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A responsabilidade trabalhista da administração pública federal nos contratos de terceirização.

Uma releitura sob a ótica do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16

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3. O Elemento Culpa como condição de Responsabilização da Administração nos Contratos Administrativos de Terceirização

Por todas as informações e ilações antecedentes, fácil é perceber que a responsabilização da Administração nos contratos de terceirização legal, segundo o julgamento do Supremo na ADC 16, concentra a sua aferição no comportamento administrativo como elemento de caracterização. Destarte, imprescindível a aferição da culpa lato sensu.

No caso específico de inadimplência de encargos trabalhista em tais contratações, a responsabilidade do poder público está muito mais próxima de ocorrer por uma inação (conduta omissiva), frente a um dever jurídico preestabelecido, do que propriamente por força de um fato comissivo.

Deve ter-se em mente que, nesse caso, a responsabilidade da Administração só surgirá nas situações em que a ocorrência do dano puder ser impedida por uma ação eficiente à qual estava obrigada a cumprir.

Nessa esteira, colhe-se a lição de Bandeira de Mello [24]:

"Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardia ou ineficientemente) é de aplicar-se a teoria da responsabilidade subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumpriu dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo".

(...)

"Não bastará, então, para configurar-se responsabilidade estatal, a simples relação entre ausência do serviço (omissão estatal) e o dano sofrido. Com efeito: inexistindo obrigação legal de impedir um certo evento danoso (obrigação, de resto, só cogitável quando haja possibilidade de impedi-lo mediante atuação diligente), seria um verdadeiro absurdo imputar ao Estado responsabilidade por um dano que não causou, pois isto equivaleria a extraí-la do nada; significaria pretender instaurá-la prescindindo de qualquer fundamento racional ou jurídico. Cumpre que haja logo mais: a culpa por negligência, imprudência ou imperícia no serviço, ensejadoras do dano, ou então o dolo, intenção de omitir-se, quando era obrigado era obrigatório para o Estado atuar e fazê-lo segundo um certo padrão de eficiência capaz de obstar ao evento lesivo."

Observa-se que a Administração não é autora direta do dano, apenas assume a responsabilidade por uma falha no cumprimento de uma obrigação que, se operada a contento, evitaria a ocorrência daquele. Nos contratos administrativos, o exemplo mais evidente estaria relacionado ao dever de fiscalização.

Essa, inclusive, é a razão de ser ver a culpa não como um elemento de configuração da responsabilidade da Administração no caso vertente, mas como condição para sua ocorrência.

A propósito, esse é o entendimento disseminado pelo Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo:

"Compreende-se que a solução indicada deva ser a acolhida. De fato, na hipótese cogitada o Estado não é o autor do dano. Em rigor, não se pode dizer que o causou. Sua omissão ou deficiência haveria sido condição do dano, e não causa. Condição e o evento que não ocorreu, mas que, se houvera ocorrido, teria impedido o resultado.

É razoável e impositivo que o Estado responda objetivamente pelos danos que causou. Mas só é razoável e impositivo que responda pelos danos que não causou quando estiver de direito obrigado a impedi-los." [25]

E a aferição dessa conduta omissiva deve ser examinada com bastante cuidado sob pena de lesionar indevidamente o Estado e, de forma indireta, toda a coletividade. Ela deve ser realmente preponderante para que advenha o resultado danoso – até onde a intervenção da Administração Pública o evitaria.

Ainda o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello, pondera que a questão não dever ser observada sob a ótica do lesado, mas pelo espectro da própria Administração. Transcreve-se:

"Ao contrário do que se passa com a responsabilidade do Estado por comportamentos comissivos, na responsabilidade por comportamentos omissivos a questão não se examina nem se decide pelo ângulo passivo da relação (a do lesado em sua esfera juridicamente protegida), mas pelo pólo ativo da relação. É dizer: são os caracteres da omissão estatal que indicarão se há ou não responsabilidade.

Não se pode, portanto, enfocar todo o problema da responsabilidade do Estado por comportamentos unilaterais a partir da situação do lesado, ou seja, daquele que sofreu um ‘dano injusto’. É que, tratando-se de responsabilidade por comportamento estatal omissivo, o dano não é obra do Estado. Por isso cabe responsabilizá-lo se o seu comportamento omissivo era censurado pelo Direito. Fora daí, quando couber, a responsabilidade será de outrem: do próprio agente do dano.

A responsabilidade estatal responderá apenas, consoante reiteradamente vimos afirmando, se o Estado não agiu para impedir o dano, embora estivesse juridicamente obrigado a obstá-lo, ou se, tendo agido, atuou insuficientemente, portanto, abaixo dos padrões a que estava, de direito, compelido" [26]

A fundo, o raciocínio expurgaria eventual alegação de culpa presumida da Administração, até mesmo porque, consoante disposto acima, o evento danoso consistente na inadimplência de encargos trabalhistas na contratação de prestação de serviços terceirizados, gera uma responsabilidade contratual, que, por suas peculiaridades, distancia a aplicação de uma presunção de culpa (v. subtópico 3.2, alínea C).

De toda sorte, apenas a título de argumentação, mesmo numa eventual situação de culpa presumida por dificuldade de comprovação por parte do lesado, não haveria de se desnaturar a responsabilidade subjetiva nem, muito menos, transmudá-la em responsabilidade objetiva, pois sempre restará à Administração Pública a demonstração de que agiu dentro dos parâmetros razoáveis de diligência, prudência e perícia, o que não ocorreria, em hipótese alguma, na responsabilização objetiva.

Mais uma vez, Celso Antônio Bandeira de Mello:

"Finalmente, quadra advertir que a responsabilidade por comportamentos omissivos não se transmuda em responsabilidade objetiva nos casos de ‘culpa presumida", pois, se o Poder Público provar que não houve omissão culposa ou dolosa, descaberá responsabilizá-lo; diversamente do que ocorre na responsabilidade objetiva, em que nada importa se teve, ou não, culpa: responderá do mesmo modo".

Com esses pensamentos, passa-se a fazer uma releitura das modalidades de culpa antes consideradas pelo Tribunal Superior do Trabalho para a edição da última versão do item IV do verbete sumular nº 331.

a) Culpa in eligendo

A culpa in eligendo decorre da culpa da escolha ou eleição feita pela pessoa a ser responsabilizada, como, a exemplo, no caso da responsabilidade do patrão por ato de seu empregado (cf. Tartuce, 2006:308).

Em regra, essa escolha ou eleição não depende de livre deliberação quando o contratante é a Administração Pública. É obrigatória a realização de procedimento licitatório formal e impessoal com critérios objetivos visando à seleção da proposta mais vantajosa para a administração (art. 37, XXI, da CRFB e arts. 1º ao 3º da L. 8.666/93 [27]).

Assim sendo, e sobrelevando o princípio da legalidade estrita ao qual está sujeito o poder público, a responsabilização somente poderia advir se restar comprovada a conduta omissiva – culposa ou dolosa – da Administração Pública ou de seus agentes por falha no curso da licitação quanto aos deveres legais que influencie numa futura inadimplência de encargos trabalhista ou contribua para tanto.

Um exemplo possível seria o fato de adjudicar lance de empresa prestadora de serviço que já se encontra inadimplente com o recolhimento de FGTS de seus empregados, demonstrando comportamento negligente ou imprudente na licitação.

Também poderá operar a responsabilidade da Administração nas situações de direcionamento da licitação ou de contratação direta (dispensa e inexigibilidade) ilegal.

Nessas hipóteses, entende-se que faltaria um dos requisitos para a responsabilidade contratual: existência de contrato válido, além de configurar ato de improbidade administrativa (art. 37, § 4º [28], da CRFB e Lei nº 8.429/1992 [29]). Assim, a responsabilidade seria extracontratual ou patrimonial, incidindo na responsabilização direta e objetiva da Administração, consoante previsto no § 6º do art. 37 da Constituição da República, sem prejuízo de apuração das demais responsabilidades penal, administrativa e política dos agentes públicos envolvidos.

Vale ainda ressaltar que, invalidada a contratação por uma das situações ventiladas, a declaração da nulidade gerará efeitos jurídicos retroativos, inclusive, de desconstituição, contudo, sem eximir a Administração do seu dever de indenizar os prejuízos regularmente comprovados. Reproduz-se a norma da Lei nº 8.666/93:

Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.

Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa [30].

b) Culpa in vigilando

Pelos contornos traçados no julgamento da ADC 16 e da releitura ora proposta, a culpa in vigilando da Administração dar-se-á basicamente tão-somente por falta (conduta omissiva) decorrente do dever de fiscalização, previsto este nos arts. 58, III [31], e 67 [32] da Lei nº 8.666/93, que, via de regra, absorvido pelo conteúdo do contrato administrativo em forma de obrigação do contratante.

Contudo, chama-se a atenção para o fato de que, conforme dantes explicado, isso não exonera a necessidade de comprovação dessa culpa e da proporção de sua intensidade para o evento danoso – inadimplência dos encargos trabalhistas, devendo responder a Administração Pública apenas se demonstrado que com a sua intervenção ou resultado prejudicial não teria ocorrido ou, pelo menos, teria amenizado os efeitos.

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c) Terceirização ilícita e Improbidade Administrativa

Consoante foi indiciado na alínea "A" supra, parte-se da premissa que as contratações violadoras de direitos pelo Estado, como se dá na terceirização ilícita (intermediação de mão-de-obra/marchandage), prejudica a validade do contrato administrativo e também implica em ato de improbidade administrativa, que enseja a responsabilização direta e objetiva da Administração Pública.

Na terceirização ilícita, não bastasse a infringência do arts. 1º, §2º, 4º, II e IV, do Decreto nº 2.271/1997, afronta-se direta e literalmente o art. 37, II e III, da Constituição da República, que dispõe sobre as formas legítimas de provimentos de cargos e empregos públicos:

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

V - as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

(...)

§ 2º - A não observância do disposto nos incisos II e III implicará a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável, nos termos da lei.

A Professora da Universidade de São Paulo discorre sobre a questão (Di Pietro, 2007:322-323):

O que a Administração Pública pode fazer, licitamente, é celebrar contratos de empreitada, seja para a realização de obra pública (conforme definida no artigo 6º, I, da Lei nº 8.666), seja para prestação de serviço (tal como conceituado nos artigos 6º, II, e 13 da mesma lei). Nesses tipos de contrato, a empresa é que é contratada e o vínculo contratual se forma com ela e não com seus empregados.

O que a Administração não pode fazer é contratar trabalhador com intermediação de empresa de prestação de serviços a terceiros, porque nesse caso o contrato assume a forma de fornecimento de mão-de-obra, com burla à exigência de concurso público.

O trabalhador, nesse caso, não pode ser considerado servidor público; ele se enquadra na figura conhecida como ‘funcionário de fato’, porque não investido licitamente em cargo, emprego o função. Em conseqüência, ele não pode praticar atos administrativos e, se os praticar, tais atos são inválidos, não podendo produzir efeitos jurídicos. Nem mesmo se enquadram no art. 37, IX, da Constituição, que prevê a hipótese de contratação temporária, porque esse dispositivo permite seja contratado o servidor, pessoa física, e não empresa. Além disso, as leis que disciplinam esse dispositivo constitucional exigem processo seletivo para a contratação de pessoal temporário, salvo em situações de emergência (nesse sentido, v. artigo 3º da Lei nº 8.745, de 9-12-93, sobre contratação de servidor temporário na esfera federal; no Estado de São Paulo, existe decisão nesse sentido do Tribunal de Contas, proferido no Processo TCA-15248/026/04, publicada no Diário Oficial do Estado, de 17-6-2004).

Vê-se que a conduta é comissiva e dolosa, pois direcionada para um fim fraudulento, o que fortalece o posicionamento pela aplicação da responsabilidade de forma objetiva, implicando, expressamente, em nulidade do ato administrativo, além de punição da autoridade responsável e agentes públicos envolvidos.

Essa penalidade inserta no próprio texto constitucional, além da apuração civil, administrativa e criminal, importa, ainda, sujeição à Lei de Improbidade Administrativa (L. 8.429/92). É o que também informa Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

No que diz respeito à responsabilidade pela celebração de contratos de terceirização de mão-de-obra, cabe lembrar que a autoridade estará sujeita a responder civil, administrativa e criminalmente, sem falar na sujeição à Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429, de 2-6-92).

Em caso de danos causados a terceiros pelos trabalhadores contratados de forma ilícita, incide a responsabilidade do Estado, que é objetiva e independe de quem seja o agente causador do dano, conforme artigo 37, § 6º, da Constituição. Vale dizer que, embora contratado ilicitamente, esse agente é considerado agente público para fins de responsabilidade civil do Estado.

Não diferente, posiciona-se o Membro do Ministério Público do Trabalho e Professor Rodrigo Carelli:

No caso da utilização fraudulenta de terceirização para provimento de cargos públicos, a própria Constituição Federal prevê a punição, que veio a se confirmar no art. 11 da Lei n. 8.429/92, constituindo como improbidade administrativa o ato que atenta contra os princípios da Administração Pública, com penas de ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente (inciso III do art. 12 da mesma Lei).

Todavia, merece destacar que, consoante entendimento consolidado do TST, no enunciado 363 da súmula de jurisprudência, a responsabilização da Administração com os trabalhadores limitar-se-á à indenização do saldo de salário trabalhado e valores relativos aos depósitos do FGTS:

SUM-363 CONTRATO NULO. EFEITOS (nova redação) - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003

A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS.

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Sobre o autor
Rodrigo Montenegro de Oliveira

Advogado da União – Advocacia-Geral da União. Coordenador-Geral de Contencioso Judicial da Consultoria Jurídica junto ao Ministério da Defesa. Estudante de Especialização em Direito Público na Unb – Universidade de Brasília. Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera. Pós-graduado em Ciências Jurídicas pela Universidade Potiguar.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Rodrigo Montenegro. A responsabilidade trabalhista da administração pública federal nos contratos de terceirização.: Uma releitura sob a ótica do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 2848, 19 abr. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/18936. Acesso em: 29 mar. 2024.

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