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Roteiro da fiança concedida pelo delegado de polícia

01/01/2012 às 14:44
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A olvidada fiança, em especial, sofreu importante reformulação, restauradora de sua utilidade nos dias atuais. Notável foi a modificação das normas de fixação de fiança pelo Delegado de Polícia, ampliando, positivamente, a aplicação do instituto.

INTRODUÇÃO:

Em vigor desde julho de 2011, a Lei nº 12.403 alterou o Código de Processo Penal no tocante à prisão processual, fiança, liberdade provisória, medidas cautelares, dentre outros pontos. A olvidada fiança, em especial, sofreu importante reformulação, restauradora de sua utilidade nos dias atuais [01]. Nesse tópico, notável foi a modificação das normas de fixação de fiança pelo Delegado de Polícia, ampliando, positivamente, a aplicação do instituto. A seguir será exposto um roteiro objetivo do novo trâmite da fiança na fase policial.


1. QUANDO O DELEGADO DEVE CONCEDER FIANÇA.

Segundo a precisa lição de Renato Marcão (2011), nos dias de hoje há dois tipos de fiança: "a fiança libertadora, que se presta como contracautela à prisão em flagrante, e a fiança restritiva tratada no art. 319 do CPP" [02]. O presente texto tratará da primeira modalidade.

A nova redação do artigo 322 mudou a sistemática de arbitramento de fiança libertadora pelo Delegado de Polícia, que antes só poderia fazê-lo diante das infrações apenadas com detenção ou prisão simples (natureza da sanção). O novo critério agora se estabelece em face do teto da pena (quantitativo).

Assim, apresentado o conduzido em situação de flagrante delito, o Delegado, num primeiro momento, realiza o juízo de tipicidade do fato (subsunção do fato à norma incriminadora), para, na sequência, observar o teto penal da infração. Três possibilidades, então, se abrem:

a) Se a pena privativa de liberdade não for superior a 2 (dois) anos, segue o rito da fase preliminar dos juizados especiais criminais, previsto na Lei 9.099/1995, lavrando-se Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), sendo o preso encaminhado imediatamente ao juiz competente ou, na impossibilidade desta medida, liberado mediante assinatura de termo de compromisso de comparecimento ao juízo (cf. art. 69 da Lei 9.099/1995);

b) Se não for superior a 4 (quatro) anos, seja de reclusão, detenção ou prisão simples, está franqueado o arbitramento de fiança pela autoridade policial, não havendo impedimento legal (art. 322 do CPP, caput);

c) Se superior a 4 (quatro) anos, lavra-se o auto de prisão em flagrante, nos termos dos artigos 301 e seguintes do CPP. Neste caso, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas (paragrafo único do art. 322 do CPP).

De suma importância, nesse passo, é a consideração do concurso de crimes (formal, material, crime continuado) e de causas de aumento e diminuição de pena (no bojo dos próprios crimes, da modalidade tentada), sempre buscando o maior incremento ou a menor redução, com o fito de preservar a sanção máxima. Veja-se, por exemplo, o que ocorre com o crime de estelionato simples (art. 171 do CPB): diante da pena máxima de 5 (cinco) anos, não será possível ao Delegado arbitrar fiança; mas se o mesmo delito ocorrer na forma tentada, reduzindo-se 1/3 (menor causa de diminuição prevista no art. 14, parágrafo único, do CPB), o teto penal ficará estabelecido em 3 (três) anos e quatro (quatro) meses, abaixo, portanto, do patamar permissivo para concessão da liberdade provisória com fiança [03].

Releva mencionar, ainda, que o artigo 332, inalterado pela reforma de 2011, prevê a possibilidade de concessão de fiança, em caso de prisão por mandado, por autoridade policial a quem tiver sido requisitado o cumprimento. O arbitramento pelo Delegado, segundo a doutrina, decorreria da omissão judicial da declaração, no mandado, do valor do benefício, quando afiançável a infração, nos moldes do art. 285, parágrafo único, d, do CPP. Referido texto parece ter perdido o propósito na atual conjuntura, vez que a teleologia das únicas modalidades de prisão cautelar que remanescem após as reformas processuais – preventiva (cuja finalidade é manter a segregação até a cessação dos motivos ensejadores) e temporária (visa a assegurar a investigação criminal) – não se harmoniza com a medida [04]. Nestes termos, conclui-se que a fiança somente seria concedida pelo Delegado por ocasião da prisão em flagrante.


2. QUANDO O DELEGADO NÃO DEVE CONCEDER FIANÇA.

Mesmo sendo uma garantia constitucional, há casos em que não será possível conceder fiança, devendo o Delegado, em despacho fundamentado, denegá-la. São eles:

a) crimes inafiançáveis (art. 323 do CPP):

a.1. nos crimes de racismo (inciso I e art. 5º, XLII da CF);

a.2. nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos (inciso II e art. 5º, XLIII da CF) e

a.3. nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (inciso III e art. 5º, XLIV da CF).

b) outras causas impeditivas (art. 324 do CPP): em caso de prisão civil (alimentos) ou militar (disciplinar, administrativa ou judicial).

Não será possível à autoridade policial recusar a fiança por quebramento de anterior, nos moldes do inciso I, do art. 324, pois, pela dicção da lei, a quebra deve ocorrer no mesmo processo e, como se pode supor, o réu não será preso duas vezes em flagrante num mesmo feito.

Outro questionamento importante: pode o Delegado denegar a fiança com base no inciso IV, ou seja, quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal – art. 312 do CPP)? Vislumbram-se duas posições:

a) Não, pois, um dos requisitos da prisão preventiva é que a pena do crime seja superior a quatro anos (art. 313, I), não sendo o caso das infrações afiançáveis pelo Delegado (cujo teto penal não supera quatro anos). Ademais, manter a autoridade policial alguém preso com base nos motivos da preventiva configuraria um decreto tácito da mesma(ainda que por intervalo exíguo), o que é vedado ante a reserva jurisdicional deste ato;

b) Sim, pois o inciso IV não exclui, expressamente, a autoridade policial de operar o dispositivo. Além disso, por em liberdade alguém nestes termos frustraria a persecução penal, devendo o preso, de forma precautelar (para alguns cautelar), esperar a manifestação judicial no sentido de ser confirmada a segregação, decretando-se a preventiva, ou revogada, se o juiz entender diversamente.

A concessão, nos casos de não cabimento, enseja a cassação da fiança em qualquer fase do processo (art. 338 do CPP).

Por outro lado, a teor do art. 335 do CPP, recusando ou retardando a autoridade policial a concessão da fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o juiz competente, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas. O habeas corpus também poderá ser manejado como remédio jurídico nessa hipótese.


3. CÁLCULO DA FIANÇA.

Conforme a nova redação do art. 325 do CPP, os limites mínimo e máximo da concessão de fiança, pelo Delegado (que se fará mediante despacho no próprio auto de prisão em flagrante), são de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos (inciso I).

Levando em conta a situação econômica do detido, a fiança poderá ser reduzida até o máximo de 2/3 (dois terços) ou aumentada em até 1.000 (mil) vezes.

A concessão de liberdade provisória sem fiança pelo Delegado está vedada (salvo em relação às infrações de menor potencial ofensivo), sendo atribuição do Juiz (art. 310, III, do CPP). O benefício da dispensa por impossibilidade da prestação em razão de pobreza (§ 1°, I, do art. 325), previsto no art. 350, igualmente, só poderá ser concedido judicialmente. Constatada essa última circunstância, a autoridade policial concederá a fiança no menor patamar possível (um salário mínimo menos dois terços) e fará constar a situação no auto de prisão em flagrante, para posterior apreciação pelo magistrado.

Para determinar o valor da fiança a autoridade policial levará em consideração, discricionariamente (art. 326):

a) a natureza da infração (dimensão do dano, causas legais de agravamento ou abrandamento da pena, natureza do bem jurídico tutelado etc.);

b) as condições pessoais de fortuna (pobre, classe média, rico...);

c) vida pregressa do acusado, se boa ou má (ex: antecedentes sociais e criminais);

d) as circunstâncias indicativas de sua periculosidade (ex: reincidência, perversidade, personalidade vingativa);

e) a importância provável das custas do processo, até final do julgamento.

Deve o Delegado evitar a fixação de valores irrisórios ou excessivos em descompasso com os parâmetros legais. A concessão de uma fiança milionária a quem não dispõe de recursos financeiros equivale à negativa da mesma, configurando ônus mais gravoso que a própria prisão preventiva (Se só sai pagando, não sairá nunca!). Por outro lado, a mesma fiança talvez seja proporcional se estipulada para um abastado empresário que, com seus crimes, reiteradamente venha causando danos avaliados em milhões.

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A fiança necessitará de reforço quando, tomada por engano, seja insuficiente (cf. art. 340, I).


4. PROCEDIMENTALIZAÇÃO.

Preconiza o art. 334 do CPP que a fiança arbitrada poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. Na fase policial, contudo, deve ser paga antes que o juiz seja comunicado do auto de prisão em flagrante e decida nos termos do art. 310.

Prestada pelo fiador (na maioria das vezes um terceiro em nome próprio ou do afiançado), consistirá em depósito de:

a) dinheiro (em moeda brasileira) – o meio mais simples e, de longe, mais usado;

b) pedras (ex: esmeralda, rubi, diamante etc.), objetos ou metais preciosos (ex: pintura, escultura, anel, relógio, ouro, prata etc.) e hipoteca. Estes itens, por exigência legal, serão avaliados por perito nomeado pelo Delegado. Não sendo possível cumprir a referida formalidade, por não se encontrar, no curto tempo do procedimento flagrancial, pessoa apta para tanto (um problema comum, sobretudo nas pequenas cidades do interior), a prudência recomenda a não aceitação da fiança. Há, porém, entendimento no sentido de que a impossibilidade de nomeação de perito não poderia obstar o direito subjetivo do acusado de prestar fiança, devendo a autoridade policial aceitá-la mesmo sem a avaliação;

c) títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, cujo valor é determinado por cotação em Bolsa, provado no ato. Se nominativos, exige-se ainda certidão negativa de ônus.

O depósito será recolhido à repartição arrecadadora federal ou estadual (através de guia, formulário bancário padronizado ou documento de arrecadação) [05], ou entregue ao depositário público. Nos lugares em que o depósito não se puder fazer de pronto, por ausência de agência bancária ou depositário público, o valor será entregue ao escrivão ou terceiro (depositários temporários), a critério da autoridade, e, dentro de três dias, dar-se-á ao valor o destino que lhe assina o artigo 331, o que tudo constará do termo de fiança.

Após comprovação do depósito, será lavrado pelo escrivão e assinado pelo Delegado e por quem prestar a fiança termo de fiança no livro especial destinado especificamente para esse fim, existente no cartório da delegacia de polícia (conf. mandamento do art. 329), e dele extrair-se-á certidão para juntar-se aos autos.

Na oportunidade, o acusado e quem prestar a fiança serão pelo escrivão notificados das obrigações e da sanção previstas nos artigos 327 (obrigação de comparecer perante a autoridade, todas as vezes que for intimado para atos do inquérito e da instrução criminal e para o julgamento, sob pena de quebramento da fiança) e 328 (proibição de mudar de residência, sem prévia permissão da autoridade processante, ou ausentar-se por mais de 8 (oito) dias de sua residência, sem comunicar àquela autoridade o lugar onde será encontrado, sob pena de quebramento da fiança) o que constará dos autos.

Em seguida o afiançado é posto em liberdade.

Se a fiança for requerida e paga após o recolhimento do preso autuado ao sistema prisional (centro de triagem ou presídio), será emitido alvará de soltura ou guia de soltura, a ser apresentado ao diretor ou carcereiro do estabelecimento para cumprimento.

Por fim, o Ministério Público, na condição de custus legis, terá vista do processo (através dos autos da comunicação do flagrante ou do inquérito concluído e remetido) a fim de requerer o que julgar conveniente: reforço, cassação, substituição por medidas cautelares, dentre outros, ou mesmo concordar (conf. art. 333).


CONCLUSÃO.

A reforma processual efetuada no capítulo da fiança, sem dúvida, prestigia a figura do Delegado de Polícia como operador do Direito, ampliando o âmbito de casos de concessão de liberdade provisória ainda na fase policial. Tal abrangência se coaduna com a nova feição garantista que vêm os Direitos Penal e Processual Penal, paulatinamente, adquirindo. Elogiável, portanto, a iniciativa do legislador brasileiro, que confiou à autoridade policial tão importante mister. O atingimento da finalidade legal depende, agora, da correta e proporcional aplicação do instituto ora analisado por esse valoroso profissional.


BIBLIOGRAFIA:

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; CABETTE, Regina Elaine Santos. Fiança, prisão preventiva e a matemática na Lei nº 12.403/11. Uma questão interdisciplinar. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2933, 13 jul. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 16 dez. 2011.

GARCIA, Ismar Estulano. Procedimento Policial: Inquérito e Termo Circunstanciado. 10. ed. Goiânia: AB, 2004.

GOMES, Amintas Vidal. Manual do Delegado – Teoria e Prática. 6 ed., rev. e atual. por Rodolfo Queiroz Lacerda. Rio de Janeiro: Forense, 2011.

GOMES, Luiz Flávio; MARQUES, Ivan Luiz (Coord.). Prisão e medidas cautelares: comentários à Lei 12.403, de 4 de maio de 2011. São Paulo: RT, 2011.

MARCÃO, Renato. Fiança: pagar ou não pagar? Eis a questão. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 3067, 24 nov. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br>. Acesso em: 16 dez. 2011.


Notas

  1. A fiança constitui uma garantia fundamental, prevista no art. 5º, LXVI, da Carta Magna, donde se lê que: "ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança". O instituto está regulamentado no Código de Processo Penal no título IX: Da prisão, das medidas cautelares e da liberdade provisória; no Capítulo VI: Da liberdade provisória, com ou sem fiança; artigos 321 ao 350.
  2. Ensina ainda o mencionado autor que: "A primeira constitui direito subjetivo do agente, quando satisfeitos os requisitos legais para seu arbitramento (art. 5, LXVI, da CF); a segunda não. Não se pode dizer, sem incidir em grave equívoco, que a fiança do art. 319, VIII, do CPP, constitui direito subjetivo do agente (...). É preciso reconhecer que a primeira só tem cabimento após prisão em flagrante, enquanto que a outra pode ser fixada em qualquer fase da investigação ou do processo, enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória, mesmo naquelas situações em que não tenha ocorrido prisão em flagrante (art. 334 do CPP)" (Marcão, 2011).
  3. Para maiores detalhes sobre os cálculos aritméticos, conferir o excelente artigo de Eduardo Luiz Santos Cabette e Regina Elaine Santos Cabette: "Fiança, prisão preventiva e a matemática na Lei nº 12.403/11. Uma questão interdisciplinar. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2933, 13 jul. 2011. Disponível em: <http://jus.com.br>".
  4. Defendendo a existência de apenas duas prisões cautelares após as reformas, ensina Luiz Flávio Gomes (2011, p. 25): "Agora com o advento da lei reformadora do CPP, nos termos do art. 283 (nova redação), passamos a contar com duas situações de prisão cautelar: (a) a temporária e (b) a preventiva. A prisão em flagrante, quando presentes os requisitos do art. 310, do CPP, deve ser convertida em preventiva (nos termos do novo art. 310, do CPP). Todas as demais hipóteses de prisão cautelar foram banidas do ordenamento jurídico brasileiro (ou seja: do direito ‘vivente’). As prisões decorrentes da sentença recorrível e da pronúncia foram extintas pelas leis da reforma do CPP (Leis 11.689/2008 e Lei 11.719/2008). Quanto à prisão (cautelar) resultante de acórdão recorrido fundamental foi o novo posicionamento do STF, que passou a vedar a possibilidade de execução provisória da pena".
  5. No estado de Sergipe, a Secretaria da Fazenda disponibiliza serviço pela internet (www.sefaz.se.gov.br) de expedição DAE (Documento de Arrecadação Estadual) para pagamento de fiança, a ser realizado em qualquer agência bancária até o vencimento. O comprovante autenticado pelo banco será juntado aos autos para fins de atestar a devida quitação.
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Sobre o autor
Tiago Lustosa Luna de Araújo

Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Pós-graduado em Ciências Penais pela UNISUL-IPAN-Rede LFG. Delegado da Polícia Civil no Estado de Sergipe.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Tiago Lustosa Luna. Roteiro da fiança concedida pelo delegado de polícia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3105, 1 jan. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20746. Acesso em: 29 mar. 2024.

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