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Aplicação terapêutica das células-tronco embrionárias: responsabilidade civil

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21/02/2011 às 17:56
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2 – RESPONSABILIDADE CIVIL E CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS

2.1 RESPONSABILIDADE

No meio vulgar, responsabilidade abrange a idéia de uma situação de encargo, de cuidado e por vezes de representação, em que se encontra alguém frente a determinados fatos ligados a coisas ou compreendendo atos próprios ou de terceiros.

Em razão dessa vinculação, cabe ao responsável tanto os bônus quanto os ônus decorrentes de sua conduta em relação ao objeto de sua custódia.

Quando um grupo de guerreiros perde uma batalha, normalmente se atribui a derrota ao comandante, mesmo porque aqueles estão subordinados a este. Por outro lado, é justo que em caso de vitória as honrarias sejam atribuídas ao chefe do grupo. Daí, internamente, este distribui as homenagens a seus subordinados.

Nesse quadro, o líder é o responsável.

No meio jurídico, é difícil encontrarmos na doutrina um conceito claro, quer de responsabilidade, quer de responsabilidade civil.

Essa dificuldade também é apontada por CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (1998:7/10), mas este autor apresenta seu conceito de responsabilidade civil nos seguintes termos: "A responsabilidade civil consiste na efetivação da reparabilidade abstrata do dano em relação a um sujeito passivo da relação jurídica que se forma" (1998:11).

SÍLVIO DE SALVO VENOSA anota que, em sentido amplo, responsabilidade "encerra a noção em virtude da qual se atribui a um sujeito o dever de assumir as conseqüências de um evento ou de uma ação" (2004:12).

Também RUI STOCO (2004:118) atrela a idéia de responsabilidade à "necessidade que existe de responsabilizar alguém por seus atos danosos."

SÉRGIO CAVALIERI FILHO (2003:26) arremata que responsabilidade "designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico".

HANS KELSEN (1994:138), por sua vez, sustenta que responsabilidade é "relação do indivíduo contra o qual o ato coercitivo é dirigido com o delito por ele ou por outrem cometido." Segundo este autor (2005:93), "dizer que uma pessoa é juridicamente responsável por certa conduta ou que ela arca com a responsabilidade jurídica por essa conduta significa que ela está sujeita a sanção em caso de conduta contrária." Nessa linha "responsabilidade –como já foi assinalado- não é uma obrigação mas uma condição pela qual um indivíduo se torna sujeito a uma sanção." (2000:288)

Com esse conteúdo semântico de responsabilidade, diz-se que um sujeito foi responsabilizado em razão de um ilícito.

Mas se assim é, responsável ele já era antes de tal descumprimento. Dito de outra forma: antes de uma norma ser descumprida, já existe responsabilidade.

Por que, então, não é enfocada a responsabilidade antes do descumprimento de um dever?

Porque, se o importante para o direito é que a sociedade se comporte conforme seus ditames, então só lhe terá relevo os comportamentos patológicos, isto é, que lhe são contrários. Daí, a necessidade de reger tais situações, normalmente com as sanções.

Aliás, quando o legislador entende que determinado fato não tem relevância na sociedade, simplesmente não o regula (MELLO, 2003a:14).

Ocorre algo análogo com nosso corpo. Quando temos uma dor de cabeça, dificilmente deixamos de pensar nela, ou melhor, fazemos o possível para curá-la. Mas quando não temos dor de cabeça, não ficamos o tempo inteiro pensando que nossa cabeça não está doendo.

Em suma, o desequilíbrio é que causa movimento em busca do equilíbrio.

Por isso, verifica-se a responsabilidade não tanto no seu aspecto potencial e estático, mas primordialmente no seu lado ativo e dinâmico, ou seja, somente no momento em que há o descumprimento de dever, ou melhor, violação da norma.

Diante disso, verifica-se no caso concreto quais as conseqüências do descumprimento do dever e a quem elas são imputadas.

Essas conseqüências se traduzem em dever sucessivo, como identifica SÉRGIO CAVALIERI FILHO (2003:26)

Antes de concluirmos acerca do conceito mais preciso de responsabilidade, vejamos seus fundamentos.

A vida em sociedade traz aos seus componentes benefícios que não seriam conseguidos fora dela. Mas também traz malefícios.

Entre os malefícios, podemos citar a constante possibilidade de surgirem conflitos. Muitos conflitos surgem quando um indivíduo é lesado em seus interesses e o ofensor não quer ou não pode tornar a situação ao estado anterior.

Para que esses conflitos não acabem em batalhas, é necessária a intervenção do Estado.

Um dos instrumentos utilizados para tentar solucionar tais conflitos, num primeiro momento, é a proteção de determinados interesses, impondo uma sanção ao ofensor destes ou ao responsável pela ofensa.

Sanção, contudo, não necessariamente é punitiva ou conseqüência de comportamento contrário às normas impostas, como assinada HANS KELSEN (1994:26):

A ordem social pode prescrever uma determinada conduta humana sem ligar à observância ou não observância deste imperativo quaisquer conseqüências. Também pode, porém, estatuir uma determinata conduta e, simultaneamente, ligar a esta conduta a concessão de uma vantagem, de um prêmio, ou ligar à conduta oposta uma desvantagem, uma pena (no sentido mais amplo da palavra). O princípio que conduz a reagir a uma determinada conduta com um prêmio ou uma pena é o princípio retributivo (Vergeltung). O prêmio e o castigo podem compreender-se no conceito de sanção. No entanto, usualmente, designa-se por sanção somente a pena, isto é, um mal –a privação de certos bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, valores econômicos- a aplicar como conseqüência de uma determinada conduta, mas já não o prêmio ou a recompensa.

Diante de tantos interesses que são protegidos juridicamente, isto é, diante de tantos direitos na sociedade, há, em contrapartida, para cada um, o respectivo dever de não lesar.

Não é necessário, dessa forma, sustentar a existência de um dever genérico de não lesar baseado nos princípios gerais do direito, notadamente no princípio do leminem laedere, como fazem alguns autores para justificar a responsabilidade extracontratual (GONÇALVES, 2003:28; STOCO, 2004:118), pois tal dever pode ser obtido a partir de cada direito atribuído expressamente pela legislação. ANTÔNIO JEOVÁ DA SILVA DOS SANTOS também tem essa percepção (2001:32)

Partindo desses fundamentos, podemos buscar o conceito de responsabilidade por meio da idéia de responsável. Responsável é o que responde, quem sofre a sanção.

Logo, responsabilidade é situação jurídica de suscetibilidade de sofrer sanção, no plano abstrato. Em concreto, ou seja, quando ocorre o ilícito, responsabilidade é a exigibilidade e sujeição à sanção. A propósito, NORBERTO BOBBIO (2003:154) coloca a sanção como resposta à violação da norma.

O caráter da exigibilidade da responsabilidade serve para diferenciá-la do débito, de acordo com as palavras de SILVIO DE SALVO VENOSA (2004a:428), quando esclarece o contrato de fiança:

Na fiança, existe a responsabilidade, mas não existe o débito, dentro da díade Schuld und Haftung. Lembre-se do que dissemos a respeito da dívida natural, exemplo contrário, a qual possui débito, mas não responsabilidade, pois não é juridicamente exigível...

Também HANS KELSEN (1994:133/4) faz referência à distinção entre dever e responsabilidade, mas focando o sujeito de quem se exige:

Conceito essencialmente ligado com o conceito de dever jurídico, mas que dele deve ser dintinguido, é o conceito de responsabilidade. Um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma oposta conduta sua é tornada pressuposta de um ato coercitivo (como sanção). Mas este ato coercitivo, isto é, a sanção como conseqüência do ilícito, não tem de ser necessariamente dirigida – como já se fez notar – contra o indivíduo obrigado, quer dizer, contra o indivíduo cuja conduta é o pressuposto do ato coercitivo, contra o delinqüente, mas pode também ser dirigido contra um outro indivíduo que se encontre com aquele numa relação determinada pela ordem jurídica.

O atrelamento do conceito de responsabilidade com a aplicação terapêutica das células-tronco embrionárias nos leva a afirmar que aquela poderá ser configurada tanto pela utilização ilícita das células-tronco embrionárias, quanto pela utilização lícita mas que cause um dano (ilícito).

Definido o que seja responsabilidade, o que seria então responsabilidade civil?

Quando se diz "responsabilidade civil", o termo "civil" é utilizado para diferenciar esse "tipo" de responsabilidade dos outros "tipos" existentes, que podem ser sintentizados em criminal (ou penal) e administrativa.

Conquanto não separe de forma absoluta em três esferas estanques a responsabilidade, é expressamente prevista na legislação, conforme, por exemplo, o §3.º do art. 225 da Constituição Federal.

2.2 RESPONSABILIDADE: CIVIL, PENAL E ADMINISTRATIVA

Essa classificação é feita de acordo com o objetivo primordial da sanção.

A responsabilidade penal é conseqüência de infração penal, visando a inibir ocorrência de crimes, ou seja, determinados comportamentos não desejados por meio da imposição de penas.

Pune-se para dar exemplo na sociedade, de modo a educar e intimidar o infrator e os outros membros da sociedade para que não cometam outra infração.

Talvez por ter em mente o elemento subjetivo, isto é, o ânimo do indivíduo, na medida em que espera que ele entenda o que é certo e o que é errado e possa dessa forma agir de acordo com os ditames sociais, no âmbito criminal exista ojeriza à responsabilização objetiva, isto é, sem que se leve em conta a intenção do agente como elemento do crime.

A responsabilidade civil, segundo doutrina majoritária, visaria a ressarcir o membro da sociedade que foi lesado (VENOSA, 2003:590; CAVALIERI FILHO, 20003:36; STOCO, 2004:121/2).

É também o posicionamento de HANS KELSEN, para quem "mais fundamental é a diferença de propósito: ao passo que o Direito criminal tem como fim a retribuição ou, segundo a visão moderna, a coibição, i.e., a prevenção, o Direito civil tem como fim a reparação" (2005:72).

Para nós, a sanção abrange não só a penalidade imposta, mas, dependendo do caso, o cumprimento coercitivo do próprio dever que estava inadimplido. Imaginando, por exemplo, a obrigação de entregar um objeto em determinada data sob pena de multa. Caso a norma seja violada, ou seja, caso o objeto não seja entregue na data estipulada, a sanção abrangerá, além da multa, também a busca forçada do objeto e sua entrega ao titular do direito, caso o devedor se negue a fazê-lo espontaneamente. E se o objeto não puder ser entregue, será devido o equivalente, conforme art. 234 do Código Civil.

HANS KELSEN, ao que tudo indica, parece adotar essa posição, quando se refere à execução civil (2005:71).

Porém, não se pode negar que o dever de reparar não deixa de ter caráter punitivo da mesma forma que na responsabilidade criminal. Dito de outra forma, não se nega que também se trata de uma sanção punitiva, de modo a inibir violações à norma.

Se se considera a reparação de um dano como elemento distintivo da responsabilidade civil, vemos, por exemplo, no art. 940 do Código Civil uma hipótese de díficil visualização daquele:

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

Não estamos dizendo que não haja dano no plano concreto, mas sim que ele não é elemento do dispositivo legal, isto é, não é requisito para a sanção de pagar em dobro, ou, utilizando-se de termos da ciência criminal, não é elemento típico.

Se se alega que o dever de entregar quantia em dinheiro seria peculiar da responsabilidade civil, veremos que o Código Penal também contempla penas desse tipo:

Art. 45. Na aplicação da substituição prevista no artigo anterior, proceder-se-á na forma deste e dos arts. 46, 47 e 48.

§ 1o A prestação pecuniária consiste no pagamento em dinheiro à vítima, a seus dependentes ou a entidade pública ou privada com destinação social, de importância fixada pelo juiz, não inferior a 1 (um) salário mínimo nem superior a 360 (trezentos e sessenta) salários mínimos. O valor pago será deduzido do montante de eventual condenação em ação de reparação civil, se coincidentes os beneficiários.

[...]

Art. 49 - A pena de multa consiste no pagamento ao fundo penitenciário da quantia fixada na sentença e calculada em dias-multa.

Obviamente que conseguimos encontrar certas peculiaridades, seja na responsabilidade "civil", seja na "criminal": enquanto na civil é o patrimônio que normalmente é afetado pela responsabilidade (art.942 Código Civil), na penal pode-se afetar a própria liberdade do infrator. Daí que, naquela, se o infrator não tiver condições econômicas de ressarcir, o processo provavelmente será extinto, sem sucesso na satisfação do crédito. Por outro lado, na responsabilidade criminal, até mesmo os indivíduos sem patrimônio podem sofrer a eficácia da sanção. Deve-se mencionar, todavia, que, se a privação de liberdade for convertida em medida de outra natureza, também a responsabilidade criminal poderá estar fadada ao insucesso em relação ao seu papel.

Com base nesse último caráter distintivo, consistente na possibilidade de se atingir a liberdade do indivíduo, poderíamos dizer que a responsabilidade penal seria aquela decorrente de um crime ou de uma contravenção, com base na definição contida no art. 1.º da Lei de Introdução ao Código Penal, Decreto-lei n.º 3914/41:

Art. 1º Considera-se crime a infração penal a que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

Mas esse critério também é abalado quando se constata no inciso LXVII do art. 5.º da Constituição da República a possibilidade de prisão civil por dívida pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel.

Uma outra diferença que merece ser mencionada é que o dever decorrente de um ato ilícito para um indivíduo responsabilizado criminalmente não se transfere para seus herdeiros, no que diz respeito à pena. Mas o dever de reparar, ou seja, a responsabilidade civil, acompanha a herança (art. 5.º, XLV, Constituição Federal).

A Lei n.º 11.105/05, conquanto tenha tratado predominantemente das atividades envolvendo organismos geneticamente modificados, também estabeleceu crimes ligados diretamente à utilização de células-tronco embrionárias:

Art. 5º É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições:

[...]

§ 3º É vedada a comercialização do material biológico a que se refere este artigo e sua prática implica o crime tipificado no art. 15 da Lei no 9.434, de 4 de fevereiro de 1997.

[...]

Art. 24. Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5.º desta Lei:

Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Art. 25. Praticar engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

Art. 26. Realizar clonagem humana:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 27. Liberar ou descartar OGM no meio ambiente, em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.

§ 1o (VETADO)

§ 2o Agrava-se a pena:

I – de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se resultar dano à propriedade alheia;

II – de 1/3 (um terço) até a metade, se resultar dano ao meio ambiente;

III – da metade até 2/3 (dois terços), se resultar lesão corporal de natureza grave em outrem;

IV – de 2/3 (dois terços) até o dobro, se resultar a morte de outrem.

Art. 28. Utilizar, comercializar, registrar, patentear e licenciar tecnologias genéticas de restrição do uso:

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Art. 29. Produzir, armazenar, transportar, comercializar, importar ou exportar OGM ou seus derivados, sem autorização ou em desacordo com as normas estabelecidas pela CTNBio e pelos órgãos e entidades de registro e fiscalização:

Pena – reclusão, de 1 (um) a 2 (dois) anos, e multa.

A terceira "modalidade" de responsabilidade, administrativa, tem por escopo a implementação do poder de polícia, conceituado no art. 78 do CTN nos seguintes termos:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Para cumprir seu papel, a Administração Pública ora adota medidas de caráter inibitório (por exemplo: multas, revogação ou não-concessão de privilégios), ora de caráter impeditivo (por exemplo: suspensão, paralisação, interdição de atividades).

Acerca da responsabilidade administrativa, a Lei 11.105/05 trouxe as seguintes disposições:

Art. 21. Considera-se infração administrativa toda ação ou omissão que viole as normas previstas nesta Lei e demais disposições legais pertinentes.

Parágrafo único. As infrações administrativas serão punidas na forma estabelecida no regulamento desta Lei, independentemente das medidas cautelares de apreensão de produtos, suspensão de venda de produto e embargos de atividades, com as seguintes sanções:

I – advertência;

II – multa;

III – apreensão de OGM e seus derivados;

IV – suspensão da venda de OGM e seus derivados;

V – embargo da atividade;

VI – interdição parcial ou total do estabelecimento, atividade ou empreendimento;

VII – suspensão de registro, licença ou autorização;

VIII – cancelamento de registro, licença ou autorização;

IX – perda ou restrição de incentivo e benefício fiscal concedidos pelo governo;

X – perda ou suspensão da participação em linha de financiamento em estabelecimento oficial de crédito;

XI – intervenção no estabelecimento;

XII – proibição de contratar com a administração pública, por período de até 5 (cinco) anos.

Como se nota, entre as sanções adminstrativas também existe a multa, da mesma forma que na responsabilidade civil e na penal. Outrossim, verificamos penas que restringem direitos de modo semelhante ao que ocorre no direito penal.

Após essa diferenciação, aprofundar-nos-emos mais um pouco na responsabilidade civil, que faz parte do tema deste trabalho.

A responsabilidade civil está regulada em traços gerais no Código Civil. Mas em outras partes do ordenamento são encontrados dispositivos tratanto de pontos específicos de tal assunto. A título de exemplo, temos a Lei n.º 8078/90 (Código de Defesa do Consumidor), Decreto n.º 2681/1912 (responsabilidade civil das estradas de ferro).

Definido o que seja responsabilidade, vejamos como a responsabilidade civil é conceituada pela doutrina.

Eis a lição de SÉRGIO CAVALIERI FILHO (2003:26):

Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a idéia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, não foge dessa idéia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário.

Para MARCUS CLÁUDIO ACQUAVIVA, a responsabilidade civil configura-se pelo ressarcimento patrimonial de um interesse protegido pelo direito que seja injustamente lesionado (1999:621).

Assim, pelo que constatamos na doutrina, no âmbito civil, responsabilidade civil circunscreve-se ao dever de reparar um dano (VENOSA, 2004:13; GONÇALVES, 2003:17).

De fato, num primeiro momento, o Código Civil leva a crer que a reparação de um dano ilicitamente causado seria o cerne da responsabilidade civil, conforme o disposto em seu art. 927, que abre o Título sobre o assunto: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo."

Aliás, o Capítulo I em que se insere esse art. 927 é chamado "Da Obrigação de Indenizar". Indenização, estritamente falando, é tornar indene, sem danos.

Contudo, conforme se viu no supramencionado art. 940 do Código Civil, nem sempre há dano e, por conseguinte, não necessariamente uma prestação a que se obriga o responsável será uma reparação.

Aliás, o próprio Código Civil diz claramente no art. 942 que o art. 940 trata de uma penalidade.

Por isso, deve-se entender indenização não ao pé da letra, como sinônimo de tornar sem danos, mas simplesmente como a entrega de um proveito, de uma vantagem –não necessariamente dinheiro-, para que o termo possa ser adequadamente aproveitado dentro do sistema normativo.

Concluímos, assim, que responsabilidade civil é situação jurídica de suscetibilidade de sofrer sanção, cujo objetivo seja primordialmente reparar um dano ou trazer uma vantagem para a vítima do ilícito.

A aplicação de células-tronco embrionárias somente ensejará sanção, em princípio, se houver dano, embora, conforme visto acima, este não seja elemento essencial da responsabilidade civil.

Essa ilação pode ser extraída do disposto no art. 20 da Lei de Biossegurança:

Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa. (grifamos)

2.3 CULPA

A culpa não é essencial para que haja responsabilidade, pois há responsabilidade sem culpa.

Porém, seu estudo é imprescindível e deve ser prévio ao estudo dos responsáveis, estes sim elementos presentes em toda responsabilidade civil.

É que o estudo da culpa ajudará a compreender a responsabilidade daqueles que não possuem capacidade mental adequada para perceber o ilícito ou suas conseqüências.

Vejamos então a culpa.

Uma situação ideal é aquela em que as pessoas não causam danos umas às outras.

Como não é possível evitar que haja lesões a interesses, a norma impõe certas conseqüências desagradáveis aos causadores.

A desagradabilidade de uma conseqüência é obtida por meio de um juízo de valor que o legislador aplica a determinado contexto local e temporal. Isso porque, o que é bom hoje, não necessariamente será amanhã. Da mesma forma, o que não se gosta em determinado local, pode ser adorado em outro.

Daí, com a existência da norma de não lesar o próximo e da conseqüência de sua violação, o legislador espera que aqueles que tenham a intenção de lesar poderão se sentir inibidos em agir.

Além disso, mesmo aqueles que não tenham intenção de lesar, procurarão ter mais cuidado para que não causem nenhum dano a outrem.

Caso a norma seja violada, seja intencionalmente, seja pela falta do cuidado necessário, dir-se-á que houve culpa.

Assim, culpa, em sentido amplo, abrange tanto a intenção de lesar, conhecida como dolo, como a falta de cuidado para que não haja lesão, chamada de culpa em sentido estrito.

CLÓVIS BEVILÁQUA, a respeito, preleciona (1940:426):

O dólo consiste na intenção de offender o direito ou prejudicar o patrimonio por acção ou omissão. A culpa é a negligencia ou imprudencia do agente, que determina violação do direito alheio ou causa prejuizo a outrem. Na culpa há, sempre, a violação de um dever preexistente.

O grande civilista utiliza esse dever preexistente para, de acordo com sua origem, classificar a culpa em contratual e extracontratual (1940:426): "Se esse dever se funda em um contracto, a culpa é contractual; se no princípio geral do direito que manda respeitar a pessôa e os bens alheios, a culpa é extracontractual, ou aquiliana."

No âmbito da responsabilidade -ou culpa- contratual, o não-cumprimento do dever estabelecido no contrato enseja, além de eventuais penalidades, como, por exemplo, multas, o adimplemento coercitivo, quando possível.

Como visto no tópico anterior, contudo, costuma-se enquadrar no campo da responsabilidade apenas a sanção pela lesão causada a outrem.

Nada obstante, reiteramos nosso entendimento de a sanção, pelo menos na responsabilidade civil, implica também a sujeição coercitiva ao cumprimento da obrigação, quando esta for possível.

Como se vê, normalmente a culpa, em sentido amplo, só tem relevância no campo do ilícito. Nunca se ouviu falar que alguém foi o culpado pela criação de uma grande obra de arte.

A culpa é um aspecto subjetivo do sujeito que comete um ilícito. Tem como parte essencial a previsibilidade, ou seja, se era possível ter conhecimento prévio de que a conduta seria ilícita.

Essa previsibilidade é aferida pelo juiz. Para tanto, ele pode basear-se em dois critérios, inclusive utilizando-os cumulativamente (CAVALIERI FILHO, 200356):

a) critério objetivo: levar em consideração se uma pessoa comum, naquela situação, teria condições de prever o resultado ilícito da conduta, ou seja, a apreciação não é feita tendo em mente o que faria uma pessoa extremamente diligente ou alguém absolutamente desleixado.

b) critério subjetivo: tomar em conta o que o efetivo ofensor e suas condições pessoais (idade, sexo, classe social, cultura etc.).

Mas nem sempre a culpa é exigida pela lei como elemento necessário para que haja o dever de reparar.

Daí, a distinção entre responsabilidade subjetiva e objetiva.

Ora a lei exige que o ofensor tenha agido com culpa (sentido amplo), bem como que esta seja comprovada pela vítima para que haja o dever de reparar. Ora, apesar de exigir a existência de culpa, dispensa a vítima de prová-la, mas permite ao ofensor a prova de sua inexistência, ou seja, há uma inversão no ônus da prova. Há, ainda, hipóteses em que o dever de reparar independe da existência de culpa do ofensor.

De acordo com a exigência da culpa para haver o dever de reparar, a responsabilidade é classificada em: subjetiva, subjetiva com culpa presumida e objetiva.

2.3.1 FUNDAMENTOS DA DISPENSA DA CULPA

Tendo o homem livre-arbítrio para agir, o legislador não achou justo, num primeiro momento, que fossem responsabilizados aqueles que causaram um dano sem intenção de lesar, mesmo tendo tomado todos os cuidados exigidos.

Por isso, exigiu a culpa como necessária para haver responsabilização. Mas exigiu também que a vítima provasse a culpa do ofensor, baseado na regra geral de que a prova cabe àquele que alega (NERY;NERY, 2001:822):

Segundo a regra estatuída por Paulo, compilada por Justiniano, a prova incumbe a quem afirma e não a quem nega a existência de um fato (Dig. XXII, 3, 2). O autor precisa demonstrar em juízo a existência do ato ou fato por ele descrito na inicial como ensejador de seu direito.

É que, como dito acima, só há relevância para o direito nas situações em que a vítima quer o ressarcimento e o ofensor se nega a pagar pacificamente. Daí, é a vítima que irá a juízo e alegará o dano sofrido, por culpa do ofensor.

E essa regra geral foi adotada em nosso ordenamento, conforme se depreende do artigo 333, do Código de Processo Civil, verbis:

Art. 333. O ônus da prova incumbe

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Parágrafo único. É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando:

I - recair sobre direito indisponível da parte;

II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito.

Também no âmbito penal, com mais rigor, nos termos do art.156 do Código de Processo Penal: "Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante."

Note-se, contudo, que já no inciso II do parágrafo único do art. 333 do Código de Processo Civil, o legislador percebeu que não poderia admitir que as partes celebrassem acordos para inverter o ônus probatório estabelecido pela lei, quando isso dificultasse excessivamente o exercício do direito da parte.

Ocorre que, pelo menos no âmbito civil, impor o ônus da prova sempre a quem alega e apenas impedir convenções particulares que dificultem sua produção não resolvem todos os casos de injustiça.

Muitas vezes a vítima encontra incrível dificuldade de provar os fatos constitutivos de seu direito por diversos motivos, sejam técnicos, econômicos etc.. Imaginemos, por exemplo, a aquisição de um produto com defeito. O vendedor, provavelmente, alegará que foi o próprio adquirente que o danificou.

Por isso, em certos pontos do ordenamento jurídico, encontramos exceção à regra geral, isto é, em vez de a vítima ter que provar a culpa do ofensor, este é que possui o ônus de demonstrar que não foi culpado. A título de exemplo: a) no Código de Defesa do Consumidor: a responsabilidade dos profissionais liberais depende de culpa (art. 14, §4.º), mas é permitida a inversão do ônus probatório (art. 6.º, VIII); b) no Código Civil:o devedor em mora (art. 399) e o dono do animal que causar dano (art. 936).

Além da inversão do ônus da prova da culpa, existem ainda hipóteses em que ela sequer é cogitada como pressuposto do dever de reparar. É o que ocorre, por exemplo: a) danos causados pelo Estado na prestação de serviço público (art. 37, §6.º, Constituição Federal); danos nucleares (art. 21, XXIII, c, Constituição Federal); b) danos causados a consumidores pelo fato do produto ou do serviço (arts. 12 a 14 do Código de Defesa do Consumidor); c) danos causados pelo que exerce atividade de risco (art. 927, par. único, Código Civil).

Percebe-se que a teoria subjetiva (exigência de culpa) se mostra insuficiente para solucionar todos os conflitos gerados numa sociedade cada vez mais complexa e massificada (ALVES,2003:47), levando o legislador a regular situações em que ela é dispensada.

Para justificar essa inexigibilidade de culpa, surge a teoria do risco (ALVES,2001:52). Segundo essa teoria, aquele que exerce atividade que possui riscos por sua natureza, deve responder pelo só fato de exercê-la.

Essa teoria apresenta desdobramentos, que são assim sintetizados por VILSON RODRIGUES ALVES (2001:53/9):

a) risco-proveito: sendo a atividade potencial geradora de riscos, o fato de que existem pessoas que se beneficiam dela justifica também que respondam pelos danos dela oriundos;

b) risco-profissional: aquele que pratica atividade arriscada também deve responder pelos danos sofridos pelos seus subordinados no exercício dessa atividade.

c) risco-integral: teoria normalmente ligada às relações entre Estado e particulares, por ela, previamente se estabelecem os riscos integralmente cobertos, embora não de forma absoluta.

d) risco-criado: se a atividade abstratamente considerada possui riscos inerentes, seu exercício importa criação concreta desses riscos, justificando a responsabilidade de quem a exerce.

Cumpre-nos ressaltar que o risco profissional acima apontado não se confunde com a responsabilidade profissional, que, segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (1998:251), seria considerada por alguns autores como uma terceira espécie de responsabilidade, ao lado da aquiliana e da contratual, em que haveria uma legislação específica de regência, citando como exemplos os transportadores, os médicos, os fabricantes, os contrutores e os notários.

2.3.2 APLICAÇÃO TERAPÊUTICA DE CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E REPONSABILIDADE OBJETIVA

Ficou claro no tópico 2.3 que existe responsabilidade sem culpa, razão pela qual não consideramos que esta seja elemento essencial do instituto da responsabilidade.

Antes de analisarmos a aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias, veremos as aplicações terapêuticas em geral.

Estas, quando prestadas em caráter de serviço público, direta ou indiretamente pelo Estado, estão sob regime de responsabilidade objetiva quanto aos danos causados aos usuários.

Convém destacar que, recentemente, no julgamento do Recurso Extraordinário 262651/SP, publicado no Informativo do STF n.º 370, a 2.ª Turma do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL decidiu por maioria que somente os usuários do serviço público podem pleitear indenizações sem ter que provar culpa do prestador. Assim, terceiros não-usuários que sofram danos decorrentes da prestação de serviço público estão sujeitos ao regime geral da responsabilidade subjetiva.

É ressalvado ao Estado, contudo, o direito de regresso contra os agentes causadores do dano, desde que por parte deles haja dolo ou culpa.

Essas inferências são extraídas do §6.º do art. 37 da Constituição Federal:

Art. 37 [...]

§6.ºAs pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

Sobre ser objetiva a responsabilidade do Estado, não há controvérsia no SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, consoante se observa, por exemplo, nos seguintes julgados: RE 180602/SP, RE 175739/SP, RE 179147/SP, RE 109615/RJ, RE 178806/RJ, RE 176564/SP.

Também será objetiva a responsabilidade quando a aplicação terapêutica se der em uma relação de consumo, por força do que dispõe o art. 14 da Lei 8078/90, Código de Defesa do Consumidor:

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

Ressalte-se, todavia, que mesmo em se tratando de relação de consumo, dispõe o § 4.º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidorl que "a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa."

Contudo, se se tratar de empresário individual, a responsabilidade também será objetiva, seja em decorrência do que prevê o art. 14 do Código de Defesa do Consumidorl, seja por aplicação do art. 931 do Código Civil:

Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação.

O fato de esse dispositivo mencionar apenas "produtos", em princípio, não afasta sua incidência sobre serviços prestados.

Quanto à diferenciação entre profissional liberal e empresário, pode-se recorrer inicialmente ao art. 577 da Consolidação das Leis do Trabalho, como lembra RUI STOCO (2004:545), que remete ao anexo II desse mesmo diploma.

Convém também utilizar o que dispõe o art. 966 e parágrafo único do Código Civil:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

O que deve ser mencionado com relação aos serviços prestados em relação de consumo é que o ônus da prova poderá ser invertido, com base no disposto no art. 6.º, VIII, do Código de Defesa do Consumidorl:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[...]

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Contudo, em regra, não basta o simples dano causado pela prestação do serviço para que se acarrete a responsabilidade na relação de consumo. Isso porque o próprio caput do art. 14 do Código de Defesa do Consumidorl, supramencionado, exige que tenha havido um defeito na prestação ou "informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos".

Há defeito no serviço, nos termos do §1.º do art. 14 do Código de Defesa do Consumidorl, "quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - o modo de seu fornecimento; II - o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi fornecido."

Deve ser lembrado que um serviço não é considerado defeituoso pelo fato de surgir uma nova modalidade no mercado que pode ser considerada melhor, consoante se depreende da redação do § 2.º do art. 14: "O serviço não é considerado defeituoso pela adoção de novas técnicas."

Caracterizadas as hipóteses do caput do art. 14, o Código de Defesa do Consumidorl só admite como excludentes a prova feita pelo prestador de que que, tendo prestado o serviço, o defeito inexiste ou que a culpa seja exclusiva do consumidor ou de terceiro.

Convém lembrar que o fato de a entidade que presta o serviço não ter fins lucrativos não exclui sua caracterização como relação de consumo, consoante já decidiu o SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

116048861 – PROCESSUAL CIVIL – RECURSO ESPECIAL – SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS DE CARÁTER BENEFICENTE E FILANTRÓPICO – PRESTAÇÃO DE – Serviços médicos, hospitalares, odontológicos e jurídicos a seus associados. Relação de consumo caracterizada. Possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor. - Para o fim de aplicação do Código de Defesa do Consumidor, o reconhecimento de uma pessoa física ou jurídica ou de um ente despersonalizado como fornecedor de serviços atende aos critérios puramente objetivos, sendo irrelevantes a sua natureza jurídica, a espécie dos serviços que prestam e até mesmo o fato de se tratar de uma sociedade civil, sem fins lucrativos, de caráter beneficente e filantrópico, bastando que desempenhem determinada atividade no mercado de consumo mediante remuneração. Recurso Especial conhecido e provido. (STJ – RESP 519310 – SP – 3ª T. – Relª Min. Nancy Andrighi – DJU 24.05.2004 – p. 00262) (In CD Juris SínteseIOB n.º 51 Jan-Fev/2005)

Mas se o serviço for prestado gratuitamente, parece-nos, todavia, que poderá ser afastada sua configuração como relação de consumo, pois o § 2º do art. 3.º do Código de Defesa do Consumidor exige que a atividade seja prestada mediante remuneração.

Ao que parece, JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO considera que tributos não entram na categoria de remuneração (GRINOVER et al.,1998:41). Daí ser possível, segundo entendemos, excluir os serviços públicos gratuitos da relação de consumo, embora isso não isente o Estado de responder objetivamente, em razão do que dispõe o §6.º do art. 37 da Constituição.

De qualquer forma, tratando-se de serviço que envolva a aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias, parece-nos que a responsabilidade será sempre objetiva, mesmo que se trate de profissional liberal, caso esteja em atuação autônoma e independente, em razão do que dispõe o art. 20 da Lei n.º 11.105/05:

Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos causados ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa.

Entretanto, se a pesquisa e a aplicação de células-tronco embrionárias estiver de acordo com a Lei de Biossegurança, ou seja, se estiver sendo feita por pessoa jurídica devidamente autorizada, embora a responsabilidade desta seja objetiva, seus profissionais só poderão ser responsabilizados por culpa.

Surgem, entretanto, algumas questões: Basta o dano, ou é necessário que tenha havido defeito na prestação do serviço? Quando estará configurado o ilícito ensejador da responsabilização civil na aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias?

Tentaremos responder no tópico seguinte.

2.4 O ILÍCITO E A CONDUTA

Elementos que estão sempre presentes na responsabilidade civil são o ilícito e o responsável.

Partindo da premissa de que responsabilidade, no seu aspecto dinâmico, é a imposição da sanção ao sujeito de direito responsável, somos levados pela lógica a admitir que sempre estará envolvida nas causas danosas uma conduta humana.

Sem a consideração da conduta, ficaria sem sentido o conceito de responsabilidade e mesmo de imputabilidade, nas palavras de CHÄIM PERELMAN (1998:173):

Já não se trata, nesse caso, de uma ligação entre acontecimentos, mas de uma ligação entre duas realidades de nível desigual, sendo uma a manifestação da outra, considerada mais estável e com um valor explicativo. Tal é a relação entre uma pessoa e seus atos. O ato é considerado expressão da pessoa, que é responsável por seus atos. Quer se considere, à maneira de Leibniz, a pessoa um sujeito cujos atos seriam apenas manifestações predeterminadas, quer, pelo contrário, se considere, à maneira do existencialismo, a pessoa realizando-se através dos seus atos, esta ligação é essencial, tanto à moral quanto ao direito, pois sem ela a própria idéia de imputabilidade, bem como a de responsabilidade seriam incompreensíveis.

É que não se pode impor deveres, por exemplo, a animais irracionais, por motivos óbvios. Os deveres são impostos ao que cuidam dos animais.

Mais evidente é a impossibilidade de impor deveres à natureza. Já imaginaram uma norma impedindo a chuva de causar danos? E uma proibição de ocorrerem "tsunamis"?

Essa impossibilidade, contudo, é mais de ordem pragmática do que lógica. Isso porque, sendo as normas estabelecidas para regular e direcionar os seres humanos, essa ordem normativa será inócua perante seres inanimados e seres irracionais.

Nada obstante, houve um tempo em que não só o homem era abrangido pelo ordenamento, como lembra HANS KELSEN (1994:33).

Embora as situações em que o ordenamento imponha o dever de reparar estejam sempre envolvidas com uma conduta humana do responsável, esta nem sempre está diretamente ligada aos danos.

Basta analisarmos as seguintes situações para pareceber:

1) quando um objeto cai de um prédio, por ter sido deixado em local indevido, e machuca uma pessoa, o dano foi diretamente causado pelo objeto e não por uma pessoa, embora possamos constatar uma conduta humana na situação: deixar o objeto em local indevido;

2) quando uma pessoa caminha com seu cão pela rua e este ataca e machuca alguém por não ter sido segurado adequadamente, foi o cão que causou diretamente o dano e não o dono do cão. Mas a conduta do dono é perceptível.

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3) quando alguém se fere ao abrir uma embalagem defeituosa, o dano foi causado pela conduta da própria vítima aliada ao defeito do produto. Mas o defeito foi gerado pela conduta do que fabricou a embalagem.

Esses exemplos são dados para demonstrar que, em certos casos, o dano não está ligado diretamente a uma conduta humana.

Mas, para evitar que a vítima fique com o prejuízo por não conseguir demonstrar nesses casos o nexo de causalidade com uma conduta do responsável, o legislador opta por reduzir esse nexo, não o estendendo até a conduta, mas apenas até determinado ponto da causa danosa (o ataque do animal, a queda do objeto, o ferimento provocado por uma embalagem defeituosa etc.).

Podemos observar que, fazendo isso, ao mesmo tempo em que facilita para a vítima a demonstração do nexo, faz com que o sujeito responsável (na concepção ampla de responsabilidade) ou passível de ser responsabilizado (na concepção estrita de responsabilidade), ciente de que outrem pode ser lesado pelo seu animal, por objetos que possam vir a cair do prédio que habita, pela ruína de seu prédio ou por produtos que tenha fabricado ou comercializado, ou seja, ciente de que algo ou alguém que está sob seu domínio pode se tornar causa danosa, tomará providências para que esta seja evitada (é o que se espera...).

Antes, contudo, de analisarmos as causas, é imprescindível esclarecer a seguinte questão: toda causa danosa que implica dever de reparar é ilícita?

O ilícito, em sentido amplo, é a contrariedade à norma, conforme esclarece NORBERTO BOBBIO (2003:152):

Uma norma prescreve o que deve ser. Mas aquilo que deve ser não corresponde sempre ao que é. Se a ação real não corresponde à ação prescrita, afirma-se que a norma foi violada. É da natureza de toda prescrição ser violada, enquanto exprime não o que é, mas o que deve ser. À violação, dá-se o nome de ilícito. O ilícito consiste em uma ação quando a norma é um imperativo negativo e em uma omissão quando a norma é um imperativo positivo. No primeiro caso, afirma-se que a norma não foi observada, no segundo, que não foi executada. Porquanto os termos "observação" e "execução" de uma norma sejam usados indiscriminadamente para indicar o comportamento conforme à norma, o que se observa é uma proibição, o que se executa é um comando, daí dois modos diversos de violação, a inobservância em relação a um imperativo negativo, a inexecução em relação a um imperativo positivo.

Partindo-se dessa premissa, ainda seria necessário convencionarmos o que se deve entender por norma.

Tomemos como exemplo o que o Código Penal estabelece no seu art. 121, verbis: "Art 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos."

Extrai-se da literalidade desse dispositivo que não há um preceito para matar, nem uma proibição de matar e nem uma permissão para matar.

Todavia, se analisarmos esse artigo sob o ponto de vista axiológico, teremos por certo que a pena é algo mal, indesejado, pelo menos para a maioria das pessoas. Sendo certo que é conseqüência do ato de matar, então, concluiremos que não é bom matar ou que é bom não matar.

Esse, então, é o comportamento esperado pelo legislador. Daí, pode-se dizer que a norma proíbe o ato de matar, pois é contrário à conduta desejada pelo legislador, e daí qualificar o homicídio como ilícito. Mas a contrariedade é em relação à norma implícita.

Parece-nos, porém, um tanto complicado fazer todo esse esforço mental para qualificar algo como ilícito. Pior ainda é descobrir o verdadeiro sentido da norma. Esse deveria ser buscado na vontade do legislador ou extraída da própria da lei? Essas questões sintetizam a grande polêmica não resolvida entre subjetivistas e objetivistas, conhecida como o desafio kelsiano (FERRAZ JUNIOR:268).

O próprio HANS KELSEN (2005:73) esclarece que não se pode considerar o ilícito, denominado por ele de delito, um conceito jurídico, caso não venha expresso na lei ou no procedimento de sua criação:

Se precisamos definir o conceito de delito em conformidade com os princípios de uma teoria pura do Direito, então as "intenções da ordem jurídica" ou os "propósitos do legislador" podem fazer parte da definição apenas enquanto forem expressos no material produzido pelo procedimento legislativo, na medida em que se tornem manifestos no conteúdo da ordem jurídica. Caso contrário, o conceito de delito não será um conceito jurídico.

É certo, contudo, que a obra desse autor recebe críticas por "empobrecer o universo jurídico", de acordo com TÉRCIO SAMPAIO FERRAZ JÚNIOR (2003:99).

Apesar disso, parece-nos correto o entendimento de KELSEN de que o ilícito seja toda conduta cuja conduta oposta seja pressuposto da sanção, ou, em suas palavras, "a ação ou omissão determinada pela ordem jurídica, que forma a condição ou pressuposto de um ato de coerção estatuído pela mesma ordem jurídica, representa o fato designado como ilícito ou delito, e o ato de coação estatuído como sua conseqüência representa a conseqüência do ilícito ou sanção." (1994:124)

O ilícito em sentido amplo também pode ser encontrado considerando-se a norma de maneira dogmática, bem como levando em consideração a advertência de NORBERTO BOBBIO, para quem é mais apropriado tomar como objeto do estudo do direito o ordenamento e não a norma isoladamente (1999:19/31).

Mas qual seria o resultado de adotarmos essa atitude metodológica em relação ao exemplo do homicídio acima?

Ora, se ocorrido o homicídio, extrai-se do ordenamento o dever de se promover um devido processo legal e, preenchidos os requisitos da tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade, aplicar a pena. A ilicitude estaria na ausência do processo penal e, se condenado o culpado, na ausência da aplicação da pena.

Acresça-se que, se considerado o direito como se deve, ou seja, como um ordenamento, já se saberá que o homicídio é ilícito porque na Constituição, que é norma superior, está expresso (e não implícito) que os indivíduos têm direito à vida. Daí, decorre diretamente que é dever não lesar a vida.

Se se considerar o ilícito com a primeira acepção (conteúdo implícito da norma), então, sempre que houver dever de reparar haverá ilícito, pois o dever de reparar é uma conseqüência má, indesejada.

Se se considerar o ilícito na sua segunda acepção, como contrariedade à norma explícita estudada no ordenamento, saberemos que haverá o ilícito enquanto o indivíduo não reparar o dano causado, porque a norma impõe esse dever. Também encontraremos a ilicitude do dano em si, porque o ordenamento garante aos indivíduos direito à propriedade e à moral (p.ex.: art. 5.º, caput, V, X, XXII, da Constituição Federal).

Em sentido estrito, que é o que importa na responsabilidade civil, o ilícito se caracteriza sempre que um dever de indenizar não é cumprido.

Saliente-se que não se deve confundir ilícito com ato ilícito.

Este se encontra expressamente definido nos artigos 186 e 187 do Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Confrontando esses dispositivos com o caput do art. 927, pode-se inferir que, para haver dever de reparar, é indispensável a ilicitude do ato, verbis: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo."

Contudo, desde o Código Civil de 1916 já se sustentava que o dever de reparar poderia decorrer de atos lícitos, conforme se verifica na lição de CLÓVIS BEVILÁQUA (1940:661):

Na systematica do Codigo, o acto illicito é causa geradora de obrigação, como o contracto, e a declaração unilateral da vontade. O acto illicito presuppõe culpa lato sensu, do agente, isto é, a intenção de violar o direito alheio, de prejudicar a outrem, ou a violação de direito, o prejuizo causado por neligencia ou imprudencia.

Todavia o acto illicito não esgota as causas de responsabilidade civil, que não se origina de contracto nem de declaração da vontade. Ha casos, em que ella se impõe, não obstante ser licito o acto, de que resulta o damno, como nos casos de necessidade e de legitima defeza, quando, para a efficiencia desta, se faz necessario damnificar alguma coisa (art.s 160 e 1.520).

A idéia de damno resarsivel é, portanto, mais lata do que a de acto illicito. Todo acto illicito é damnoso e cria para o agente a obrigação de reparar o damno causado. Mas nem toda a obrigação de resarcir o damno provém de acto illicito, de acto praticado sem direito. (grifamos)

Nada obstante, entendemos que sempre que a norma determinar o dever de reparar, isso se dará porque existe um ilícito em sentido amplo, não necessariamente no fato que gerou o dever de indenizar, mas na omissão em si de indenizar, ou seja, enquanto a norma que determina a indenização não for cumprida.

Mas perguntamos: só existe dever de reparar diante de ato ilícito, ou seja, de ilícito em sentido estrito?

Vislumbramos a existência do dever de indenizar sem que sequer haja ato, quanto mais ato ilícito, por exemplo, nos artigos 936 a 938 do Código Civil:

Art. 936. O dono, ou detentor, do animal ressarcirá o dano por este causado, se não provar culpa da vítima ou força maior.

Art. 937. O dono de edifício ou construção responde pelos danos que resultarem de sua ruína, se esta provier de falta de reparos, cuja necessidade fosse manifesta.

Art. 938. Aquele que habitar prédio, ou parte dele, responde pelo dano proveniente das coisas que dele caírem ou forem lançadas em lugar indevido.

Ainda mais clara é a previsão do art. 1.251 do Código Civil:

Art. 1251. Quando, por força natural violenta, uma porção de terra se destacar de um prédio e se juntar a outro, o dono deste adquirirá a propriedade do acréscimo, se indenizar o dono do primeiro ou, sem indenização, se, em um ano, ninguém houver reclamado.

Parágrafo único. Recusando-se ao pagamento de indenização, o dono do prédio a que se juntou a porção de terra deverá aquiescer a que se remova a parte acrescida

Perguntamos: nas situações expostas nesses dispositivos, seria realmente necessário ficar divagando para saber se é lícito ou não um animal, uma ruína ou um objeto caído de um prédio causar o dano, ou receber acréscimo de terra sem indenizar?

Para que a vítima possa receber sua reparação, num primeio momento parece-nos que não. Note-se que para aplicabilidade desses artigos, sequer se cogita da ilicitude em sentido estrito do ato, uma vez esses dispositivos nem falam em ato.

Entretanto, no caso do art. 936, o dono do animal poderia sustentar, em tese, que seu animal o estava defendendo de uma agressão da vítima, com base no art. 188, I, do Código Civil:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

É exatamente esse artigo que costuma ser citado pelos autores que defendem a possibilidade de haver dever de reparar o dano em decorrêcia de ato lícito, conforme se percebe da própria citação de CLÓVIS BEVILÁQUA e também se verifica em CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2003:30)

Nada obstante, enquanto é certo que não se perquirirá da existência ou não de ato ilícito no caso dos artigos 936 a 938 do Código Civil, nem sempre isso ocorrerá com relação a esse artigo 188, conforme se verá abaixo.

2.4.1 RELATIVIDADE DA ILICITUDE DO ATO

No tópico 2.6 infra ficará claro que é possível haver dano sem dever de reparar. Isso porque somente quando a lei assim determinar, é que haverá tal dever.

No tópico acima, afirmamos que ilícito em sentido amplo sempre haverá quando uma norma impuser o dever de reparar.

Analisaremos agora o que dispõe o art. 188 do Código Civil:

Art. 188. Não constituem atos ilícitos:

I - os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido;

II - a deterioração ou destruição da coisa alheia, ou a lesão a pessoa, a fim de remover perigo iminente.

Parágrafo único. No caso do inciso II, o ato será legítimo somente quando as circunstâncias o tornarem absolutamente necessário, não excedendo os limites do indispensável para a remoção do perigo.

Conforme visto na lição de CLÓVIS BEVILÁQUA supramencionada, o ato de legítima defesa que causasse dano à coisa ou a alguém seria um ato lícito que acarretaria dever de indenizar.

Pode parecer jogo de palavras, mas essa licitude somente existe frente ao ofensor ou culpado pela ofensa, e nos limites necessários para a remoção do perigo ou da agressão. Se um terceiro for lesado, haverá o dever de reparar por parte daquele que agiu "licitamente", embora com direito de regresso contra o culpado, consoante verificamos nos artigos 929 e 930 do Código Civil:

Art. 929. Se a pessoa lesada, ou o dono da coisa, no caso do inciso II do art. 188, não forem culpados do perigo, assistir-lhes-á direito à indenização do prejuízo que sofreram.

Art. 930. No caso do inciso II do art. 188, se o perigo ocorrer por culpa de terceiro, contra este terá o autor do dano ação regressiva para haver a importância que tiver ressarcido ao lesado.

Parágrafo único. A mesma ação competirá contra aquele em defesa de quem se causou o dano (art. 188, inciso I).

Dito de outra forma, o ato que é lícito perante o ofensor, é ato ilícito frente a terceiro. Mesmo em relação ao ofensor é ilícito na parte que excede a proporcionalidade.

Daí decorre que o terceiro lesado, para ter direito à indenização, deverá comprovar o ato ilícito, nos termos da regra geral do art. 927 do Código Civil.

Fenômeno semelhante ocorre com a posse, isto é, ela também é relativa (GONÇALVES, 2001, passim). Se um possuidor é esbulhado, o esbulhador não tem os interditos possessórios frente ao esbulhado. Mas o esbulhador é considerado possuidor frente a terceiros.

2.4.2 CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E O ILÍCITO ENSEJADOR DA RESPONSABILIDADE

Para conhecer o ilícito, pressupõe-se conhecimento das normas.

Entre outras, devem ser destacadas as normas existentes no chamado "biodireito".

Analisando os princípios desse "ramo" do direito, teremos melhores condições de sintetizar hipóteses em que haverá a responsabilidade civil.

O Biodireito é o estudo sistematizado das normas existentes no ordenamento jurídico ligadas à Bioética, consoante se extrai de ARTHUR MAGNO E SILVA GUERRA (2005:4):

Como visto, então, a bioética nasceu, como a dimensão moral da Medicina, ampliando seus conceitos a diversas outras áreas, todas correlacionando avanços científico-biológicos com a ética propriamente dita. Isso mexeu com as relações sociais e, por conseguinte, fez surgir princípios e regras jurídicas, transmudando-se em Biodireito.

Nas palavras de GILBERTO COTRIM (2002:263), a ética é o estudo da moral:

A moral é o conjunto de normas que orientam o comportamento humano tendo como base os valores próprios a uma dada comunidade.

[...]

A ética (do grego ethikos, "costume", "comportamento") é a disciplina filosófica que busca refletir sobre os sistemas morais elaborados pelos homens, buscando compreender a fundamentação das normas e interdições próprias a cada sistema moral.

(destaques do original)

No dicionário, encontramos ética, entre outros significados, como a "parte da filosofia que estuda os valores morais e os princípios ideais da conduta humana" ou ainda como o "conjunto de princípios morais que se devem observar no exercícios de uma profissão." (MICHAELIS,1998:908)

JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO (In GUERRA, 2005:29) assere que "a Bioética passou a ser definida como estudo sistemático da conduta humana, na área das ciências da vida e do cuidado com a saúde".

A Bioética envolve os estudos da ética relacionada à vida, ao tratamento da pessoa humana, notadamente no campo das pesquisas científicas e da medicina, mas, segundo entendemos, não apenas da vida humana.

Para JOSÉ DE SOUZA FERNANDES (2004:21) a bioética não se confundiria com a ética médica

Vejamos, em primeiro lugar, os princípios da bioética e, após, uma sistematização do ilícito pela prática médica.

2.4.2.1 PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA E RESPONSABILIDADE

A Bioética é orientada por princípios cuja formulação original ocorreu no Relatório de Belmont, em 1978, segundo ARTHUR MAGNO E SILVA GUERRA (2005:7).

JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO (2005:38) também ressalta esse documento:

Os princípios básicos da Bioética tiveram grande importância em 1974, nos termos da decisão do Congresso norteamericano criando a National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, com o objetivo de realizar completa investigação e estudos tendentes a identificar "princípios éticos básicos", orientadores da investigação com seres humanos, nas ciências do comportamento e na Biomedicina, o informe final foi denominado Belmont Report.

Com a juridicização da bioética, tais princípios incorporam-se ao ordenamento jurídico.

ARTHUR MAGNO E SILVA GUERRA (2005:7-13), sintetiza da seguinte forma os princípios da bioética:

a) Beneficência e não-maleficência: determinam que se busque fazer o bem e evitar o mal.

Tem como origem a lição de Hipócrates: "auxiliar ou socorrer, sem prejudicar ou causar o mal ou dano ao paciente" (GUERRA, 2005:8).

Havendo uma situação de conflito, em que os meios necessários para fazerem o bem importem um certo mal, deve-se pesar ambos para que se obtenha o máximo de benefícios e o mínimo de danos. (GUERRA, 2005:8).

b) Autonomia: a pessoa humana deve ser respeitada como autônoma, capaz de se governar por si mesma.

Não basta, porém, simplesmente questionar a pessoa se ela aceita ou não o tratamento.

Pressupõe-se que ela seja plenamente informada sobre suas necessidades, bem como sobre os riscos do tratamento ou de uma atividade que será executada e terá efeitos sobre seu corpo. Essa informação, outrossim, deve ser esclarecedora. (GUERRA, 2005:10)

Estando a pessoa informada e esclarecida, será necessário ainda a obtenção de seu consentimento.

c) Justiça distributiva: determina, num primeiro momento, justiça na distribuição dos recursos a serem aplicados na área da saúde.

Em segundo lugar, impõe o tratamento justo dos pacientes, a distribuição igualitária dos benefícios advindos dos avanços da ciência médica.

d) Primado do direito à vida: embora não previsto explicitamente no Relatório de Belmont, pode ser considerado pressuposto dos outros princípios.

Para ENÉAS CASTILHO CHIARINI JÚNIOR (2004), ainda existiriam outros princípios aplicáveis à bioética:

e) Ubiqüidade: princípio advindo do direito ambiental, parte do pressuposto de que as alterações do meio ambiente podem afetar os serem humanos, em todo o planeta.

Segundo o autor, aplicado no âmbito do biodireito, esse princípio visaria a preservar as característica genéticas da espécie humana, uma vez que quaisquer alterações poderiam ser propagadas aos futuros descendentes.

f) Cooperação entre os povos: também decorre, em parte, do direito ambiental, sendo aplicado no biodireito para que as nações colaborem entre si para impedir experimentos humanos em todo o planeta, mesmo porque, alterações ocasionadas em qualquer parte podem alastrar-se para o restante do globo.

Ainda haveria outro enfoque, no sentido de cooperação internacional para implementação do princípio da justiça.

g) Preservação da espécie humana: seria um reflexo do princípio do desenvolvimento sustentável existente no direito ambiental.

h) Precaução: havendo dúvidas sobre a possibilidade ou não de uma determinada atividade causar danos, deve-se optar por sua não realização.

i) Prevenção: correlato ao princípio da precaução, impõe que se tomem todas as medidas para impedir e minimizar eventuais efeitos danosos não previstos.

j) Dignidade da pessoa humana: para os autores que entendem que este princípio seria diferente do princípio da primazia da vida humana, afirmam que não basta defender a vida, mas também sua qualidade.

Com relação ao princípio da precaução, verificamos a existência de uma outra corrente, segundo a qual a incerteza científica sobre quais as conseqüências danosas decorrentes de uma determinada atividade nem sempre pode ser utilizada para impedir a realização desta. Para essa corrente, precaução significaria adotar medidas de prevenção ainda que não se saiba quais são os efeitos negativos de uma atividade (MACHADO, 2002:62).

Desses princípios, importarão para o direito apenas os que estiverem positivados.

Os demais, entretanto, poderão servir de auxílio na interpretação das normas.

2.4.2.2 CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E O ILÍCITO MÉDICO

Decidimos dedicar esse tópico ao ilícito decorrente da prática médica uma vez que, em princípio, somente entidades com conhecimentos científicos dessa área é que podem ser autorizadas a pesquisas e aplicação de células-tronco embrionárias, conforme art. 2.º da Lei de Biossegurança.

Caso uma pessoa física em caráter autônomo e independente realize essas atividades, ainda que tenha formação em medicina e esteja inscrita no respectivo conselho profissional, poderá ser responsabilizada objetivamente, em razão do que dispõe o art. 20, também da Lei n.º 11.105/05. Pior ainda será a situação do que, não sendo médico, pratique tais atividades.

A profissão do médico está entre aquelas sujeitas a disciplina especial, pelos riscos inerentes à sociedade decorrentes do seu exercício (CAVALIERI, 2003:367).

Para Jurandir Sebastião, citado por RUI STOCO (2004:528/9), o Código de Ética Médica conteria as normas positivadas aptas a caracterizar o ilícito na prática médica:

O atual Código de Ética Médica (Resolução n.1246/88) estabelece uma séria de normas de conduta profissional, de proibição ou de obrigação e, ainda, o rol de prerrogativas individuais ou em grupo. Como categoria profissional regulamentada em lei (inciso XIII do art. 5.º da CF/88, Decreto-lei n. 7.955, de 13.09.1945, Lei n. 3.268, de 30.09.1957, e Decreto n.44.045, de 19 de julho de 1958), cumpre ao órgão de Cúpula – Conselho Federal de Medicina- por competência delegada e mediante Resoluções, estabelecer e alterar as regras de conduta profissional de acordo com os avanços constantes da medicina e das novas necessidades do Estado e da civilização, como um todo –visto que a saúde é questão de interesse da própria humanidade.

Os princípios bioéticos do Relatório de Belomont apontados no tópico anterior estão positivados pelo Conselho Federal de Medicina.

O princípio da não-malificência pode ser notado no art. 29 do Código de Ética Médica: "Art. 29 - Praticar atos profissionais danosos ao paciente, que possam ser caracterizados como imperícia, imprudência ou negligência."

A autonomia é notada no art. 32, onde se percebe que o simples consentimento do paciente não basta para excluir a responsabildiade: "Art. 32 - Isentar-se de responsabilidade de qualquer ato profissional que tenha praticado ou indicado, ainda que este tenha sido solicitado ou consentido pelo paciente ou seu responsável legal." Também nos artigos 40 e 41, na medida em que o consentimento pressupõe informação, para que o paciente tenha condições de exercer sua autogovernança: "Art. 40 - Deixar de esclarecer o trabalhador sobre condições de trabalho que ponham em risco sua saúde, devendo comunicar o fato aos responsáveis, às autoridades e ao Conselho Regional de Medicina. Art. 41 - Deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença."

Justiça distributiva vemos no artigo 35 quando estabelece tratamento diferenciado aos que se encontram em condições diferenciadas: "Art. 35 - Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, colocando em risco a vida de pacientes, mesmo respaldado por decisão majoritária da categoria."

RUI STOCO (2004:531) sintetiza da seguinte forma o quadro de deveres do médico estabelecidos pela doutrina:

a) dever de aconselhar adequadamente o paciente;

b) obrigação de tomar os cuidados necessários e manter sigilo;

c) não cometer desvio ou abuso de poder (experiências médicas);

d) dever de informação, esclarecendo o paciente sobre a doença, os cuidados, as prescrições, os riscos possíveis e as precauções a serem tomadas;

e) manter o paciente informado da realidade do seu estado e dos riscos possíveis;

f) nos casos de cirurgia exigir o consentimento do paciente (art. 46 do Código de Ética), salvo nas emergências, com informações completas sobre o procedimento cirúrgico e a técnica a ser utilizada;

g) não recusar atendimento ou omitir socorro;

Ao fim dessa sua exposição, referido autor chega à seguinte conclusão (STOCO, 2004:531): "O médico poderá ser responsabilizado em razão da infringência da lei e dos preceitos éticos, quando deles resultar danos."

Ele lembra (2004:531), contudo, que a atividade do médico é de meio e não de resultado, exceto na "cirurgia estética ou nos procedimentos embelezadores ou cosmetológicos":

Assim, o profissional obriga-se apenas a empregar todo o seu esforço e atenção e a utilizar as técnicas consagradas e aceitas, não devendo fazer experimentos ou experiências, dele se exigindo apenas o melhor tratamento e a diligência necessária.

Também é na mesma esteira a lição de SÉRGIO CAVALIERI FILHO (2003:369):

Nenhum médico, por mais competente que seja, pode assumir a obrigação de curar o doente ou de salvá-lo, mormente quando em estado grave ou terminal. A ciência médica, apesar de todo o seu desenvolvimento, tem inúmeras limitações, que só os poderes divinos poderão suprir. A obrigação que o médico assume, a toda evidência, é a de proporcionar ao paciente todos os cuidados consciensiosos e atentos, de acordo com as aquisições da ciência, para usar-se a fórmula consagrada na escola francesa. Não se compromete a curar, mas a prestar os seus serviços de acordo com as regras e os métodos da profissão, incluindo aí cuidados e conselhos.

Logo, a obrigação assumida pelo médico é de meio, e não de resultado, de sorte que, se o tratamento realizado não produziu o efeito esperado, não se pode falar, só por isso, em inadimplemento contratual. Esta conclusão, além de lógica, tem o apoio de todos os autores, nacionais e estrangeiros (Aguiar Dias, Caio Mário, Sílvio Rodrigues, Antônio Montenegro), e é também consagrada pela jurisprudência.

Diante dessas conclusões, podemos, num primeiro momento, aferir que haverá responsabilidade civil na aplicação de células-tronco quando ocorrer um dano de forma ilícita, sem perquerir sobre a existência de culpa (art. 20 da Lei 11.105/05).

Esse ilícito se configurará pela infringência da lei e dos preceitos éticos (STOCO, 2004:531), embora o responsável possa não sofrer os efeitos da sanção nas hipóteses que serão delineadas no tópico 2.9 infra.

2.5 RESPONSÁVEIS

Responsável é o sujeito passivo da relação jurídica de responsabilidade. É a quem se aplica a sanção.

Não é necessariamente quem pratica uma conduta que cause dano, seja direto seja indireto.

Aliás, é esse aspecto que HANS KELSEN utiliza para distinguir dever de responsabilidade (1994:133/4).

Responsável é, em suma, quem a lei escolhe como obrigado a suportar a sanção, consistente, no mais das vezes, em reparar o dano.

Ao que tudo indica, o legislador optou por selecionar certas pessoas que, em tese, possuem o controle sobre certos fatores, ou seja, têm domínio sobre eles e, por conseguinte, tem condições de evitar possíveis danos por eles causados (o homem capaz, em sã consciência, tem domínio sobre seus atos; o dono do animal tem como deixá-lo preso; o proprietário do prédio pode realizar sua manutenção; o pai tem autoridade sobre o filho; o produtor tem como evitar que seu produto cause danos decorrentes de defeitos etc.).

Essas pessoas selecionadas passam a ser responsáveis em razão da simples imputação feita pela lei.

Com essa imputação, passam os responsáveis a ter indireta e implicitamente uma motivação para zelar por eles.

Por trás dessa opção do legislador de responsabilizar mesmo quem não esteja diretamente ligado a um dano, haveria uma constatação de que, caso contrário, poderia haver situações injustas, conforme esclarece CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (1998:85) sobre o fato de terceiro:

A teoria da responsabilidade civil assenta, em nosso direito codificado, em torno de que o dever de reparar é uma decorrência daqueles três elementos: antijuridicidade da conduta do agente; dano à pessoa ou coisa da vítima; relação de causalidade entre uma e outro. Dá-se-lhe o nome de responsabilidade por fato próprio ou responsabilidade direta.

Este princípio, porém, não satisfaz ao anseio de justiça, pois que muitas vezes ocorre a existência de uma dano, sem que o demandado seja diretamente apontado como causador do prejuízo, embora a análise acurada da situação conduza a concluir que a vítima ficará injustiçada, se se ativer à comprovação do proclamado nexo causal entre o dano e a pessoa indigitada como o causador do dano.

Vale lembrar, contudo, que, em regra, o fato de alguém ser responsável por atos de outrem não exclui a responsabilidade do próprio causador do dano.

A título de exemplo, o art. 932 do Códico Civil traz várias hipóteses de responsabilidade por atos alheios:

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:

I - os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia;

II - o tutor e o curador, pelos pupilos e curatelados, que se acharem nas mesmas condições;

III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;

IV - os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos;

V - os que gratuitamente houverem participado nos produtos do crime, até a concorrente quantia

Logo em seguida, entretanto, verifica-se que o Código Civil estabeleceu a solidariedade entre o causador do dano e os responsáveis por este:

Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932

Para nós, em se tratando de aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias, importará mais o o disposto no inciso III desse art. 932.

Esse é um dos dispositivos legais que impõe à entidade responsável pelas pesquisas e aplicações terapêuticas a obrigação de ressarcir eventuais danos causados por seus prepostos ou empregados em razão do trabalho exercido.

De acordo com CLÓVIS BEVILÁQUA (1940:671), no Código Civil de 1916, a idéia a presunção de culpa dos empregadores, impondo a estes o ônus de provar o contrário. Mas o Projeto sofreu alteração no Senado, que atribuíu tal ônus ao prejudicado.

Apesar disso, a jurisprudência caminhou no sentido apontado pelo civilista, conforme se verifica na Súmula 341 do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: "É presumida a culpa do patrão ou comitente pelo ato culposo do empregado ou preposto".

Com o novo Código Civil, todavia, essa responsabilidade passa a ser objetiva, em razão do disposto no seu art. 933: "As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos."

No que diz respeito aos responsáveis em caso de ilícitos cometidos pela utilização de células-tronco embrionárias, existem alguns dispositivos na Lei n.º 11.105/05 que podem gerar certa controvérsia.

Isso porque o Congresso Nacional utilizou a antiga Lei n.º 8974/95, que tratava somente de organismos geneticamente modificados, para elaborar a atual Lei de Biossegurança.

Confrontando a revogada Lei n.º 8974/95 com a Lei n.º 11.105/05, verificamos que foram incluídos certos dispositivos relativos à pesquisa e aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias sem se preocupar muito com a perfeita adaptação desses dispositivos ao restante da lei.

É o que se nota, por exemplo, no art. 2.º, caput, da Lei 11.105/05:

Art. 2º As atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados, relacionados ao ensino com manipulação de organismos vivos, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão responsáveis pela obediência aos preceitos desta Lei e de sua regulamentação, bem como pelas eventuais conseqüências ou efeitos advindos de seu descumprimento.

§ 1º Para os fins desta Lei, consideram-se atividades e projetos no âmbito de entidade os conduzidos em instalações próprias ou sob a responsabilidade administrativa, técnica ou científica da entidade.

Embora faça referência somente a OGM, entendemos que também a pesquisa e aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias deverão observar todos os preceitos da lei.

Daí, somente serem permitidas para pessoas jurídicas, conforme dispõe o caput do art. 2.º supramencionado, e vedadas para pessoas físicas em atividade autônoma e independente, nos termos do § 2.º desse mesmo art. 2.º.

Além disso, é necessária prévia autorização da CTNBio para essas atividades, a teor do que dispõe o § 3.º do art. 2.º da Lei 11.105/05, embora, se ocorrer um dano causado ilicitamente pela entidade, ainda que ela esteja regularmente autorizada, isso não afastará sua responsabilidade.

A responsabilidade das entidades também pode ser estendida a quem patrocinar ou financiar tais atividades, na hipótese do § 4.º do art. 2.º da Lei de Biossegurança:

§ 4o As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos no caput deste artigo devem exigir a apresentação de Certificado de Qualidade em Biossegurança, emitido pela CTNBio, sob pena de se tornarem co-responsáveis pelos eventuais efeitos decorrentes do descumprimento desta Lei ou de sua regulamentação. (grifamos)

Quanto ao certificado de qualidade, adiantamos que, se for apresentado um falso, o financiador ou patrocinador não poderá ser responsabilizado, salvo se comprovada má-fé.

O que deve ser estudado sobre o responsável é se o simples fato de constar na lei como tal autoriza que ele suporte a sanção, ou melhor, se para ser responsável basta estar apontado como tal.

Dito de outra forma, tendo em vista que a aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias é regida por responsabilidade objetiva, bastará um dano decorrente dessa atividade para que haja dever de indenizar?

Antes de respondermos a essa questão, vejamos alguns esclarecimentos sobre as noções de capacidade e imputabilidade.

2.5.1 RESPONSABILIDADE, IMPUTABILIDADE E CAPACIDADE

Responsabilidade é suscetibilidade de estar sujeito a sanção. Por vezes, esta pode abranger também o cumprimento coercitivo do próprio dever originário inadimplido.

Responsabilidade pressupõe imputabilidade, que é a atribuibilidade, ou seja, possibilidade de atribuição. Para o que importa nesse trabalho, é possibilidade de atribuição de responsabilidade a um sujeito.

Em suma, imputabilidade é o conjunto de requisitos pessoais exigidos pela lei para que alguém possa ser responsabilizado. Esses requisitos dizem respeito a uma situação estática e não dinâmica. Verifica-se, conforme o caso, se alguém está na qualidade de proprietário, de pai, de empregador, de detentor das faculdades mentais etc..

Normalmente se vê o conceito de imputabilidade mais ligado à própria pessoa que pratica o ilícito, mas deve ser atrelado também à pessoa que responde por ele.

Nélson Hungria, citado por FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO (313), chega a afirmar que:

A distinção é bizantina e inútil. Responsabilidade e imputabilidade representam conceitos que de tal modo se entrosam, que são equivalentes, podendo, com idêntico sentido, ser considerados in abstracto ou in concreto, a priori ou a posteriori. Na terminologia jurídica, ambos os vocábulos podem ser indiferentemente empregados, para exprimir tanto a capacidade penal in genere, quanto a obrigação de responder penalmente pelo fato concreto, pois uma e outra são aspectos da mesma noção.

A imputabilidade, no âmbito penal, não é permitida aos menores de 18 anos, consoante expressa previsão do art. 228 da Constituição Federal.

Mas esse mesmo art. 228 os sujeita aos ditames da legislação especial, notadamente a Lei 8069/90, Estatuto da Criança e do Adolescente.

Nessa Lei, verifica-se a possibilidade de aplicação de sanção ao menor, mesmo a de reparar o dano (art. 112, II).

Capacidade, nos termos do Código Civil, é a possibilidade de ser titular de direitos e obrigações, a teor de seu art. 1.º. E essa capacidade, chamada de capacidade de gozo, para as pessoas, começa com o nascimento com vida, ou seja, mesmo os menores são capazes de obrigações.

Mas para praticar atos jurídicos meramente lícitos e negócios jurídicos, a capacidade, chamada capacidade de fato, está sujeita aos requisitos dos artigos 3.º e 4.º do Código Civil.

Para os atos ilícitos, já na sistemática do Código Civil de 1916, conforme se percebe em seu art. 156, os relativamente capazes eram igualados aos maiores.

Porém, os absolutamente incapazes não podiam ser responsabilizados, o que levou SILVIO RODRIGUES (1995:305) a apontar a possibilidade de situações injustas quando o causador da ofensa, embora incapaz, fosse detentor de um bom patrimônio, enquanto o lesado fosse pobre.

Tal problema, contudo, foi contornado no novo Código Civil, que prevê em seu art. 928:

Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.

Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

Fica claro, portanto, a possibilidade da responsabilidade do menor e dos demais incapazes em geral.

Assim, se imputabilidade é relação entre a sanção e o responsável, tanto o menor impúbere quanto o louco podem ser considerados imputáveis, respeitadas as limitações estabelecidas pelo art. 928 do Código Civil.

Para HANS KELSEN, essa relação é entre a sanção e a ação, sendo que o indivíduo que praticou esta estaria apenas indiretamente vinculado àquela (2005:134).

2.5.2 APLICAÇÃO TERAPÊUTICA DAS CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS E RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA

Constitui regra geral que, quando a ofensa possuir mais de um autor, todos serão responsáveis. Nesse sentido é a disposição do art. 942 do Código Civil e seu respectivo parágrafo único:

Art. 942. Os bens do responsável pela ofensa ou violação do direito de outrem ficam sujeitos à reparação do dano causado; e, se a ofensa tiver mais de um autor, todos responderão solidariamente pela reparação.

Parágrafo único. São solidariamente responsáveis com os autores os co-autores e as pessoas designadas no art. 932

Já vimos também que, se o causador do dano for um incapaz, incidirá a restrição contida no art. 928 do Código Civil:

Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.

Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

Em se tratando de aplicação terapêutica de células-tronco, os responsáveis pelos danos causados ilicitamente responderão de maneira solidária por força do que prevê o art. 20 da Lei n.º 11105/05:

Art. 20. Sem prejuízo da aplicação das penas previstas nesta Lei, os responsáveis pelos danos ao meio ambiente e a terceiros responderão, solidariamente, por sua indenização ou reparação integral, independentemente da existência de culpa.

(grifamos)

Em razão da solidariedade, os titulares do direito à indenização poderão exigir de qualquer um dos responsáveis ou mesmo de todos a reparação de seus danos, conforme estabelece o art. 275 do Código Civil:

Art. 275. O credor tem direito a exigir e receber de um ou de alguns dos devedores, parcial ou totalmente, a dívida comum; se o pagamento tiver sido parcial, todos os demais devedores continuam obrigados solidariamente pelo resto.

Parágrafo único. Não importará renúncia da solidariedade a propositura de ação pelo credor contra um ou alguns dos devedores.

Aplicando-se a solidariedade, em regra, a dívida deve ser rateada em partes iguais entre os devedores solidários, salvo se houver convenção em sentido diverso, nos termos do art. 283 do Código Civil:

Art. 283. O devedor que satisfez a dívida por inteiro tem direito a exigir de cada um dos co-devedores a sua quota, dividindo-se igualmente por todos a do insolvente, se o houver, presumindo-se iguais, no débito, as partes de todos os co-devedores.

Mas responsabilidade solidária não importa necessariamente que o devedor solidário deva arcar com o ilícito cometido por outrem.

Para esses casos, aplica-se o art. 934 do Código Civil:

Art. 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente seu, absoluta ou relativamente incapaz.

2.6 DANO

Embora exista responsabilidade civil sem dano, para que a sanção abranja o dever de reparar é indispensável sua existência.

O dano é para o ilícito civil o que o resultado é para os ilícitos penais. No direito penal, existem crimes que exigem resultado, chamados crimes materiais, e crimes em que o tipo penal não exige tal elemento para sua consumação, os crimes formais.

No ilícito civil, o dano não é essencial, mas apenas o fenômeno que deflagra o dever de reparar.

Infere-se tal assertiva do que dispõe a regra geral do caput do art. 927, do Código Civil, que abre o título da "Responsabilidade Civil": "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo." (grifamos)

Num primeiro momento, chegamos a pensar que a menção a dano nesse dispositivo seria uma redundância, pois o art. 186 do Código Civil, que define o ato ilícito, também faz menção a dano: "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." (grifou-se)

Ocorre que o art. 187 do Código Civil, que complementa a definição de ato ilícito, nada diz acerca do dano: "Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes."

Verificamos, assim, que enquanto o ato ilícito, nos moldes do art. 186, sempre importará dever de indenizar, pois sempre terá um dano entre seus elementos, o ilícito na modalidade do art. 187 do Código Civil só ensejará o dever de reparar se causar dano, justificando-se, dessa forma, a repetição da expressão "causar dano" prevista no caput do art. 927 do Código Civil.

Mas nem todo dano implica dever de indenizar. Somente quando a lei assim determinar.

Em suma: não há dever de indenizar sem dano, mas há dano sem dever de indenizar.

SÉRGIO CAVALIERI FILHO, a respeito, afirma que "indenização sem dano importaria enriquecimento ilícito" (2003:90).

A iminência ou ameaça de dano, como não poderia deixar de ser, também não geram direito à reparação. Mas se o interesse ameaçado de dano for juridicamente protegido, então haverá para o interessado a correspondente ação de direito material, que poderá utilizá-la de ofício –o que é raro no ordenamento- ou mediante intervenção judicial, consoante garantido pelo art. 5.º, XXXV, da Constituição Federal: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".

Dano e ameaça de dano são chamados por VILSON RODRIGUES ALVES de prejuízo. Para este autor, dano é "prejuízo sofrido" (2001:28).

Dano é a deterioração do patrimônio jurídico do sujeito de direito.

Deterioração é destruição, perecimento, e pode ser total ou parcial. É, em suma, causa de déficit.

Patrimônio jurídico abrange tudo o que pode ser objeto de direito e que seja titularizado pelo sujeito de direito.

Preferimos a expressão patrimônio jurídico a simplesmente "patrimônio", para que não haja confusão com o conceito mais restrito que este termo pode carrear: "conjunto dos bens de uma pessoa, suscetíveis e avaliação pecuniária" (CUNHA, 2003).

Isso porque o dano não necessariamente atingirá um bem.

Os bens são o conjunto de entidades reconhecidas pelo direito como úteis e idôneas a satisfazer interesse juridicamente protegido do sujeito e passíveis de avaliação pecuniária. Para SILVIO RODRIGUES "são coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contêm valor econômico" (1995:110).

Para nós, coisa, num primeiro momento, é conceito que exorbita da esfera da ciência do direito, prestando-se a designar tudo aquilo que existe. Num segundo momento, dentro da esfera jurídica, temos bens, definidos acima, como espécie de coisa. Num terceiro momento, coisas, dentro da esfera jurídica, são espécies de bens.

Tanto é que, na parte geral do Código Civil, estão regulados os bens. E, na parte especial, no Direito das Coisas, temos apenas direitos ligados a bens corpóreos.

Coisa, juridicamente, segundo CLÓVIS BEVILÁQUA (1940:269), é sempre corpórea, material, concreta: "Esta (coisa), no dizer magistral de TEIXEIRA DE FREITAS (Esboço, art. 317), é ‘todo objeto material susceptível de medida e valor’. São os objetos corporaes, segundo preceitua o Código Civil allemão, art. 90."

No mesmo sentido, MARCOS BERNARDES DE MELLO, que também cita PONTES DE MIRANDA (2003:197).

Voltando ao que pode ser lesado, é certo que houve um tempo em que só se admitia ressarcimento por prejuízo aos bens da vítima, conforme lembra SÉRGIO CAVALIERI FILHO (2003:90), mas atualmente o conceito de dano exorbita do patrimônio puro para atingir uma esfera "extrapatrimonial", em que se encontram, por exemplo, os chamados "danos morais", "danos estéticos" e os "danos corporais".

Ocorre que, como é cediço, certos danos extrapatrimoniais acarretam, por vezes, impossibilidade de se retornar ao estado anterior.

Diante disso, o ordenamento criou um crédito patrimonial, um acréscimo aos bens do sujeito de direito, como medida de compensação.

Assim, um dano moral enseja dever de indenizar. Mas a indenização consiste em valor pecuniário, ou seja, um bem.

Notamos que, ao considerar o dano como uma deterioração do patrimônio jurídico, deveremos aceitar como tal os efeitos decorrentes de uma doação, pois o patrimônio do doador diminui.

Como se vê, é possível ao próprio sujeito de direito causar dano ao próprio patrimônio, assim como este pode ser atingido por atos de outrem ou por fatos não humanos (tempestadades etc.).

Mas a redução patrimonial causada pelo próprio titular terá mais relevância para o direito quando o patrimônio estiver comprometido por obrigações. Daí, a figura da fraude contra credores, bem como da fraude à execução etc..

Convém que o aprofundamento desse tópico se dê com a divisão dos danos em patrimoniais e extrapatrimoniais.

2.6.1 DANO PATRIMONIAL

O dano patrimonial é aquele que atinge a esfera dos bens do sujeito de direito.

Quatro artigos do Código Civil resumem quais são os bens:

Art. 79. São bens imóveis o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente.

Art. 80. Consideram-se imóveis para os efeitos legais:

I - os direitos reais sobre imóveis e as ações que os asseguram;

II - o direito à sucessão aberta.

[...]

Art. 82. São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou da destinação econômico-social.

[...]

Art. 83. Consideram-se móveis para os efeitos legais:

I - as energias que tenham valor econômico;

II - os direitos reais sobre objetos móveis e as ações correspondentes;

III - os direitos pessoais de caráter patrimonial e respectivas ações.

Os demais artigos cuidam de classificações sobre esses mesmos bens.

O dano, pelo menos na esfera puramente patrimonial, equivale à expressão "perdas e danos", especificadas no art. 402 do Código Civil: "Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar."

Com isso, se um indivíduo bater culposamente seu veículo em um táxi, fazendo com que o taxista fique sem seu carro enquanto aguarda o conserto, as perdas e danos abrangerão, além dos reparos no veículo, também a remuneração que ele deixou de auferir.

2.6.2 DANO EXTRAPATRIMONIAL

2.6.2.1 PERDAS E DANOS EXTRAPATRIMONIAIS?

O dano extrapatrimonial é aquele que atinge precipuamente os direitos da personalidade do sujeito de direito.

Pode-se dizer que os danos extrapatrimoniais também se desdobram em perdas e danos, ou melhor, que abrangem tanto o que o indivíduo perdeu quanto o que deixou de ganhar? Embora mais difícil de vislumbrar os "lucros cessantes extrapatrimoniais", é possível sua ocorrência. Ora, se é possível perder alguma coisa extrapatrimonial, também é possível deixar de auferi-la.

Não se deve confundir, contudo, lucros cessantes extrapatrimoniais com lucros cessantes patrimoniais decorrentes de danos extrapatrimoniais.

Exemplos de lucros cessantes patrimoniais decorrentes de danos extrapatrimoniais estão nos artigos 949 e 950 do Código Civil:

Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.

Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.

O que se pode cogitar como "lucro cessante extrapatrimonial" é, por exemplo, decorrente da perda de um ente querido. As pessoas que com ele mantinham laços sentimentais, além da perda em si ("danos emergentes"), deixarão de receber a alegria que ele proporcionava, o apoio moral etc..

Quanto mais jovem for a pessoa que falecer, maior será a diferença entre sua idade e a sua expectativa de vida. Seria assim possível afirmar que seria maior o valor dos lucros cessantes? Mas por outro lado, quanto menor for o tempo de vínculo afetivo, não se poderá afirmar que menor será a dor da perda?

Se se reconhecer o direito à reparação dos "lucros cessantes extrapatrimoniais", estes também estarão sujeitos à limitação da norma prevista no art. 403 do Código Civil: "Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual." (grifamos)

2.6.2.2 ESPÉCIES DE DANOS EXTRAPATRIMONIAIS

O dano extrapatrimonial mais conhecido é o moral, ou seja, o ocasionado na psique da pessoa.

O dano moral pode ocorrer isoladamente, quando, a título de exemplo, alguém é atingido em sua honra por uma ofensa verbal.

Pode estar presente juntamente com outros danos sem deles decorrer: O indivíduo A bate seu veículo culposamente no veículo de B e, entendendo estar com a razão, ainda ofende B.

Mas o dano moral também pode estar presente com outros danos e deles decorrer: a moral pode e é normalmente abalada quando a pessoa tem um membro amputado ou quando grande parte de seu patrimônio é reduzido.

Mas dano moral não é gênero que abarca os outros tipos de danos extrapatrimoniais, assim como não é sinônimo de danos extrapatrimoniais, como quer CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2003:548).

Dano moral também não é a única espécie de dano ao lado dos danos patrimoniais (SANTOS, 2001:122).

Em última análise, é espécie de dano extrapatrimonial.

Outro tipo de dano extrapatrimonial que se vislumbra é o estético. Este atinge a imagem corporal da pessoa, notadamente sua beleza. Por exemplo: mutilamento.

É possível que, apesar de não lesar a estética, o organismo ou a saúde fique comprometida: doenças, lesões etc. Pode-se chamar este dano de fisiológico.

Notamos aqui que o dano moral também pode ser considerado como espécie de dano à saúde da pessoa.

Vislumbra-se ainda o dano à imagem, ou seja, à reputação que a pessoa possui no meio em que vive. É o conceito do indivíduo na mente dos outros membros da sociedade. Este ocorre, normalmente, pela exposição indevida da pessoa, por vezes associada a algum fato pejorativo. Por exemplo: expor um inocente na mídia como sendo culpado por um crime.

Muito ligado ao dano à imagem está o dano ao nome. Entre outros casos, ocorre dano ao nome quando este é indevidamente incluído em algum cadastro pejorativo, tal como um rol de inadimplentes.

Sobre o nome e a imagem, há proteção expressa nos seguintes dispositivos do Código Civil:

Art. 17. O nome da pessoa não pode ser empregado por outrem em publicações ou representações que a exponham ao desprezo público, ainda quando não haja intenção difamatória.

Art. 18. Sem autorização, não se pode usar o nome alheio em propaganda comercial.

Art. 19. O pseudônimo adotado para atividades lícitas goza da proteção que se dá ao nome.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

2.6.2.3 PROBLEMAS RELACIONADOS AOS DANOS EXTRAPATRIMONIAIS

Um dano estético pode ser reparado ou amenizado por cirurgias plásticas ou próteses, mas nem sempre.

O dano físico, ou corporal, muitas vezes pode receber tratamento, mas pode não se chegar ao estado anterior.

É, em tese, possível a recuperação da imagem, por exemplo, com a publicação de notícia que contrarie a danosa, mas pode ocorrer que não sejam as mesmas pessoas que recebam esta notícia. Mesmo que todas as pessoas recebam ambas as notícias, a real pode não convencer.

O nome da pessoa pode ser retirado de um cadastro, mas isso não garante que sua fama seja completamente restabelecida.

Todos esses danos podem causar um abalo psíquico na vítima, isto é, um dano moral. Sua reparação sempre repara o dano moral reflexo? Não necessariamente.

A Constituição da República, em seu art. 5.º, assegura a indenização por danos extrapatrimoniais nos seguintes incisos:

V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[...]

X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

Apesar disso, é certo que por vezes o dano extrapatrimonial é irreparável, assim como nem sempre se pode fazer uma reparação completa.

Como solução, entre outros meios de compensação, foi adotada a entrega de pecúnia. É que o dinheiro proporcionaria uma alegria para amenizar a dor.

Porém, essa solução traz diversos problemas.

Tomando, por exemplo, os danos corporais, é indiscutível que a perda de um braço é mais grave que a perda de uma mão. Mas quanto vale um braço? E uma mão?

Costuma-se fixar indenizações diferentes conforme a importância que a parte afetada tem para a pessoa, considerada concretamente. Dito de outra forma, a perna de um empregado do setor administrativo de uma empresa que trabalha sentado o dia inteiro costuma ser considerada de menor valor do que a perna de um famoso jogador de futebol.

Porém, o que deve diferir é o montante do lucro cessante patrimonial.

A perna em si deve ser considerada igual para ambos, pois para essa situação parece-nos aplicável o princípio da isonomia:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Devemos lembrar todavia que a igualdade consiste em tratar os desiguais na medida de suas desigualdades, conforme ensinamentos de ARISTÓTELES (2003:108/9).

CHÄIM PERELMAN (1998:219), a respeito, ensina:

Observemos, a propósito disso, que o fato de seguir uma jurisprudência constante é suficiente para motivar uma sentença, ao passo que a reforma de uma jurisprudência estabelecida deve ser seriamente motivada. Pois, por causa do grande crédito atribuído à regra de justiça, que ordena o tratamento igual para casos essencialmente semelhantes, são necessárias razões imperiosas para motivar uma reforma de jurisprudência.

Uma diferença que deve ser respeitada é aquela em razão da idiossincrasia. Quanto a isso, no exemplo acima, o referido empregado administrativo poderia sofrer mais danos morais do que o jogador de futebol.

Para aferir esses danos, seria necessária uma perícia médica, depoimentos de testemunhas etc., embora todos esses meios possam ser ineficazes.

Ainda que realmente se constate o abalo psíquico, quanto ao dano moral, ou os demais danos extrapatrimoniais, como saber seu valor?

Se se admite ao julgador arbitrar o valor da indenização, corre-se o risco de ofensa à igualdade, pois situações semelhantes podem ser tratadas de modo diverso, consoante se depreende destes julgados:

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE TRÂNSITO. COLISÃO POR TRÁS DURANTE ULTRAPASSAGEM. MORTE DA VÍTIMA. DANOS MATERIAIS E MORAIS. UTILIZAÇÃO DO SALÁRIO MÍNIMO COMO PARÂMETRO. COBERTURA DO SEGURO. ÔNUS DE SUCUMBÊNCIA. [...] Dos danos morais. Sua caracterização dá-se em face do sofrimento das demandantes pela da perda do pai e esposo. A quantificação desta indenização deve estar de acordo com seu caráter compensatório à vítima e educativo ao ofensor, devendo se pautar em alguns critérios como a condição econômica e a culpa deste, bem como a intensidade da dor e a situação sócio-familiar e cultural daquela. Neste contexto, observados os parâmetros adotados por esta Câmara e a parcela de responsabilidade da ré, o valor do dano moral é mantido em 200 salários mínimos. [...] (Apelação Cível Nº 70010035319, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Naele Ochoa Piazzeta, Julgado em 28/04/2005)

EMENTA: ACIDENTE DE TRÂNSITO. ATROPELAMENTO. ESTRADA DO MAR. DANOS MORAIS. [...] 2. Danos Morais. Verba reparatória adequadamente arbitrada na sentença, em 160 salários mínimos, 40 a cada autor, conforme os parâmetros da Câmara, a conseqüência do acidente (morte do pai), o caráter retributivo/punitivo da condenação (autores maiores, com vidas independentes) e as condições econômicas das partes.[...] (Apelação Cível Nº 70010414589, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Orlando Heemann Júnior, Julgado em 14/04/2005)

Pode ocorrer que uma esposa deteste seu marido porque este a agrida constantemente. Embora ela queira fugir de casa ou denunciá-lo, tem medo de ser perseguida e até morta. Caso ele vier a falecer em virtude de uma bala perdida disparada por agente público estatal, caberia à mulher indenização por danos morais? Ou será que ela deveria pagar ao Estado por tê-la livrado da pessoa indesejada?

Não bastasse, se se considerar a indenização pelo seu lado punitivo, estaríamos diante de uma inconstitucionalidade, pois, nos termos do art. 5.º, inciso XXXIX, da Constituição Federal: "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".

Mesmo o aspecto do simples dever de reparar pode afrontar a Constituição. É que, embora ela tenha garantido a indenização por danos extrapatrimoniais, a fixação destes sem lei fere o inciso II do art. 5.º da Constituição Federal: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

Cai-se então em um paradoxo: se se cria uma lei estabelecendo valores para cada tipo de dano, é possível que situações diferentes sejam tratadas da mesma forma; se não há lei, situações idênticas podem receber tratamento diverso.

Esse é um dos problemas do juiz "legislador", que, de certa forma, conquanto possa violar o princípio da separação dos poderes, não negamos tenha como ponto favorável o fato de possibilitar uma solução mais justa, em razão de estar mais próximo dos fatos concretos. Não devemos nos esquecer, todavia, que o que é justo para um não é justo para outro, por mais que cada um acredite possuir bom senso bastante para decidir.

Aliás, essa crença natural dos seres humanos de que possuem condições de julgar é citada por RENÈ DESCARTES (2000:35):

Inexiste no mundo coisa mais bem distribuída que o bom senso, visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito; mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir entre o verdadeiro e o falso, que é justamento o que é denominado bom senso ou razão, é igual em todos os homens;

2.6.3 NEXO DE CAUSALIDADE

Entre os danos e seus fatores existe um elemento conhecido como nexo de causalidade, ou seja, o elo existente entre causa (fatores) e efeito (dano).

É o elemento que permite ligar no mundo fenomênico os danos ocorridos a algum dos fatores previstos na lei.

A importância desse elemento está relacionada à identificação do sujeito passivo da obrigação de indenizar.

Dessa forma, se o dano foi causado por um ato de uma pessoa capaz, então, em regra, a ela caberá o dever de indenizar. Mas se ele estiver a serviço de uma empresa, esta também será responsabilizada. Se foi ocasionado por um animal ou por uma criança, verifica-se quem é o responsável por estes.

O que deve ser analisado nesse tópico são as correntes sobre tal elemento e qual foi adotada no ordenamento jurídico brasileiro para fins de responsabilidade civil.

A primeira teoria é a conhecida como equivalência dos antecedentes, que, segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (1998:78), nasceu nos tribunais belgas por obra do alemão VON BURI para o direito penal, mas foi desenvolvida pela doutrina civilista.

Para esta, todos os fatores que, se eliminados em mente, levariam à inocorrência do dano, fazem parte do nexo de causalidade, pois são "conditio sine qua non", ou seja, condições sem as quais o resultado não existiria.

Criticam tal corrente porque mesmo certos fatos simples poderiam ser relacionados no nexo causal. Assim, num homicídio, poderíamos responsabilizar o fabricante da arma.

Outra tentativa de explicar e tratar o problema da causalidade foi feita pela doutrina francesa. GABRIEL MARTY desenvolveu-a calcada nos ensinamentos do alemão VON KRIES (PEREIRA, 1998:78).

Essa teoria, chamada de doutrina da causalidade adequada, sustenta que somente aquilo que tenha condições de necessariamente causar o dano é que dever ser mantido no nexo causal. O critério para excluir ou incluir circunstâncias nessa cadeia de acontecimentos é o da probabilidade (PEREIRA, 1998:78).

É o julgador que utiliza esse critério levando em consideração o homo medius (Martinho Garcez Neto apud STOCO, 2004:147).

Por isso, para essa corrente, a simples fabricação da arma não poderia ser considerada nexo causal do homicídio no exemplo acima.

O problema é que "causalidade não é certeza" (Malaurie e Aynès apud PEREIRA, 1998:79).

Para SÉRGIO CAVALIERI FILHO, seria a teoria da causalidade adequada a adotada no Código Civil (2003:69).

CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2003:523) indica a existência de uma terceira teoria, a dos danos diretos e imediatos, denominada de teoria da interrupção do nexo causal por Enneccerus, que consistiria em uma conciliação das outras duas teorias:

"A interrupção do nexo causal ocorreria, segundo seu ensinamento [de Enneccerus], toda vez que, devendo impor-se um determinado resultado como normal conseqüência do desenrolar de certos acontecimentos, tal não se verificasse pelo surgimento de uma circunstância outra que, com anterioridade, fosse aquela que acabasse por responder por esse mesmo esperado resultado."

Seria esta, para ele (GONÇALVES, 2003:523), a teoria adotada no Código Civil, citando, para corroborar seu entendimento, o art. 403 deste diploma: "Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual."

Mas uma crítica que não vemos em nenhuma teoria é o fato de que não temos a capacidade de saber como se daria determinado fato se retirada qualquer de suas circunstâncias.

Ora, no exemplo do homicídio, ainda que não houvesse a arma de fogo, nada impediria que a vítima fosse morta por outro meio, assim como também seria possível a vítima ter matado a pessoa que tentara assassiná-la.

Então, como saber o que pode ser ou não incluído no nexo causal?

As três teorias tem suas virtudes, mas é certo que são imperfeitas, uma vez que não conseguiram, até agora, descrever com precisão os fenômenos sociais.

Aliás, as provas que existem até o momento, dão conta de que tal precisão ainda sequer é possível, conforme aponta a teoria do caos (TRUMP, 1998).

Segundo esta teoria, existem certos sistemas que, conquanto aparentemente caóticos, guardam intrinsicamente uma determinada ordem.

Esses sistemas são muito volúveis e todo o seu comportamento está ligado a suas condições iniciais, de modo que uma simples e quase insignificante mudança nestas pode levar a alterações grotescas no decorrer da cadeia causal.

2.7 A INDENIZAÇÃO

O Capítulo II do Título IX do Código Civil, relativo à Responsabilidade Civil é dedicado à indenização.

Como dissemos acima, no tópico 2.6.2.3, a indenização não necessariamente representa uma panacéia, uma efetiva reparação.

Em se tratando de danos morais, por representar uma vantagem, acredita-se que a alegria que decorreria da indenização traria uma compensação para a dor sofrida (GONÇALVES, 2003:553).

Apesar dos problemas que levantamos acerca dos danos extrapatrimoniais, o Código Civil admitiu expressamente a possibilidade de entrega de pecúnia como forma de reparação, consoante se nota no art. 947: "Se o devedor não puder cumprir a prestação na espécie ajustada, substituir-se-á pelo seu valor, em moeda corrente."

Da mesma forma, no parágrafo único do art. 953:

Art. 953. A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido.

Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, eqüitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso. (grifamos)

No art. 944, caput, está positivado o princípio da proporcionalidade, ou seja, quanto maior ou menor o dano, maior ou menor a indenização respectivamente: "Art. 944. A indenização mede-se pela extensão do dano."

Ao lado do dano, todavia, deverá ser aferida a culpa do causador do dano, bem como a culpa da vítima, como critérios de dosagem da indenização, consoante o disposto no parágrafo único do art. 944 e no caput do art. 945:

Art. 944[...]

Parágrafo único. Se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, eqüitativamente, a indenização.

Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.

Porém, o ônus de provar a culpa competirá a quem aproveite, ou seja, ao responsável, que suportará a sanção, embora, estando nos autos essa prova, mesmo que o interessado não requeira, poderá o juiz, de ofício, reduzir a indenização.

É de extrema importância atermo-nos ao fato de que, mesmo em se tratando de responsabilidade objetiva, a culpa terá relevância para a fixação da indenização.

Com efeito, embora na responsabilidade objetiva seja irrelevante sua existência para ensejar a sanção, a culpa terá pertinência no que tange ao valor da indenização.

CARLOS ROBERTO GONÇALVES também colaciona diversos julgados salientando que a culpa da vítima interfere no valor da indenização (2003:202/3).

Quanto à pertinência da culpa da vítima, tratando de responsabilidade objetiva do Estado, é pacífica a jurisprudência do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:

EMENTA: - Recurso extraordinário. Indenização. Responsabilidade objetiva do Estado. 2. Acórdão que confirmou sentença de improcedência da ação, determinando que somente se admite o direito a indenização se ficar provada a culpa subjetiva do agente, e não a objetiva. 3. Alegação de ofensa ao art. 107, da EC n.º 01/69, atual art. 37, § 6º, da CF/88. 4. Aresto que situou a controvérsia no âmbito da responsabilidade subjetiva, não vendo configurado erro médico ou imperícia do profissional que praticou o ato cirúrgico. 5. Precedentes da Corte ao assentarem que "I - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, ocorre diante dos seguintes requisitos: a) do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a ação administrativa. II - Essa responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, admite pesquisa em torno da culpa da vítima, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a responsabilidade da pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público." RE n.º 178.086-RJ. 6. Inexiste, na espécie, qualquer elemento a indicar tenha a vítima concorrido para o evento danoso. 7. Recurso conhecido e provido para julgar procedente a ação.

(2.ª Turma, RE 217389/SP, Relator Min. NÉRI DA SILVEIRA, j. 02/04/2002, v.u., DJ 24-05-2002, p. 69).

Por também se aplicar em geral às relações civil, convêm lembrar os ensinamentos dos administrativistas sobre a culpa da vítima.

Nesse passo, ensina ODETE MEDAUAR (1998:391):

Outra causa situa-se na chamada culpa da vítima, exclusiva ou concorrente; nesse caso, a conduta da vítima contribuiu para o dano que a mesma sofreu; se a vítima teve participação total no evento danoso, a Administração se exime completamente; se dano decorreu simultaneamente de conduta da vítima e da Adminsitração, esta responde parcialmente. Por exemplo: vítima que dirige veículo embriagada, ultrapassa sinal vermelho e abalroa veículo oficial; vítima que desatende a placa de advertência de perigo em praia, adentra ao mar e se afoga.

O que deve ficar claro é que, dependendo do grau da culpa, poderá ficar evidenciado que não existe nexo causal entre o dano e seu fator, conforme veremos no tópico 2.9 infra.

De outro lado, se o nexo causal existir, a relevância da culpa da vítima estará adstrita ao valor da indenização.

Por fim, conforme a relação jurídica que esteja em jogo, poderá haver certos aspectos relevantes adicionais a serem considerados para a fixação da indenização.

Se houver relação contratual para aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias, eventuais danos podem surgir não só pelo descumprimento do contrato, mas também poderão ser completamente extracontratuais, de modo que a indenização será fixada levando em conta ambos.

Além disso, se se tratar de relação de consumo, o paciente que pagou um tratamento com células-tronco embrionárias e recebeu um serviço com um vício que o torne impróprio para o consumo, poderá escolher entre as opções do art. 20 do Código de Defesa do Consumidorl:

Art. 20. O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:

I - a reexecução dos serviços, sem custo adicional e quando cabível;

II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos;

III - o abatimento proporcional do preço.

Quanto à reexecução do serviço, o §1.º desse artigo 20 permite que o fornecedor, por sua conta e risco, confie à terceiro devidamente capacitados.

Serviços são considerados impróprios quando "se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade", nos termos do § 2.º do art. 20 do Código de Defesa do Consumidorl.

Obviamente que a escolha entre uma das opções do art. 20 do Código de Defesa do Consumidorl não retirará a responsabilidade pelos eventuais danos causados, aplicando-se, para estes o art. 14 do Código de Defesa do Consumidorl, relativo aos danos por fato do serviço.

2.8 TITULARES DO DIREITO DE INDENIZAÇÃO

Ocorrido um ilícito cuja sanção seja o dever de indenizar, nasce para o titular do direito violado a pretensão e a respectiva exceção.

A respeito, esclarecem os artigos 189 e 190 do Código Civil:

Art. 189. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

Art. 190. A exceção prescreve no mesmo prazo em que a pretensão.

Pretensão é "posição subjetiva de poder exigir de outrem alguma prestação", consoante define SÉRGIO SÉRVULO DA CUNHA (2003:196), com base em Pontes de Miranda. Exceção é "meio prejudicial de defesa, que não se opõe ao direito do autor, mas à eficácia de seu direito, pretensão ou ação" (CUNHA, 2003:116)

Se se considera pela ótica do dano, o titular da pretensão será aquele que teve seu patrimônio jurídico deteriorado, ou seja, que sofreu danos patrimoniais e/ou extrapatrimoniais, conforme analisamos no tópico 2.6 supra.

Esse é o enfoque adotado no art. 927 do Código Civil: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo."

CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2003:536), afirma que "compete à vítima da lesão pessoal ou patrimonial o direito de pleitear a indenização".

Esse direito, caso a vítima venha a falecer, transmite-se com a herança, a teor do que prescreve o art. 943 do Código Civil: "Art. 943. O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança."

Esse dispositivo espelha o previsto no art. 5.º, XLV, da Constituição: "nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido".

Também se mostra possível, em princípio, a transmissão entre vivos do direito à indenização. Isso porque, tratando-se de bens patrimoniais, estes são em regra disponíveis. Nesse caso, a legitimidade para pleitear a satisfação do direito também é transmitida.

Com relação à pesquisa e aplicação de células-tronco embrionárias, vislumbramos maiores problemas no que tange a eventuais danos extrapatrimoniais.

Caso um embrião in vitro seja danificado na pesquisa e aplicação das células-tronco embrionárias, quem terá legitimidade para pleitear indenização?

É certo que essas atividades, em regra, implicam destruição do embrião de onde são retiradas as células-tronco embrionárias, conforme vimos no tópico 1.5 supra (CARVALHO, 2001).

Tendo em conta que a Lei 11.105/05 autorizou, em determinados casos, a utilização de embriões, devemos partir da premissa que eles não são abarcados pelo direito à vida, pois, caso contrário, estaríamos num âmbito contra o direito.

Ainda que questionável ou passível de críticas, os embriões a que se refere o art. 5.º da Lei de Biossegurança foram considerados como coisas (material biológico), e é com essa premissa que estamos tecendo as considerações no presente trabalho.

Tais considerações, todavia, podem mudar após o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3510 pelo SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.

Tratando-se de um bem, caso seja danificado, seu proprietário é que terá o direito à indenização.

Em regra, são proprietários do embrião os seus genitores.

Mas pode ocorrer que homens e mulheres tenham doado material para pesquisa (óvulos e sêmem), hipóteses em que seria o laboratório o proprietário.

O que importa é que, tratado o embrião como coisa, sua destruição, se importar danos morais, deverá ser apurado como perda de um objeto e não como perda de um ente querido.

Diversa será a hipótese em que o tratamento com células-tronco embrionárias for realizado em um embrião já implantado ou que será implantado.

Nesse caso, ele, como ser humano, terá proteção jurídica e, nascendo com vida, poderá ingressar em juízo, representado por seus pais, pleiteando reparação de eventuais danos que tenha sofrido ilicitamente (MEIRELLES, 2004:168).

Quanto a danos morais, estes nem sempre atingirão apenas a vítima direta ou familiares mais próximos. Os laços de amizade e de afeto não dependem da relação de consangüinidade. O que importa, em suma, é que quem sofre o dano merece reparação.

Nada obstante, acreditamos que será mais difícil convencer o Judiciário de que alguém que não tenha vínculo de parentesco ou relação amorosa possa ter sofrido dano moral em razão de ofensa praticada contra a pessoa com quem se mantém esse laço.

2.9 INEFICÁCIA DA RESPONSABILIDADE

Pretendemos neste tópico tecer algumas considerações sobre o que a doutrina costuma denominar de excludentes de responsabilidade.

O nome "excludente" contudo, pressupõe que tenha havido responsabilidade.

Porém, se responsabilidade sequer configurou-se, não nos parece correto admitir que ela tenha sido excluída.

Assim, pareceu-nos melhor chamar de "ineficácia", porque a responsabilidade em si só não é configurada quando a própria lei assim determine (CAVALIERI, 2003:503).

Quando não ocorrer o ilícito, ou seja, se não violada a norma, não se aplica a sanção. Embora haja responsabilidade abstrata, ela não se concretiza.

A hipótese prevista na norma abrange todos os elementos necessários para ensejar a sanção. Assim, em casos de responsabilidade subjetiva, a norma exigirá a ocorrência de culpa. Na maioria das ocasiões, o dano será imprescindível. A legítima defesa e o estado de necessidade poderão eventualmente descaracterizar o ilícito e, por conseguinte, impedir a responsabilização. Da mesma forma o exercício regular de um direito (PEREIRA, 1998:295/7) ou o estrito cumprimento do dever legal (GONÇALVES, 2003:714).

Como fenômenos jurídicos aptos a afastar os efeitos da responsabilidade, podemos citar como exemplos a prescrição (GONÇALVES, 2003:752), decadência, a renúncia do direito pela vítima (PEREIRA, 1998:306), uma vez que impedem a aplicação da sanção.

Assim, um dano ilícito causado pela aplicação de células-tronco embrionárias faz nascer a pretensão, que se extingue em 3 (três) anos, nos termos do inciso V do § 3.º do art. 206 do Código Civil. Caso a relação jurídica seja de consumo, esse prazo será de cinco anos, nos termos do art. 27 do Código de Defesa do Consumidorl.

O caso fortuito e a força maior são freqüentemente lembrados como causas que afastam a responsabilidade.

De acordo com CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (1998:302):

A tese central desta escusativa está em que, se a obrigação de ressarcimento não é causada pelo fato do agente mas em decorrência de acontecimento que escapa ao seu poder, por se filiar a um fator estranho, ocorre a isenção da própria obrigação de compor as perdas e danos.

Segundo aponta esse autor, o caso fortuito seria evento derivado da natureza, ao passo que a força maior seria decorrente de ação humana (1998:303). Para CARLOS ROBERTO GONÇALVES, contudo, seria exatamente o contrário (2003:736). Essa controvérsia, de qualquer maneira, é de somenos importância.

O que merece relevo é verificar, no caso concreto, se um fato pode ser tido por caso fortuito ou força maior. O parágrafo único do art. 393 do Código Civil oferece um esclarecimento:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Dessa disposição, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA extrai como elementos indispensáveis a necessariedade e a inevitabilidade (1998:304).

CARLOS ROBERTO GONÇALVES aponta que a doutrina e a jurisprudência, tomando por parâmetro os ensinamentos de Agostinho Alvim, estariam fazendo distinção "entre os fortuitos internos (ligados à pessoa, ou à coisa, ou à empresa do agente) e fortuito externo (força maior, ou Act of God dos ingleses)" para decidir que somente este afastaria a responsabilidade (2003:737).

Deverá ser apurado no caso concreto a relevância do caso fortuito ou da força maior em algum dano ligado à aplicação terapêutica de células-tronco embrionárias. Eventualmente, poderão servir apenas para atenuar a sanção.

A culpa exclusiva da vítima, na prática, afasta a responsabilidade. Isso porque, havendo culpa exclusiva da vítima, esta é a verdadeira causadora do dano, de modo que não há nexo causal deste com o responsável.

Isso é pacífico no direito administrativo, esclarecendo MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO (2001:519) que:

Quando houver culpa da vítima, há que se distinguir se é sua culpa exclusiva ou concorrente com a do Poder Público; no primeiro caso, o Estado não responde; no segundo, atenua-se a sua responsabilidade, que se reparte com a da vítima (RTJ 55/50, RT 447/82 e 518/99).

Um outro fato que é indicado para "afastar" a responsabilidade seria a existência de cláusula de não indenizar (PEREIRA, 1998:305; GONÇALVES, 2003:744).

Essa cláusula, contudo, segundo CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA (1998:305), só é aplicável no âmbito da responsabilidade contratual, e mesmo assim com certas restrições.

Também, no mesmo sentido, SÉRGIO CAVALIERI FILHO (2003:504/5), para quem "admitir a cláusula de não indenizar na responsabilidade delitual seria, pois, estimular a negligência, a imprudência, a imperícia ou, memso, o dolo, enfraquecendo o dever de cautela que a lei impõe na vida de relação, e nisso contraria o interesse de toda a sociedade."

Conforme o ilícito corresponda à violação de uma cláusula contratual ou de uma norma prevista na legislação, os autores costumam classificar a responsabilidade entre contratual e extracontratual (CAVALIERI, 2003:38;GONÇALVES,2003:25/9).

Embora restrita ao âmbito contratual, se a aplicação terapêutica das células-tronco decorrer de uma relação de consumo, estará vedada a aplicação daquela cláusula, diante dos que dispõe o Código de Defesa do Consumidor:

Art. 24. A garantia legal de adequação do produto ou serviço independe de termo expresso, vedada a exoneração contratual do fornecedor.

Art. 25. É vedada a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar prevista nesta e nas seções anteriores.

[...]

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:

[...]

I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis;

Mesmo que se alegue que a cláusula de não indenizar seria permitida em razão do princípio da autonomia da vontade, isso não prevalecerá em face de disposições de ordem pública, como são as do Código de Defesa do Consumidor, nos termos de seu art. 1.º: "O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias." (GONÇALVES, 2003:746).

Conquanto aberto o conceito de ordem pública, SÉRGIO CAVALIERI FILHO (2003:506) apresenta traços importantes:

Questão de ordem pública é, pois, a que envolve interesse indisponível, um interesse geral, ligado a valores de maior relevância, vinculado aos fins sociais e às exigências do bem comum. É a que alcança valores mais relevantes e gerais da sociedade; não se circunscrevendo ao simples interesse dos contratantes. Enfim, haverá questão de ordem pública sempre que a aplicação do Direito objetivo não pode ficar circunscrita às questões levantadas pelas partes.

Restaria, assim, na relação de consumo, apenas a possibilidade de o prestador do serviço utilizar as excludentes do art. 14, §3.º, do Código de Defesa do Consumidorl (CAVALIERI, 2003:384).

Tendo em vista as restrições à cláusula de não indenizar, CARLOS ROBERTO GONÇALVES (2003:746/7) elenca os seguintes requisitos para sua validade: a) bilateralidade de consentimento; b) não-colisão com preceito de ordem pública; c) igualdade de posição das partes; d) inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante; e e) ausência da intenção de afastar obrigação inerente à função.

Em suma, essa cláusula não terá validade quando se tratar de atividades com células-tronco embrionárias numa relação de consumo.

Apesar disso, inferimos que no caso concreto importará mais do que a cláusula de não indenizar o fato de o paciente ter sido plenamente informado dos riscos do tratamento e ter manifestado seu consentimento.

Daí, teremos a observância do princípio da informação previsto no art. 4.º, IV do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

[...]

IV - educação e informação de fornecedores e consumidores, quanto aos seus direitos e deveres, com vistas à melhoria do mercado de consumo;

Com isso, o paciente, na relação de consumo, terá condições de saber previamente dos riscos inerentes à terapia a que irá se submeter.

E o corpo humano, no nosso ordenamento, é relativamente disponível, mesmo em vida, como pode ser verificado na Lei n.º 9434/97, que em seu art. 1.º dispõe: "Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei."

Segundo essa Lei, as operações somente podem ser feitas por equipes médico-cirúrgicas previamente autorizadas pelo órgão gestor nacional do SUS, a teor do art. 2.º dessa lei. Sobre a disposição do próprio corpo vivo, é expresso o art. 9.º, caput:

Art. 9º É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4º deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea.

Não é qualquer parte do corpo que pode ser transplantanda, de acordo com o § 3.º do art. 9.º:

§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.

Uma interpretação sistemática do ordenamento nos leva a crer que, se até mesmo para outrem pode o ser humano dispor de seu corpo, quanto mais na hipótese em que não se trata efetivamente de disposição, mas de risco de seu corpo sofrer danos.

O transplante é dano certo, embora suportável. O tratamento com células-tronco embrionárias não necessariamente implicará dano certo.

E o risco está associado à esperança de cura ou melhora do próprio corpo.

Tudo isso nos leva a dessumir uma total compatibilidade com a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Rederativa do Brasil, nos exatos termos do inciso III do art. 1.º da Constituição.

O risco que existe para alcançar os desejos da pessoa na melhora de sua saúde retira a ilicitude do ato médico que não venha a trazer os resultados esperados, quando o profissional não se afastar das normas de conduta de seu ofício.

Justificar-se-ia uma analogia com o estado de necessidade, em que se permite a lesão a um bem para salvar um outro bem.

Também devemos ter em mente a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, aplicável aos contratos.

No Código de Defesa do Consumidorl, por exemplo, dispõe o art. 4º, III:

Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:

[...]

III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores;

Para os contratos em geral, dispõem os artigos 113 e 422 do Código Civil:

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

[...]

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

De acordo com esse princípio, parece-nos claro que, se o paciente for plenamente informado e quiser receber um tratamento com células-tronco embrionárias, assumindo os riscos daí advindos, ainda que não seja válida a cláusula de não indenizar, esta norma aplicável nas relações de consumo deverá ser interpretada juntamente com o princípio do equilíbrio e da boa-fé destas mesmas relações.

Daí, poderá ter relevância o fato de os procedimentos médicos terem seguido todas as normas de conduta, bem como se foram empregados todos os instrumentos necessários, em suma, se a obrigação contratual foi cumprida adequadamente, lembrando que esta é de meio.

Enfim, a indenização poderá ser graduada ou até excluída, não porque o consumidor-paciente aceitou essa exclusão, mesmo porque o consentimento é pressuposto do tratamento e a cláusula de não-indenizar é nula, mas porque o caso concreto nos leva a graduar o valor da reparação.

Por fim, os autores mencionam que a iatrogenia, em certos casos, não ensejaria dever de indenizar (GONÇALVES, 2003:366; STOCO, 2004:561).

Iatrogenia é "alteração patológica" causada ao paciente oriundo de "tratamento de qualquer tipo" (STOCO, 2004:561), podendo ser lícita ou ilícita.

Para RUI STOCO (2004:562/4), será lícita e, por conseguinte, não haverá responsabilização quando: a) decorrer do exercício regular de direito, pois o que é direito não pode ser ilícito; b) for conseqüência de condições do paciente, desde que este consinta com a prática; c) for conseqüência de condições do paciente, se este omiti-las; d) houver erro de técnica ou profissional.

Merece ser destacada ainda a diferença entre erro profissional e a culpa.

Isso porque, embora a responsabilidade em caso de pesquisas e aplicação de células-tronco embrionárias seja objetiva, ou seja, conquanto não se perquira sobre a existência de culpa, pode-se levantar a ocorrência de erro profissional.

O erro profissional é "o que resulta da incerteza ou da perfeição da arte e não da negligência ou incapacidade de quem a exercita, salvo se se tratar de um erro grosseiro" (STOCO, 2004:539). É o "que advém da incerteza da arte médica, sendo ainda objeto de controvérsias científicas" (GONÇALVES, 2003:365).

RUI STOCO, por todos, esclarece que ocorre "erro profissional (erro de técnica) quando a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta" (2004:564). Por outro lado, há "imperícia (erro médico) quando a técnica é correta e adequada, mas a conduta ou atuação do médico é incorreta ou desastrosa" (2004:564).

A partir dessa distinção, arremata o autor (2004:564):

Diante desse escorço podemos fixar e estabelecer que o erro profissional não pode ser objeto de valoração pelo Juiz, nem pode ser considerado como hipótese de imperícia, imprudência ou negligência.

E, como corolário desse escorço, pode-se afirmar que o resultado iatrogênico, decorrente da técnica empregada ou do estado da ciência, não pode ser considerado ilícito.

Sintetizando, apesar de a responsabilidade ser objetiva na aplicação terapêutica de células-tronco e de ser vedada a cláusula de não-indenizar nas relações de consumo, o caso concreto poderá demonstrar a possibilidade de um dano lícito.

O aplicador da lei deverá se ater "aos fins sociais a que ela se dirige e às exigência do bem comum", conforme art. 5.º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Deverá sopesar não só o ordenamento positivo, mas também as exigências de justiça, consoante lição de CHÄIM PERELMAN (1998:238):

O direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência, uma de ordem sistemática, a elaboração de uma ordem jurídica coerente, a outra, de ordem pragmática, a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque conformes ao que lhe parece justo e razoável.

Caso os riscos inerentes do tratamento impusessem a obrigação incondicional de indenizar, os doentes simplesmente deixariam de receber qualquer atendimento médico.

De outro lado, não negamos que admitir a total ineficácia da responsabilidade em caso de tratamento médico poderia representar carta branca à negligência.

É a eficácia do direito agindo como instrumento de orientação do comportamento humano.

Somente o meio-termo aplicado corretamente pelo julgador é que conduzirá a sociedade no caminho do justo.

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Sobre o autor
Leandro Sarai

Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Advogado Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SARAI, Leandro. Aplicação terapêutica das células-tronco embrionárias: responsabilidade civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2791, 21 fev. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18540. Acesso em: 23 abr. 2024.

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