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Intervalos intrajornada para o trabalho rural em condições de exposição ao calor

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O cumprimento da NR-31 pelos empregadores rurais não os desobriga de cumprir também as normas próprias dos urbanos. Ademais, a insolação é fator de insalubridade distinto da insolação.

1 Introdução

Não obstante a maior parte da população economicamente ativa do Brasil estivesse, à época, concentrada no campo, o legislador de 1943 não apresentou em relação aos trabalhadores rurais a mesma preocupação que apresentou para com os trabalhadores urbanos. Em verdade, optou por expressamente excluí-los da esfera normativa da Consolidação das Leis do Trabalho, que naquele ano entrava em vigor, como restou evidenciado na redação do art. 7º, "b" da CLT [01]. Esta exclusão não impediu que doutrina e jurisprudência lhes assegurassem, com o passar do tempo, alguma proteção, ainda que elementar, a partir de soluções hermenêuticas. Consagrou-se o entendimento de que ao estatuir que "a duração normal do trabalho, para os empregados em qualquer atividade privada, não excederá de oito horas diárias", o artigo 58 do texto consolidado visou proteger não apenas os trabalhadores urbanos, mas também os rurais. A estratégia encontrada pelos operadores do direito para resguardar os rurículas, como se pode facilmente concluir, foi interpretar extensivamente a expressão empregados em qualquer atividade privada. Solução similar foi adotada em relação à expressão todo empregado, que consta do artigo 129 da CLT [02].

Alguns dispositivos celetistas, em verdade, já em sua redação original contrariavam expressamente a orientação geral do artigo 7º para incluir em seu âmbito de incidência os trabalhadores rurais. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o artigo 76 da Consolidação das Leis do Trabalho que conceituava salário mínimo como "a contraprestação mínima devida e paga diretamente pelo empregador a todo trabalhador, inclusive ao trabalhador rural, sem distinção de sexo, por dia normal de serviço e capaz de satisfazer, em determinada época e região do país, as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte".

A Lei n. 605, que entrou em vigor em 14 de janeiro de 1949, também fez questão de incluir os trabalhadores rurais expressamente em seu âmbito de incidência. O seu artigo 2º, em verdade, estatui que "entre os empregados a que se refere esta lei, incluem-se os trabalhadores rurais, salvo os que operem em qualquer regime de parceria, mediação, ou forma semelhante de participação na produção".

A proteção então existente era, contudo, muito pequena para conter o ímpeto de uma categoria tão numerosa. A partir de 1954 manifestações camponesas como as lideradas por grupos como a União dos Lavradores e Trabalhadores e os movimentos operários católicos tornaram-se cada vez mais frequentes. Também ganhou força o movimento em prol de uma reforma agrária. Segundo Alice Monteiro de Barros, com o objetivo de conter o avanço socialista editou-se, em 1963, o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) que disciplinou integralmente a matéria e modificou diversas regras celetistas, embora determinasse a aplicação das normas consolidadas naquilo que não contrariassem ou restringissem o disposto no Estatuto (art. 179) [03].

Após observar que o advento da Lei 4.214/63 (ETR), fez desaparecer o esforço de se pesquisar quais os casos em que os preceitos consolidados lhes eram extensivos, Evaristo de Moraes Filho e Antonio Carlos Flores de Moraes teceram diversas críticas ao referido estatuto que seria, a seu ver, "mal redigido, feito às pressas". Aduziram ainda que "em muitos casos limitou-se o estatuto a transcrever os dispositivos da Consolidação, sem maiores adaptações às peculiaridades do trabalho no campo" [04].

Ainda assim concluíram que o estatuto representou uma grande conquista, formal e verbal, para o rurícula brasileiro. Uma das evoluções estaria na própria definição de trabalhador rural. Comparando o artigo 7º, b da CLT [05] com o art. 2º do Estatuto do Trabalhador Rural [06] os autores observaram que este ampliou o conceito de trabalhador rural para além do empregado subordinado, regido por um inequívoco contrato de trabalho [07]. O novo conceito foi mantido pelo Decreto-Lei n. 789, de 16.8.69 (art. 1º, I, a), que, contudo, ampliou a sua compreensão para abranger também "quem proprietário ou não, trabalhe individualmente ou em regime de economia familiar".

Dez anos após o início de sua vigência, os dispositivos do Estatuto do Trabalhador Rural dedicados às relações de emprego foram revogados pela Lei 5.889 [08]. Esta nova norma também não restou imune às críticas. Evaristo de Moraes Filho e Antonio Carlos Flores de Moraes, a consideram "inteiramente assistemática, fragmentária, ainda menos orgânica que o Estatuto" e asseveram que ela se limita a "indicar de maneira genérica, os dispositivos e as normas gerais do trabalho, consolidados ou não, que se aplicam ao trabalhador rural" [09].

Concorde-se ou não com as inovações, fato é que a nova lei alterou o sistema anteriormente estabelecido em pontos de grande relevância. Ela restringiu o conceito de trabalhador rural, que passou a, novamente, denotar apenas o empregado rural [10], e o vinculou à finalidade da exploração econômica do empregador. A partir de então trabalhador rural passou a ser aquele que desempenhasse suas funções em propriedade rural ou prédio rústico, não mais sendo determinante a natureza da execução ou finalidade das tarefas especiais de cada empregado isoladamente considerado, como na definição do artigo 7º da CLT. A nova definição também deixa claro que a localização da propriedade ou do prédio rústico tornou-se irrelevante quando a destinação ou finalidade do empreendimento for rural, o que tornou possível o reconhecimento de vínculo de emprego rural em relação a empregados que desempenhem suas funções em grandes centros urbanos.

Em termos de segurança e saúde do trabalhador, verificou-se novamente a primazia da preocupação com o trabalhador urbano em detrimento do rural. A Portaria MTb n. 3.214, de 8.6.1978, que institui as primeiras vinte e oito normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho urbano, dirigia-se, preferencialmente aos trabalhadores urbanos, muito embora alguns de seus preceitos sejam apontados por alguns autores como dirigidos aos trabalhadores rurais, como oportunamente se evidenciará. A aplicação destas normas aos trabalhadores rurais criava, portanto, diversos inconvenientes de ordem prática decorrentes da inegável diferença entre os dois regimes de trabalho. Bastante esclarecedoras são, a este respeito, as lições de Mozart Victor Russomano, segundo quem "é um erro cru pensarmos em estender pura e simplesmente, a legislação trabalhistas às relações de emprêgo rural". E ressalta que "os fenômenos do trabalho campesino e do trabalho urbano constituem categorias perfeitamente distintas, diversas pela forma e pelo conteúdo, exigindo regulamentação legal diferente" [11]. Esta regulamentação específica para o rural somente veio em 1988, com a elaboração das 5 NR Rurais (NRRs) que cuidaram da matéria de forma lacônica, e que, se utilizavam da chamada técnica de subsidiariedade para complementar suas disposições com o que fora estatuído nas NRs 7, 15 e 16, próprias dos urbanos.

Após constatar que esta forma de normatização era manifestamente inadequada e que ela deixava sem solução diversas questões de grande relevância para o trabalhador rural, editou-se a NR-31 que finalmente disciplinou de forma detalhada as regras a serem observadas pelos empregadores rurais para preservar a saúde e a integridade física de seus empregados. Ainda assim ela suscitou controvérsias. A principal delas diz respeito á necessidade de os empregadores rurais continuarem a observar preceitos das NRs próprias dos trabalhadores urbanos mesmo após o advento de norma regulamentadora que disciplinou de forma bastante exaustiva a proteção dos rurículas. Cabe, em particular, destacar a discussão acerca da necessidade de concessão de intervalo intrajornada, na forma do anexo 3 da NR-15, para o trabalho rural em condições de exposição ao calor. A atualidade da discussão e a sua importância prática justificaram a elaboração do presente texto que, espera-se, contribua um pouco para solucionar a controvérsia ainda existente em torno do tema.


2 Normas de proteção à saúde e a à segurança do trabalhador no Brasil

Edwar Abreu Gonçalves, um dos grandes estudiosos do tema, destaca que o Brasil possui uma das melhores e mais abrangentes legislações de segurança e saúde no trabalho do mundo. Baseia sua afirmação no fato de a Constituição Brasileira conter várias disposições que, de maneira direta ou indireta, guardam correlação com a segurança e saúde no trabalho e, sobretudo, na existência de vários diplomas legais infraconstitucionais, decretos regulamentares, portarias ministeriais e normas regulamentadoras específicas, assim como um respeitável acervo jurisprudencial já sedimentado pelas mais altas Cortes e pertinentes a essa temática [12].

Sua observação é irrepreensível, sobretudo se voltarmos os olhos para o cenário posterior à outubro de 1988. A proteção jurídica à segurança e saúde do trabalhador ganhou status Constitucional com a promulgação da atual Carta Magna que, em seu artigo 7º, incluiu, entre os direitos elementares dos trabalhadores urbanos e rurais brasileiros, "a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de segurança e saúde no trabalho". Este preceito recepcionou as diversas normas legais e infralegais de proteção ao trabalhador então existentes. Não é demais recordar que o caput do dispositivo mencionado evidencia que as normas ali entabuladas são garantias mínimas, ao antecipar que os incisos que o sucedem tratam de direitos dos trabalhadores "além de outros que visem à melhoria de sua condição social".

Dentre as normas jurídicas infraconstitucionais de maior relevância para a segurança e saúde no trabalho de nosso país, cabe mencionar, com especial destaque, a Lei n. 6.514, de 22.12.1977, que deu a redação atual aos artigos 154 a 201 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Particular atenção deve ser dada à regra do artigo 200 que estatui caber ao Ministério do Trabalho estabelecer disposições complementares às normas de que trata o capítulo da segurança e da medicina do trabalho da CLT, tendo em vista as peculiaridades de cada atividade ou setor de trabalho. Esta norma evidencia a opção legislativa de delegar à órgãos técnicos a definição das regras atinentes às medidas de prevenção de acidentes e aos equipamentos de proteção individual em obras de construção, demolição ou reparos; depósitos, armazenagem e manutenção de combustíveis, inflamáveis e explosivos, bem como trânsito e permanência nas áreas respectivas; trabalho em escavações, túneis, galerias, minas e pedreiras, sobretudo quanto á prevenção de explosões, incêndios, desmoronamentos e soterramentos, eliminação de poeiras, gases etc., e facilidades de rápida saída dos empregados; proteção contra incêndio em geral e medidas preventivas adequadas, com exigências ao especial revestimento de portas e paredes, construção de paredes contra fogo, diques e outros anteparos, assim como garantia geral de fácil circulação, corredores de acesso e saídas amplas e protegidas, com suficiente sinalização; proteção contra insolação, calor, frio, umidade e ventos, sobretudo no trabalho a céu aberto, com provisão, quanto a este, de água potável, alojamento e profilaxia de endemias; proteção do trabalhador exposto a substâncias químicas nocivas, radiações ionizantes, ruídos, vibrações e trepidações ou pressões anormais ao ambiente de trabalho, com especificação das medidas cabíveis para eliminação ou atenuação desses efeitos, limites máximos quanto ao tempo de exposição, à intensidade da ação ou de seus efeitos sobre o organismo do trabalhador, exames médicos obrigatórios, limites de idade, controle permanente dos locais de trabalho e das demais exigências que se façam necessárias; higiene nos locais de trabalho, com discriminação das exigências, instalações sanitárias, com separação de sexos, chuveiros, lavatórios, vestiários e armários individuais, refeitórios ou condições de conforto por ocasião das refeições, fornecimento de água potável, condições de limpeza dos locais de trabalho e modo de sua execução, tratamento de resíduos industriais; emprego das cores nos locais de trabalho, inclusive nas sinalizações de perigo.

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A opção não poderia ser mais acertada. A especificidade de cada atividade profissional torna inviável um tratamento geral por uma norma legal. A necessidade de estudos científicos prévios e o conteúdo técnico destas normas tornam inadequada a sua disciplina através de negociação coletiva. Por fim, não se pode deixar de ter em mente a necessidade de constante atualização destas normas, como muito bem evidencia Edwar Abreu Gonçalves na seguinte passagem de sua obra:

"Em decorrência da acelerada revolução tecnológica que tem desencadeado profundas mudanças na relação capital-trabalho, as normas regulamentadoras da proteção jurídica à segurança e saúde no trabalho encontram-se em contínuo processo de atualização e modernização objetivando a melhoria das condições ambientais do trabalho, afinal de contas, é missão institucional do Estado velar pela saúde e integridade física de sua força produtiva" [13].

Esta delegação normativa conferida ao Ministério do Trabalho e Emprego nos arts. 190 e 200, V, da CLT afasta qualquer possibilidade de se alegar que o item 2 do Quadro 1 do anexo 3 da NR15 estaria violando o princípio da legalidade ao prever que a pausa deve ser remunerada. Não obstante esta tese já tenha sido sustentada em discussões envolvendo o intervalo intrajornada do digitador, o entendimento jurisprudencial dominante acertadamente não a tem acolhido.

O Ministério do Trabalho (atual Ministério do Trabalho e Emprego – MTE), de conformidade com a regra contida no caput do artigo 200 deste diploma legal editou a Portaria MTb n. 3.214, de 8.6.1978, instituidora das primeiras vinte e oito normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho urbano. Elas foram posteriormente complementadas por seis outras, a saber, a NR-29, que trata da Segurança e Saúde no Trabalho Portuário; a NR-30, que trata da Segurança e Saúde no Trabalho Aquaviário; a NR-31, que trata da segurança e Saúde no Trabalho na Agricultura, Pecuária, silvicultura, Exploração Florestal e Aqüicultura; a NR-32 que trata da Segurança e Saúde no Trabalho em Estabelecimentos de Saúde; a NR-33, que trata do trabalho em espaços confinados; e, por fim, a NR- 34 que trata das condições de trabalho na construção e reparação naval. Até o advento da NR-31, vigoraram, por certo espaço de tempo, as chamadas NR rurais.

O órgão de assessoria técnico-especializada responsável por subsidiar a formulação e proposição das diretrizes e normas de atuação na área de segurança e saúde no trabalho é o Departamento de Segurança e Saúde no Trabalho (DSST), diretamente subordinado ao Sr. Secretário de Inspeção do Trabalho.


3 Normas regulamentadoras do trabalho rural

A Lei 5.889, de 1973, que dispõe sobre saúde e segurança do trabalho rural, somente foi regulamentada em 1988, 15 anos depois, quando surgiram as NR Rurais 1, 2, 3, 4 e 5. Estas, no entanto, não cuidaram de regulamentar exaustivamente os procedimentos de segurança e saúde do trabalho rural o que fez com que uma norma regulamentadora específica para a área rural fosse reivindicada através do Grito da Terra Brasil e priorizada no planejamento da Secretaria de Inspeção do Trabalho - SIT à luz da discussão da Conferência da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre a Convenção 184 [14].

Para elaboração da norma foi constituído o Grupo Técnico pelo Ministério do Trabalho e Emprego que, após concluir o seu texto, submeteu-o à consulta pública para receber sugestões da sociedade civil, entidades, etc. Encerrada essa etapa foi constituída a Comissão Permanente Nacional Rural (CPNR) e o Grupo de Trabalho Tripartite (GTTR), constituído pelo Ministério do Trabalho e Emprego, neste ato representado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), além da representação dos Empregadores e da representação dos trabalhadores. Coube a esta Comissão negociar a norma após a consulta pública, havendo, a primeira reunião com este escopo, ocorrido em 15 de outubro de 2001 e a última em fevereiro de 2004 [15].

Tentou-se a negociação ponto a ponto até agosto/2003, partindo-se, após esta data, para a negociação bipartite entre empregadores e trabalhadores e, posteriormente, para a discussão no GTTR dos pontos em que não se obteve consenso. Ao final destas etapas, 93% do conteúdo da norma foi consensual, tendo o Governo decidido os demais pontos por arbitramento [16].

A norma foi analisada pela Consultoria Jurídica do Ministério do Trabalho e Emprego e publicada através da Portaria nº 86 de 03 de março de 2005, no Diário Oficial da União de 04/03/05, aprovando a Norma Regulamentadora de Segurança e Saúde no Trabalho, Agricultura, Pecuária, Silvicultura, Exploração Florestal e Aqüicultura (NR 31) [17].

Por se tratar de norma específica para os trabalhadores rurais, poder-se-ia concluir que após a sua edição as NR dos trabalhadores urbanos não mais seriam aplicáveis aos rurais. Esta conclusão aparentemente seria reforçada por um argumento normativo alicerçado na forma como foi revogada a Portaria n. 3.067, de 12 de abril de 1988, que aprovou as Normas Regulamentadoras Rurais – NRR, relativas à Segurança e Higiene do Trabalho Rural. Segundo o artigo 1.12 desta norma "Além das NRR aplicam-se ao trabalho rural, no que couber, as seguintes Normas Regulamentadoras - NR aprovadas pela Portaria n.º 3.214, de 08 de junho de 1978, observadas as alterações posteriores: a) NR 7 - Exame Médico; b) NR 15 - Atividade e Operações Insalubres; c) NR 16 - Atividades e Operações Perigosas." A Portaria n. 191 de 15 de abril de 2008, que instituiu a NR-31, expressamente a revogou ao assim dispor em seu artigo 1º: "Art. 1º Revogar a Portaria GM n.º 3.067, de 12 de abril de 1988, publicada no DOU do dia 13 de abril de 1988, Seção 1, pág. 6.333 a 6.336, que aprovou as Normas Regulamentadoras Rurais – NRR".

Como a nova Portaria não dispõe de nenhum dispositivo determinando a aplicação da NR-15 aos trabalhadores rurais, poder-se-ia pensar que esta aplicação deixou de ser possível. Esta conclusão, contudo, não resiste a uma constatação histórica. A Portaria n. 3.067 precisou ser expressa a este respeito por ser anterior à Constituição de 1988 que igualou em direitos os trabalhadores urbanos e rurais. Após o advento da Nova Carta Magna, a igualdade de direitos entre trabalhadores urbanos e rurais restou tão evidente que a Súmula 292 do TST foi cancelada por ser considerada desnecessária, como se depreende dos seguintes ensinamentos doutrinários do magistrado Raymundo Antonio Carneiro:

"O Cancelamento se impunha porque,  a partir da CF/88, ficou prejudicada a interpretação nela consubstanciada. O art. 7º relaciona os direitos dos trabalhadores "urbanos e rurais" e, no inciso XXIII, consta: "adicional para remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei". Antes disso, justificou-se a emissão do verbete tendo em vista que a Lei n. 5.889, de 8.6.73 – que estatuiu normas reguladoras do trabalho rural - , não se referia, de modo expresso, ao adicional de insalubridade, mas determinava, logo no art. 1º, que fossem observadas as regras da CLT no que não colidissem com a mesma lei. Como visto, o TST entendeu não haver incompatibilidade da aplicação ao rural do disposto nos arts. "189 a 197 da CLT, inclusive a necessidade de perícia para comprovar o ambiente insalubre [18].

No mesmo sentido Francisco Antonio de Oliveira afirma que "Esta Súmula restou superada pelo art. 7º, XXIII, da CF/88" [19].

Desta feita, é fácil concluir que o silêncio do redator da Portaria que instituiu a NR-31 acerca da observância da NR-15 não obsta a exigibilidade desta medida. Os atualizadores da clássica obra de Valentin Carrion sustentam a aplicação de outras NRs aos trabalhadores rurais, mesmo após o advento da NR-31:

[...] a Lei do Trabalho Rural (5.889/73, art. 13, v. Índice da Legislação) remete a regulamentação ao Ministério do Trabalho. Com a revogação das NRR (normas regulamentadoras do rural), pela Port. MTE 191/08, devemos observar as NR (normas regulamentadoras) do trabalhador urbano no que couber, pois os trabalhadores rurais foram equiparados aos urbanos pela CF/88 [20].

Este pensamento é irrepreensível. Em se tratando de segurança e medicina do trabalho, as normas gerais, como as NR’s criadas pela Portaria 3.214/78, devem ser observadas por todos, devendo os destinatários de normas especificas observar além delas as normas que lhe são próprias. É o que evidencia Edwar Abreu Gonçalves na seguinte passagem "Disposições Gerais devem ser entendidas como a definição dos parâmetros genéricos da proteção jurídica à segurança e saúde no trabalho, cuja observância se faz obrigatória em todas as empresas públicas e privadas que possuem empregados contratados pela égide da (CLT). Destaca-se como regra inicial das Disposições Gerais, que o simples cumprimento patronal das normas jurídicas de prevenção de acidentes de trabalho, tanto as previstas no próprio Estatuto Obreiro (arts. 154 a 201 da CLT) quanto as que editadas pelo Ministério do Trabalho e Emprego, não desobriga as empresas do cumprimento de outras disposições legais ou regulamentares, porventura existentes em Códigos de Obras ou Regulamentos Sanitários do Estado ou do Município onde se situe o estabelecimento; o mesmo se diga em relação às Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho" [21]. Pode-se complementar a afirmação do referido autor, explicitando que o cumprimento da NR-31 pelos empregadores rurais não os desobriga de cumprir também as NRs próprias dos urbanos, assim como o cumprimento da NR-32 pelos Estabelecimentos de Saúde não os desobriga de cumprir as NRs 1 à 28.

Alice Monteiro de Barros, ao reeditar sua obra após o advento da NR-31, corrobora esta conclusão, observando, inclusive, que a NR-21, instituída pela Portaria 3.214/78 assim como a NR-15, trata do trabalho realizado a céu aberto em passagem que parece destinada aos trabalhadores rurais e que lhes permanece aplicável. Em suas palavras: "A Portaria n. 3.214, de 8 de junho de 1978, do Ministério do Trabalho, que aprova as normas regulamentadoras do Capítulo V, Título II, da CLT, relativas à Segurança e Medicina do Trabalho, com as alterações trazidas pela Portaria n. 3.048, de março de 1988, na NR-21 trata do trabalho realizado a céu aberto. Exigem-se abrigos, ainda que rústicos, capazes de proteger os trabalhadores contra as intempéries e a adoção de medidas especiais contra a insolação excessiva, o calor, o frio, a umidade e os ventos inconvenientes" [22].

José Antônio Ribeiro de Oliveira Silva, por sua vez, chega mesmo a defender a utilização da Norma Regulamentadora específica dos digitadores, a NR-17, como parâmetro para justificar limitações aos trabalhadores rurais que atuam na colheita da cana. In verbis:

"A Norma Regulamentadora nº 17, embora não aplicável no meio rural por falta de disposição expressa, pode ser utilizada num processo analógico, para se coibir esse tipo de ajuste remuneratório. Segundo a letra ‘a’ do item 17.6.3 da NR-17, o empregador não pode promover qualquer sistema de avaliação dos trabalhadores que prestam serviços nas atividades de digitação, ‘baseado no número individual de toques sobre o teclado, inclusive o automatizado, para efeito de remuneração e vantagens de qualquer espécie’. E a letra ‘b’ desta mesma norma limita o número máximo de toques reais pelo digitador, que não deve ser superior a oito mil por hora trabalhada. Guardadas as devidas proporções, o trabalho do cortador de cana é muito mais fatigante, quer pelo ambiente em que é prestado, quer pelo esforço físico empreendido, sendo que este trabalhador precisa dar cerca de mil golpes de podão para cortar uma tonelada de cana. Ocorre que as usinas de açúcar e álcool têm exigido uma produção de 10 a 12 toneladas de cana por dia, de modo que o trabalhador desfere, assim, de 10.000 a 12.000 golpes de podão diariamente, ou mais, pois há trabalhadores que cortam 20 ou mais toneladas de cana por dia" [23].

Em termos jurisprudenciais, o seguinte acórdão, embora não seja recente, é bastante expressivo:

EMPREGADO RURAL. ADICIONAL DE INSALUBRIDADE. LIMITAÇÃO. PERÍODO ANTERIOR AO ADVENTO DA PORTARIA Nº 3.067/88 DO MINISTÉRIO DO TRABALHO. Os trabalhadores urbanos e rurais gozam dos mesmos direitos trabalhistas constitucionais, estabelecidos no art. 7º. E entre estes direitos, sobressaem-se o da redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (inciso XXII) e o de um adicional de remuneração para as atividades penosas, insalubres ou perigosas, na forma da lei. Por seu turno, a Lei nº 5.889/73, de 08.06.73, recepcionada pela atual Constituição Federal, dispõe no seu art. 13 que: Nos locais de trabalho rural serão observados as normas de segurança e higiene estabelecidos na Portaria do Ministério do Trabalho e Previdência Social. Outrossim, a mesma lei, no art. 1º determina que às relações de trabalho rural aplicam-se as normas da CLT no que não colidirem com a lei especial, ou seja, a Lei nº 5.889/73. Assim, perfeitamente aplicável aos rurículas as normas de higiene e medicina do trabalho, contidas no capítulo V, seção I a XVI da CLT e as Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho, sobretudo a Portaria nº 3.214/78. Dessa forma, comprovado nos autos que os Reclamantes se enquadravam perfeitamente na NR 15, anexos 1. 10, 13 da Portaria nº 3.214/78, não há porque excluir da condenação o período anterior à edição da Portaria nº 3.067/88. Recurso conhecido, mas desprovido. (TST RO-20107/1996-000-04.00 de 3ª Turma, 12 de Setembro de 2001).

Impõe-se, outrossim, o reconhecimento de que os empregadores rurais devem observar as NRs atinentes aos trabalhadores urbanos, em tudo aquilo que não for incompatível com a NR-31. Devem, outrossim, conceder as pausas previstas na NR-15 e remunerá-las, pois elas consistem em interrupção e não em suspensão do contrato de trabalho, como evidencia o item 2 do quadro 1 do anexo 3 da NR-15 segundo o qual "Os períodos de descanso serão considerados tempo de serviço para todos os efeitos legais".

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Sobre o autor
Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho

Mestre e Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-doutor em Direito pela Université de Nantes (França). Professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas. Professor, Coordenador de cursos de pós-graduação e membro do Conselho Curador da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOUCINHAS FILHO, Jorge Cavalcanti. Intervalos intrajornada para o trabalho rural em condições de exposição ao calor. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 16, n. 3087, 14 dez. 2011. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20650. Acesso em: 24 abr. 2024.

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