixava a jornada laboral diária em, no máximo, 6 h. [26]
Em 1932, Getulio Vargas outorgou o Decreto nº 22.042 [27] que fixava em 14 anos a idade mínima para o trabalho nas fábricas.
Esse Decreto foi inovador por conter dispositivos inéditos de proteção ao trabalho do jovem e do adolescente. Nele, havia ainda a obrigatoriedade do empregador apresentar uma relação de empregados adolescentes. Também havia a exigência, para a admissão de menores de 18 anos, de apresentação da certidão de identidade, da autorização dos pais ou responsáveis, de prova de saber ler, escrever e contar, além de atestado médico. [28]
Tais documentos permaneciam em poder dos empregadores para que fossem apresentados ao inspetor do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, se fossem requisitados. [29]
Caso não houvesse como o menor comprovar o seu grau de escolaridade, ele deveria se submeter a um exame, no qual seriam avaliados os seus conhecimentos relativos à escrita, à leitura e aos cálculos elementares de matemática.
Em relação ao Código de Menores de 1927, observam-se algumas inovações nesse Decreto. Primeiramente, quanto à jornada de trabalho dos menores de ambos os sexos, o Decreto determinava que devesse ser igual à dos adultos.
Além disso, ele estabeleceu outro horário para o período noturno, que passou a ser das 22 às 5 horas (art. 8º). Também permitiu o trabalho, no período noturno, de rapazes maiores de 16 anos nos casos exigidos por interesses públicos ou por empresas. [30]
Em consonância com o Decreto nº 22.042 e com o Código de Menores, a Consolidação das Leis do Trabalho, outorgada em 1943, ratificou a idade mínima em 12 anos a para inicio da vida laboral. [31]
Essa idade foi elevada para 14 anos pela Constituição Federal de 1988, em seu art. 7°, XXXIII. Nela, o trabalho noturno, perigoso ou insalubre foi totalmente proibido para os menores de 18 anos.
Todas essas inovações, tanto do Código de Menores quanto do Decreto nº 22.042 e mesmo da CLT de 1943 indicam a prevalência da ideia de que, para o Estado, o menor constitui-se, ao mesmo tempo, em um valor econômico e um valor social
porque ele representa a base principal do povoamento do país, o futuro trabalhador, na lavoura, na indústria, no comércio, em todas as classes produtoras; e sua criação e educação, tornando se apto para o trabalho, dispensará em grande parte o imigrante, ao qual é preferível, por ter nascido e vivido em nosso meio físico e social, não precisando da adaptação necessária ao estrangeiro e ordinariamente falha neste. É um valor social para o Estado, porque na criança é que repousa a grandeza dos povos, a prosperidade das nações e o progresso da humanidade. A criação e a educação do menor interessam no mais alto grau a ordem pública, da qual o estado é o guarda. Por isso, ele deve intervir com sua proteção. [32]
As atuais conquistas acerca do trabalho do menor são produto de discussões travadas nas primeiras décadas do século XX. Por exemplo, na Convenção nº 5 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) [33], ocorrida em 1919, ficou decidida a abolição do labor de menores de 14 anos de idade na indústria.
Atualmente, em nosso ordenamento jurídico, o jovem está autorizado a ingressar no mercado de trabalho a partir dos 16 anos. Tal conquista consolidou-se por meio da Convenção nº 138 da OIT. [34]
Essa Convenção busca a elevação da idade mínima de admissão no emprego, tendo em vista o respeito ao desenvolvimento físico e mental do adolescente. Embora não determine uma idade para tal admissão, a Convenção nº 138 ressalva que, nas nações cuja economia e condições de ensino não estejam suficientemente desenvolvidas, estabeleça-se a idade de 14 anos como mínima, que é o que ocorre, por exemplo, no Brasil.
Nossa legislação pátria permite (excepcionalmente, é verdade) a admissão de jovens de 14 anos, desde que na condição de aprendizes.
1.2.A legislação e o trabalho juvenil
O escopo social de nosso ordenamento pátrio pode ser evidenciado já na Lei de Introdução do Código Civil que, em seu artigo 5º, determina que "na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".
Entretanto, para efetivar essa finalidade social, incumbe ao Estado o ajuste das políticas públicas para brecar distorções, a fim de viabilizar o que a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, em seu artigo 25, expressamente consignou: "todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e à sua família saúde e bem-estar."
Para que todos, sem quaisquer privilégios, tenham acesso a esse padrão previsto na Declaração de 1948, existe na Constituição o chamado Princípio da Isonomia ("igualdade de todos perante a lei"), que compõe a igualdade formal prevista no art. 5º da Constituição Federal, a qual, por sua vez, se constitui em um dos pilares do regime democrático. Nesse sentido, aduz José CANOTILHO que:
Ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. A lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito igual para todos os cidadãos. [35]
Para Alexandre de MORAES, a igualdade formal indubitavelmente constituiu-se em importante avanço. Mas a resolução dos problemas sociais exige mecanismos de anulação, redução ou compensação das desigualdades sociais. [36]
1.2.1 As Afirmative Actions
Uma das principais formas de obtenção dessa isonomia por meio da correção das distorções sociais são as chamadas ações afirmativas (afirmative actions) [37].
Também chamadas de políticas de ações afirmativas, elas consistem em medidas políticas destinadas a grupos sociais específicos. Tais medidas visam à concretização de direitos fundamentais sociais. [38]
Os direitos sociais (também conhecidos por direitos de segunda geração ou de segunda dimensão) são aqueles concretizados por meio de ação efetiva do Estado. Podemos citar como principais a assistência social, saúde, educação, trabalho etc. Tais direitos são ditos como de cunho positivo porque pressupõem uma prestação estatal para a sua efetivação.
Entretanto, essa concretização demanda meios econômicos que são, quase sempre, escassos. Em vista dessa demanda por recursos, alguns doutrinadores, como José CANOTILHO [39], postulam que a efetivação dos direitos sociais deve ocorrer dentro de uma "reserva do possível". [40]
Ou seja, a concretização dos direitos sociais pode ficar adstrita aos recursos disponíveis e aos limites de verbas orçamentárias do Estado.
Mas, embora o Estado não seja obrigado à prestação absoluta dos direitos sociais, precisa prover um quantum mínimo, sob pena de lesão desses direitos. É o que se conhece por "mínimo existencial" e corresponde ao conjunto de prestações estatais indispensáveis à existência humana digna. [41]
Nas palavras do Desembargador Rui Stoco, da 4a Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo:
(...) se por um lado a cláusula da "reserva do possível" não pode ser invocada pelo Estado para o só fim de exonerar-se de obrigações constitucionais, aniquilação de direitos fundamentais, por outro, tem-se que os condicionamentos impostos por ela ao processo de concretização dos direitos de segunda geração, traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, a razoabilidade da pretensão deduzida em face do Poder Público e, de outro a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas". [42]
Em suma, temos que a reserva do possível é uma contingência de ordem econômica que não se pode ignorar e que se constitui em um limite objetivo às prestações positivas do Estado.
Entretanto, é preciso lembrar que, ao Estado incumbe a arrecadação de tributos. Por causa disso, a Constituição impõe a contrapartida de disponibilizar as condições materiais imprescindíveis à dignidade da pessoa humana, para assegurar a prestação do mínimo existencial, da qual não pode esquivar-se o Estado sob a alegação da reserva do possível. Tal é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que consubstanciou esse entendimento no Informativo nº 345, do qual extraímos o excerto a seguir.
Não se ignora que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais - além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização - depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, então, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política. Não se mostrará lícito, contudo, ao Poder Público, em tal hipótese, criar obstáculo artificial que revele - a partir de indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa - o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência (ADPF 45/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Informativo/STF nº 345/2004). [43]
Especialmente no que tange à proteção dos jovens e crianças inadmite-se a omissão do Estado por conta da reserva do possível, eis que a Constituição determina que, para eles, vige o preceito da prioridade absoluta.
Em face de ameaça de lesão àqueles a quem a Constituição conferiu a primazia da ‘absoluta prioridade’, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes preceituou a incontinenti interferência do Poder Judiciário, se provocado, a fim de garantir que o Poder Público cumpra o direito protetivo dos menores, que é constitucionalmente posto, como é possível verificar no trecho a seguir:
A Constituição da República, em seu artigo 227, consagra a prioridade absoluta para crianças e adolescentes para efetivação das políticas públicas. O que se extrai dos autos é que correta a decisão proferida, pois se encontram presentes os requisitos necessários ao deferimento do pedido liminar. É notória a insistente omissão do poder público em desobedecer aos preceitos constitucionais concernentes à educação, atitude que provoca sérios prejuízos às crianças e aos adolescentes e, consequentemente, à sociedade. Diante deste lamentável quadro, o Poder Judiciário pode e deve intervir, assim que provocado, para garantir aos menores o direito à educação, direito fundamental amparado constitucionalmente. [44] (grifo nosso)
Vale lembrar que nem mesmo para os idosos a Magna Carta utiliza a expressão "absoluta prioridade". Tal expressão só é usada, em nossa Constituição Federal, para designar a proteção que deve ser conferida ao menor.
Apenas na esfera da legislação infraconstitucional (Estatuto do Idoso) é que os idosos foram beneficiados com a previsão de prioridade absoluta e de proteção integral. Entretanto, esta proteção normativa é menos abrangente por não gozar de expressa previsão constitucional. [45]
1.2.2.O Princípio da Prioridade Absoluta e a Teoria da Proteção Integral
A Prioridade Absoluta significa a criação das condições necessárias para que a proteção integral das crianças e adolescentes se concretize. O TST, em julgado ocorrido em abril desse ano, agasalhou esse preceito, eis que assim posicionou-se:
Apesar de as faltas para tratar da saúde de filho não estarem previstas expressamente nos artigos 131 e 473 da CLT, as da reclamante são justificadas, pois estava tratando da de sua filha que se encontrava em estado de saúde delicado, ou seja, a autora estava cumprindo com suas obrigações relativas ao pátrio poder (artigos 1.634 e 1.635 do Código Civil) e o dever de zelar pela criança com prioridade absoluta, de acordo com o princípio da proteção integral adotado nos artigos 227 da Constituição Federal e 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90). Há precedente neste sentido.
(RR - 1516086-63.2005.5.01.0900, Relator Ministro: Roberto Pessoa.)
Data de Julgamento: 28/04/2010, 2ª Turma, Data de Publicação: 28/05/2010. [46]
Além da primazia de condições e de atendimento, a Prioridade Absoluta implica, sobretudo, na implementação, pelo Estado, das políticas públicas que possibilitem a concretização da Proteção Integral, conforme previsto na Constituição, em seu artigo 227.
Há doutrinadores que postulam, inclusive, constituir-se o Princípio da Prioridade Absoluta aos direitos das crianças e adolescentes em um limite à discricionariedade do administrador público.
José Afonso da SILVA [47], por exemplo, afirma que o Princípio da Absoluta Prioridade situa-se dentre os princípios gerais informadores de toda a ordem jurídica nacional. Portanto, traduz-se ele em norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
No mesmo sentido posicionou-se o Supremo Tribunal Federal, por meio do Informativo nº 581, do qual transcrevemos, abaixo, um trecho:
Tratando-se de típico direito de prestação positiva, que se subsume ao conceito de liberdade real ou concreta, a proteção à criança e ao adolescente – que compreende todas as prerrogativas, individuais ou coletivas, referidas na Constituição da República (notadamente em seu art. 227) – tem por fundamento regra constitucional cuja densidade normativa não permite que, em torno da efetiva realização de tal comando, o Poder Público, especialmente o Município, disponha de um amplo espaço de discricionariedade. [48]
Até mesmo o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA claramente traça limites à discricionariedade da Administração Pública ao especificar, no parágrafo único de seu artigo 4º que, em obediência ao preceito da Prioridade Absoluta, aos adolescentes e crianças deve ser conferida:
a)Primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias;
b)Precedência do atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública;
c)Preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas e
d)Destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à juventude [49]
Além de prever a o Princípio da Prioridade Absoluta em seu bojo, nossa Lei Maior também incorporou, em seu artigo 227, (caput e § 3º) [50] e também no art. 7º, inc. XXX e inc. XXXIII [51] a teoria da Proteção Integral.
O artigo 227, inclusive, é considerado como uma síntese dessa teoria, tendo sido recentemente alterado pela Emenda Constitucional nº 65, para acrescentar a expressão ‘ao jovem’ ao seu conteúdo.
A teoria da Proteção Integral consiste no entendimento de que as normas que tratam de crianças e adolescentes devem concebê-los como cidadãos plenos, mas que carecem de uma proteção prioritária por estarem ainda em processo de desenvolvimento físico, psicológico e moral.
Segundo Antonio Carlos Gomes da COSTA, tal teoria:
afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos [52]
Esclarece-nos o insigne Nilson de OLIVEIRA NASCIMENTO [53] que a doutrina da Proteção Integral substituiu a Doutrina da Situação Irregular [54], que foi a doutrina vigente no Código de Menores.
Ao contrário dessa doutrina, a teoria da Proteção Integral baseia-se na promoção do pleno desenvolvimento mental e físico da criança e do adolescente, conferindo-lhe direitos civis, sociais, culturais, políticos e econômicos.
Essa teoria foi universalizada pela Convenção das Nações Unidas de Nova York e incorporou-se ao ordenamento pátrio por meio de emenda popular no ano de 1987. [55]
Esse escopo protetivo da teoria da proteção integral foi também um dos pontos basilares que nortearam o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990).
O artigo nº 53 [56] desse Estatuto prevê, por exemplo, a participação de crianças e de adolescentes na política estudantil, com vistas à crítica de currículo ou da organização escolar.
1.2.3.O direito à profissionalização
A teoria da Proteção Integral elevou o direito à profissionalização ao nível de direito fundamental, de que são titulares as crianças, os adolescentes e os jovens, consoante o que expressamente dispõe o caput do art. 227 da Constituição Federal:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização (...) [57]
O cerne dessa teoria consiste na ideia de que a proteção peculiar dispensada aos menores e aos jovens deve provir de normas especiais que lhes assegurem o pleno desenvolvimento físico, moral e intelectual. No entendimento do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli:
o direito à educação – que representa prerrogativa constitucional deferida a todos (CF, art. 205), notadamente às crianças (CF, arts. 208, IV, e 227, 'caput') – qualifica-se como um dos direitos sociais mais expressivos, subsumindo-se à noção dos direitos de segunda geração (RTJ 164/158-161), cujo adimplemento impõe, ao Poder Público, a satisfação de um dever de prestação positiva, consistente num 'facere', pois o Estado dele só se desincumbirá criando condições objetivas que propiciem, aos titulares desse mesmo direito, o acesso pleno ao sistema educacional (...) [58]
Importante lembrar que a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos [59], de 1948, já trazia, dentre seus princípios, a universalização do direito à educação e a generalização da instrução técnica e profissional:
Artigo XXVI - Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito. [60]
Orientação semelhante existe também no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais [61], que reconhece a importância da formação profissionalizante.
A Convenção nº 142 da Organização Internacional do Trabalho (O.I.T) [62], que trata do papel da orientação profissional e da formação profissional, e que foi ratificada pelo Brasil, dispõe, logo em seu artigo 1º que:
Art. 1º: "Todo membro deverá adotar e desenvolver políticas e programas coordenados e abrangentes de orientação profissional." [63]
De acordo com o Prof. SUSSEKIND, a Convenção nº 142 da OIT "tem por finalidade melhorar a atitude do indivíduo de compreender o seu meio de trabalho e o meio social e de influir, individual e coletivamente, sobre eles" [64]
A Recomendação da OIT nº 150, que complementa a Convenção nº 142, sugere que o processo de ensino associe à formação profissional sólidos conhecimentos de educação geral, como forma de garantir a construção de um conhecimento efetivo.
A profissionalização pode ser definida como um processo metódico em que se alternam experiências teóricas e práticas [65] com uma sucessão de tarefas gradualmente mais complexas e tendentes à aquisição de um trabalho qualificado ou de uma profissão.
A Recomendação 117 [66] da Organização Internacional do Trabalho descreve-nos as características gerais da profissionalização, definindo-a como sendo uma formação de caráter sistemático e de longa duração, com vista ao exercício de uma profissão reconhecida, devendo-se, para tanto, levar em conta os seguintes fatores:
a) o nível das capacidades profissionais e dos conhecimentos técnicos teóricos requeridos para o exercício da profissão em questão;
b) a duração do período de formação necessário para adquirir as capacitações profissionais e os conhecimentos requeridos;
c) o valor da aprendizagem como modo de formação para a aquisição das capacitações e conhecimentos requeridos; e
d) a situação atual e futura quanto às possibilidades de emprego na profissão em questão.
Importante ressaltar que o § 1º do art. 430 da CLT contém a exigência de um processo de ensino, além de prever a organização metódica das tarefas complexas desenvolvidas no ambiente de trabalho, decompostas em atividades teóricas e práticas (§ 4º do art. 428 da CLT).
Leciona o Professor ORÍS DE OLIVEIRA [67] que é possível considerar como ocupações que demandam formação técnico-profissional aquelas ocupações que se concretizam por meio da execução de tarefas complexas no ambiente de trabalho, e que exigem, para a sua qualificação, a aquisição de conhecimentos teóricos e práticos a serem ministrados por meio de processo educacional organizado em currículo próprio.
A respeito da Recomendação nº 117 da OIT, Arion Sayão ROMITA afirma que:
a formação não é um fim em si mesma, senão meio de desenvolver as aptidões profissionais de uma pessoa, levando em consideração as possibilidades de emprego e visando ainda a permitir-lhe fazer uso de suas potencialidades como melhor convenha a seus interesses e aos da comunidade. [68]
Além disso, segundo ele, a profissionalização é um fenômeno que está relacionado com a legislação sobre o trabalho da criança e do adolescente, de sorte que é necessário que exista compatibilidade entre a legislação brasileira e as normas internacionais.
Oportuno resaltar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação [69] (Lei 9.394/96) efetiva, em seu artigo 39, o direito constitucional à profissionalização, in verbis:
Artigo 39 – A educação profissional, integrada às diferentes formas de educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões para a vida produtiva.
Parágrafo único. O aluno matriculado ou egresso do ensino fundamental, médio e superior, bem como o trabalhador em geral, jovem ou adulto, contará com a possibilidade de acesso à educação profissional.
Ressalte-se que, além de prever expressamente o direito à profissionalização, a Lei de Diretrizes e Bases também admite a atividade profissionalizante no âmbito da escola e da empresa. [70]
Entretanto, em nosso ordenamento, incumbe ao ECA a regulamentação específica do direito à profissionalização e da proteção ao trabalho.