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O dilema da Justiça Natural.

A crítica de Eric Voegelin à dogmatização do Direito Natural

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06/03/2011 às 23:10
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4 DE VOLTA ÀS ORIGENS: O RETORNO À ARISTÓTELES

Se já não se sabe quais as experiências engendraram o símbolo do justo por natureza é necessário remontar à primeira vez que justiça e natureza apareceram juntas e relacionadas, num desenvolvimento teórico mais amplo. Isto ocorreu com o physei dikaion de Aristóteles, e é para Aristóteles que Voegelin dirigirá suas atenções.

Como o primeiro a utilizar o símbolo do justo por natureza, Aristóteles deve ter tido uma base experiencial para articulá-lo que seus sucessores talvez tenham tido de uma forma atenuada, ou mesmo não tiveram de forma alguma (NORDQUEST, 1999). O estagirita é inclusive tido por alguns como o fundador da doutrina do direito natural (VILLEY, 2005), o que, diante de tudo quanto já foi exposto, não pode ser tomado como verdadeiro sem uma série de reservas. Aristóteles de fato não desenvolveu nenhuma doutrina do direito natural; mais: doutrinas desta espécie, e isso já ficou claro, são deformações do símbolo original do justo por natureza. Voegelin (2004) dirá que procurar em Aristóteles uma doutrina do direito natural pressupõe o topos doutrinário de que se revestiu a investigação do assunto a partir dos estoicos, e "não há razão para que se comece com este topos". Aristóteles deve ser entendido em seus próprios termos, e não a partir de deformações posteriores. Devemos perscrutar, então, as origens e significados do physei dikaion.

4.1 NAS PROFUNDEZAS DO PHYESI DIKAION

A fama de Aristóteles como o pai de uma teoria do direito natural funda-se, principalmente, em três textos: a Retórica, a Política, e o mais famoso, o livro V da Ética a Nicômaco.

Logo no primeiro livro da Política, há a mui conhecida e citada passagem em que Aristóteles diz que a polis é uma associação que está de acordo com a natureza e que o ser humano é, por natureza, um zoon politikon, um animal político (Pol.,I 1, 1253a). Daí dizer-se que um direito que transcenda necessariamente à comunidade política não pode ser considerado natural (STRAUSS, 2009). O homem é naturalmente político, a polis existe e está de acordo com a natureza do ser humano: a justiça é, portanto, um politikon, e está intimamente associada com a polis, a comunidade (koinomia) política, a manifestação de uma ordem essencialmente justa fundada na homonoia, a amizade política.

Sobre o que se exerce a justiça, em que domínio ela se empenha para dar a cada um o seu? (...) o justo é (...) o equilíbrio realizado, numa polis, entre os diversos cidadãos que nela se reúnem, se associam. Só existe dikaion (...) no sentido mais próprio da palavra, nas relações entre cidadãos (VILLEY, 2005, pp. 44-45).

Este justo que é político poderá ser ou natural ou convencional, o último dizendo respeito a coisas que poderiam ser ordenadas de uma maneira ou de outra por referir-se a matérias essencialmente indiferentes (adiaphora), como regras de trânsito (VOEGELIN, 2009a); já o justo político que é physicon, natural, teria, supostamente, a mesma validade em todos os lugares, independente do que pensam os homens.

Mas era uma doxa corrente no tempo de Aristóteles – e continua sendo no nosso – que o justo é sempre convencional, porquanto mutável em todas as partes. Quem nunca ouviu que a justiça é relativa, que o que é justo hoje pode não ser amanhã ou não ter sido ontem? Tudo isso é muito usado para negar a existência de uma justiça que seja natural, pois "ao passo que o que é imutável por natureza é o mesmo sempre e em toda a parte, (...) o que é justo parece ser, na verdade, sujeito a mudanças" (VOEGELIN, 2009a, p. 183).

O problema se coloca justamente no ponto do caráter natural do physei dikaion, pois natural seria a chama do fogo que arde da mesma maneira aqui e na Pérsia, e não a justiça, mutável como é. Aristóteles, afinal, não nega que o justo por natureza seja mutável. Ele de fato o é – pelo menos sob um certo aspecto. Mas a sua mutabilidade (kineton) não lhe retira o caráter de physikon.

Chegamos ao ponto, então, em que o sujeito conhecido como fundador das doutrinas do direito natural - justamente o direito natural que a opinião corrente define como conjunto de leis eternas e imutáveis - afirma que o justo por natureza é kineton, mutável. Ele não opõe à mutabilidade de um direito positivo convencional a imutabilidade de um direito conforme a natureza. Isso pode nos parecer estranho, mas se recuperarmos o significado original do termo physis, tal qual utilizado por Aristóteles, a confusão transformar-se-á em clareza.

Vários autores debruçaram-se sobre a questão da mutabilidade do physei dikaion aristotélico. Hans-Georg Gadamer (2004) afirma que Aristóteles reconhece que existam leis eternas imutáveis, mas elas só são válidas para os Deuses, enquanto entre homens não só as leis estatuídas como as naturais são mutáveis. Esta mutabilidade decorreria do fato de que a natureza dá ao homem uma certa margem de ação, Gadamer chama area for free play: a mão direita é, por natureza, mais forte que esquerda (é o exemplo de Aristóteles), mas nada impede que, treinando a última, tornemos ambas as mãos igualmente fortes, e isto é absolutamente natural. Gadamer, assim como Voegelin, afirma que a ideia de uma justiça natural tem apenas uma função crítica, e nenhum uso dogmático pode ser feito dela. Leo Strauss (2009), por sua vez, dirá que Aristóteles, ao falar de physei dikaion, refere-se não a proposições gerais, mas a decisões humanas concretas. As ações humanas, no entanto, são sempre individuais e únicas; portanto, o direito natural seria sempre mutável, já que as ações humanas assim o são.

Hans Kelsen, em debate com Eric Voegelin, diz que "tão logo alguém assuma que o direito natural é mutável, ele desistiu da ideia de direito natural" (VOEGELIN, 2004, p. 115). Mas o mestre positivista parece não levar em conta as nuances de significado do termo natural, que as posições de Gadamer e Strauss revelaram.

Eric Voegelin levará esta questão do kineton do physei dikaion um passo além; a sua análise é radicalmente nova e densa. Para ele não é suficiente afirmar que as situações humanas concretas são diversas ou que a natureza dá aos homens uma área de free play. O que de fato importa são as experiências mesmas da tensão entre mutabilidade e imutabilidade, da abertura para o movimento do ser, por isso a sua análise não é "primariamente um exercício de ética ou filosofia do direito, como é o caso da maior parte dos comentadores de Aristóteles. Ao contrário, Voegelin vai a Aristóteles e seus textos com o horizonte de uma filosofia da consciência" (SYSE, 2004).

4.2 TENSÃO, MUTABILIDADE E HUMANIDADE REPRESENTATIVA

O caráter imutável que alguns tentam atribuir ao physei dikaion é decorrência, principalmente, de uma suposta oposição deste ao direito positivo, este sim mutável. Mas Eric Voegelin percebeu que em Aristóteles não há oposição entre lei positiva e lei natural. Esta oposição tornou-se um topos corrente graças aos sofistas a que Platão e o próprio Aristóteles se opunham. Na verdade, dada a predominância do politikon conforme mostrado acima, "nenhuma lei natural pode ser concebida que confronte a lei positiva mutável como uma norma imutável e eterna, universalmente válida para todos os homens e sociedades" (VOEGELIN, 2009a, p. 182). Que mesmo sustentando esta posição continue Aristóteles sendo visto como pai das doutrinas do direito natural é um mistério. Para o estagirita "o justo da polis não é lei positiva no sentido moderno, mas lei material, somente dentro da qual surge a tensão entre physei dikaion e um descarrilamento possível para a legislação pelo despotismo humano arbitrário" (VOEGELIN, 2009a, idem.). Opõe-se não lei positiva mutável e lei natural imutável, mas sim lei cujo conteúdo é physei e lei cujo conteúdo é simplesmente produto da hybris humana, daí Aristóteles afirmar que "a função do governante é ser o guardião da justiça" (Nic. Eth. 1134b.1), ou seja, não se deixar guiar pelos impulsos da violência e ambição.

As dificuldades para a compreensão do caráter de kineton do justo por natureza resolvem-se se se levar em conta que ao termo physis são dados três significados no contexto do physei dikaion: um físico, outro divino e um terceiro, humano (VOEGELIN, 2009a). Em Ética a Nicômaco, 1135a, Aristóteles supostamente opõe entre regras que são ordenadas pela natureza e regras ordenadas pelos homens, dizendo que estas últimas não são as mesmas em todos os lugares: as constituições e regimes políticos não são os mesmos, já que "em cada lugar há apenas uma forma de governo que é natural". Voegelin percebe, no entanto, que não há nenhuma oposição: o que é justo devido à ação humana deve ser entendido também como natural, mas natural no terceiro sentido, e o que é imutável o é por ser natural no primeiro sentido (divino). Assim o physei dikaion "é o que é justo por natureza em sua tensão entre a substância divina imutável e a mutabilidade humana condicionada existencialmente" (VOEGELIN, 2009a, p.184, grifos nossos). A oposição entre imutabilidade e mutabilidade é, na verdade, uma tensão da qual emerge o justo por natureza.

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O que é justo por natureza não é dado como um objeto que se entregaria, ele mesmo, de uma vez por todas, à afirmação em proposições corretas. Ao contrário, tem seu modo de ser na experiência concreta do homem do que é justo, que é imutável e em todo lugar o mesmo, e, no entanto, em sua realização, de novo mutável e em toda a parte diferente. O que temos aqui é uma tensão existencial que não pode ser resolvida teoreticamente, mas apenas na prática do homem que a experimenta." (VOEGELIN, 2009a., p. 186, grifos nossos).

Assim, o que é de fato permanente no physei dikaion não é a sua incorporação concreta numa lei da polis, mas a sintonia com o plano transcendente que produz a lei como uma resposta ao dever em sentido ontológico (VOEGELIN, 1998) e é, em verdade, o coração da lei (NORDQUEST, 1999). É neste sentido que Voegelin (1998) irá dizer que o direito natural só poderá se desenvolver onde o homem tenha se diferenciado suficientemente a partir das pressões das experiências de transcendência.

O physei dikaion é, portanto, mutável porque se realiza na experiência concreta do homem que está aberto ao ser divino transcendente, que tem uma "alma aberta" no sentido de Henri Bergson. E ao significado de mutabilidade do kineton deve-se acrescentar um outro: o de estar sendo movido pela causa de todo o movimento, pelo primeiro motor imóvel, enfim, por Deus. A ação justa é o produto de um movimento do ser iniciado no plano transcendente, e este movimento só pode ser experienciado por almas abertas. Kineton é, assim, tanto mutabilidade quanto movimento: a mutabilidade do próprio ser humano; o movimento do ser que, através de almas abertas, conclui-se na ação humana concreta.

A lei positiva da polis é physei quando resultado desta tensão de uma "alma aberta" que experencia a ordem do ser, e é a consciência humana o locus onde esta tensão é experimentada. Aristóteles chamará noûs o fator direcional presente nesta tensão da consciência para o fundamento, de onde Voegelin tira o termo experiência noética como a experiência de que o ser humano não tem o seu fundamento em si mesmo. Não se trata da experiência de um algo, mas da abertura de seu ser para o questionamento e conhecimento do fundamento do ser. O noûs é o lugar onde o fundamento humano da ordem e o fundamento do ser estão em harmonia (VOEGELIN, 2009).

O justo por natureza não é, assim, um objeto, um algo que pudesse ser possuído como verdade última. Ele tem seu modo de ser na própria experiência humana concreta do que é justo tal qual experienciada numa consciência em sintonia com o fundamento do ser, de onde emerge a tensão entre a imutabilidade divina e a mutabilidade humana condicionada existencialmente. "O que repousa no coração do justo por natureza é a substância divina da qual resulta uma sensibilidade da alma para a injustiça no caso concreto" (NORDQUEST, 1999).

Voegelin (2004) usa, então, o termo humanidade representativa para designar estes seres humanos abertos para o fundamento transcendente do ser. São eles, os seres humanos representativos, a medida da justiça, a medida de humanidade no sentido aristotélico. O estagirita desenvolverá essa ideia através do conceito de spoudaios, o homem maduro, que quer ser o que deve ser de acordo com sua própria natureza. É por isso que Voegelin (1998) dirá, em outro ponto de sua obra, que o direito natural justifica-se teoricamente na medida em que traduz os discernimentos obtidos por uma teoria da natureza humana na linguagem de fins obrigatórios. Estes discernimentos são verdadeiros porque obtidos pela consciência de um ser humano representativo no sentido de Aristóteles, porque obtidos por um ser humano aberto ao fundamento do ser e à tensão entre "a substância divina imutável e a mutabilidade humana condicionada existencialmente".

"Os trechos que tratam do spoudaios mostram claramente que Aristóteles não pode considerar o que é justo por natureza como um direito natural, [no sentido de] um conjunto de proposições imutáveis e eternas, porque a verdade de uma ação concreta não pode ser determinada por sua sujeição a um princípio geral, mas apenas pelo questionamento do spoudaios. A justificação de uma ação não apela para um princípio imutavelmente correto, mas para a ordem existencialmente justa do homem" (VOEGELIN, 2009, p. 190, grifos nossos).

A oposição, assim, não é entre direito positivo e direito natural, mas entre almas abertas e almas fechadas (no sentido bergsoniano), entre estar aberto ou não para o fundamento divino do ser. Sólon afirmaria esta oposição ao contrapor ao respeito à Dike (Justiça) a desenfreada hybris humana, a violência, fruto do orgulho e da força: Dike é a protetora da comunidade contra a maldição da hybris (JAEGER, 2010). A ação humana justa seria aquela movida pelos respeito à Dike em oposição às ações guiadas pela hybris humana.

Parece-nos que confirma o que foi exposto a afirmação de Platão de que "qualquer um pode elaborar os projetos jurídicos se ele compreendeu a essência da ordem e realizou a ordem em sua própria vida" (VOEGELIN, 1998, p. 107). Não se trata, então, de conformar uma lei ou uma decisão a um comando geral abstrato, mas de conformar à própria alma com a ordem do ser. Mais uma vez a oposição é entre almas abertas e almas fechadas, entre o respeito à Dike e os perigos da hybris.

A tensão da qual emerge o símbolo do justo por natureza é a tensão entre a ordem do ser e a conduta do homem. Esta tensão só é experimentada na consciência de seres humanos permeáveis ao movimento do ser, abertos ao plano transcendente, e estes são os seres humanos representativos. Se quisermos entender o direito natural, então, devemos fazê-lo como tentativas de interpretar as normas da humanidade representativa, e não como a busca de leis eternas e imutáveis.

"[Aristóteles] criou um termo para designar o homem cujo caráter é formado pelo agregado de experiências em questão, chamando-o spoudaios, o homem maduro. O spoudaios é o homem que realizou ao grau máximo as potencialidades da natureza humana, que formou seu caráter na realização das virtudes intelectuais e éticas, o homem que, no auge do seu desenvolvimento, atinge o bios theoretikos. Assim, a ciência da ética, no sentido aristotélico, é o estudo do spoudaios" (VOEGELIN, 1982, p. 56, grifos nossos).

O critério de eticidade e, portanto, de justiça das ações é antes uma investigação sobre o spoudaios do que uma procura de leis eternas e imutáveis. O homem maduro é a medida da humanidade, e é de suas experiências da tensão entre a ação humana concreta e a ordem do ser, que emerge o símbolo do physei dikaion. Ele é o oposto ao homem que se deixa guiar pelas paixões e ganâncias de hybris. Uma investigação do justo por natureza transforma-se, então, numa investigação sobre o spoudaios e sobre os seres humanos que, por possuírem uma virtude de abertura para o movimento do ser, tornam-se representativos.

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Sobre o autor
Horácio Lopes Mousinho Neiva

Acadêmico do 9º Período de Direito da Universidade Federal do Piauí

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NEIVA, Horácio Lopes Mousinho. O dilema da Justiça Natural.: A crítica de Eric Voegelin à dogmatização do Direito Natural. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2804, 6 mar. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18634. Acesso em: 29 mar. 2024.

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