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A motivação das decisões judiciais no processo penal militar

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01/02/2012 às 15:46
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4 O Modelo de Julgamento da Justiça Castrense face À Independência do Juiz e ao Princípio da Motivação

Conforme mencionado em linhas anteriores, a Justiça Militar profere seus julgamento de forma colegiada. Em primeiro lugar vota o Juiz-Auditor, em seguida os Juízes Militares, iniciando-se do mais novo ao mais antigo. Os julgamentos ocorrem por maioria de votos, que têm idêntico peso. Cabe ao Juiz auditor redigir a sentença, ainda quando seu voto restar vencido. Essa forma de julgamento é estabelecida no Código de Processo Penal Militar (CPPM) no art. 438:

Art. 438. A sentença conterá:

[...]

c) a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;

[...]

Declaração de voto

1º Se qualquer dos juízes deixar de assinar a sentença, será declarado, pelo auditor, o seu voto, como vencedor ou vencido.

Redação da sentença

2º A sentença será redigida pelo auditor, ainda que discorde dos seus fundamentos ou da sua conclusão, podendo, entretanto, justificar o seu voto, se vencido, no todo ou em parte, após a assinatura. O mesmo poderá fazer cada um dos juízes militares. (Grifou-se).

A Lei n.º 8457/92 (Lei de Organização Judiciária Militar) fixa no art. 30 a competência do Juiz-Auditor para a confecção das sentenças e demais decisões. Não faz menção expressa – ao contrário do CPPM - que o Juiz-Auditor deverá confeccionar as decisões nas situações em que seu voto for minoritário no Julgamento. Eis o teor do dispositivo legal:

Art. 30. Compete ao Juiz-Auditor:

[...]

VII - relatar os processos nos Conselhos de Justiça e redigir, no prazo de oito dias, as sentenças e decisões;

Os dispositivos acima mencionados, ao conferir ao juiz-auditor a atribuição de produzir documentalmente a sentença, mesmo quando discordar de seus fundamentos e conclusões, agride o princípio da independência do Poder Judiciário (art. 2.º da CF/88) e o princípio da fundamentação das decisões judiciais. No caso do art. 438, § 2.º do CPPM, por se tratar de diploma anterior à Constituição, opera-se o fenômeno da revogação ou da não recepção. Por outro lado, o art. 30 da Lei n.º 8.457/92 deve ser declarado inconstitucional, por afronta aos mesmos princípios. Passa-se, agora, a exposição dos motivos dessa assertiva.

A Constituição Federal estampa, no art. 2.º: "São poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário". O consagrado princípio da independência dos poderes, além de conferir ao magistrado proteção em face de intromissões indevidas dos outros poderes do Estado (garantia institucional), propicia ao juiz o direito de comandar sua atuação de forma livre, expondo seu entendimento conforme sua consciência, a prova dos autos e a ordem jurídica, justificando, evidentemente, sua decisão. Essa independência do juiz é vulnerada quando se impõe ao juiz-auditor a confecção de uma decisão em desconformidade com sua consciência, expressando conclusões e fundamentos que não decorreram de sua intelecção.

Não se concebe que um magistrado seja compelido a expor teses e argumentos – incabíveis em sua óptica – muitas vezes sem compreender o raciocínio dos juízes militares que divergiram de seu voto e tornaram-se vencedores. Quão difícil a missão do juiz-auditor, transpor para sua mente algo que não lhe pertence. Se o legislador – incorretamente – entendeu moldar a Justiça Militar com juízes togados e juízes militares, que o faça em obediência à Constituição Federal. Assim, nos julgamentos em que os votos dos juízes militares vitoriosos divergirem das conclusões exaradas pelo juiz-auditor vencido, caberá ao juiz-militar que iniciou a divergência confeccionar a sentença. Necessárias, pois, alterações no Código de Processo Penal e na Lei de Organização Judiciária Militar para preservar o princípio do independência dos juízes.

Cabe, agora, explicar como o modelo de julgamento da Justiça Militar insulta o art. 93, IX, da Constituição Federal, que consubstancia o princípio da fundamentação das decisões judiciais. A legislação processual penal militar não estabelece o dever de motivação dos votos dos juízes militares. O ato de fundamentar uma decisão é algo essencialmente pessoal, íntimo. Apenas quem profere o voto tem condições de explicar racionalmente o caminho percorrido até a conclusão sobre a culpa ou inocência do acusado. Assim sendo, nos casos de divergência entre o magistrado togado e os juízes militares, cumpre a estes motivarem os seus votos. Repise-se, não se pode aceitar que um juiz togado seja obrigado a fundamentar algo decorrente do entendimento de outro magistrado, de forma que, discordando os juízes militares do juiz-auditor, a elaboração da sentença deverá ser tarefa dos próprios juízes militares, mais especificamente, daquele que inaugurar a divergência.

Repele-se o argumento de que não se poderia exigir de um juiz militar, sem formação jurídica, a exposição dos fundamentos suficientes para sustentar uma condenação ou absolvição. O art. 93, IX da CF/88 não previu qualquer exceção em relação aos juízes militares, de sorte que não poderia a lei ordinária dispensá-los do dever de justificar suas manifestações de cunho decisório, nem tampouco exigir do juiz togado a apresentação de fundamentos de outros magistrados.

A inexistência de motivação das decisões proferidas pelo juízes militares depõe contra a própria razão de existência de juízes oriundos das instituições militares: a contribuição do magistrado com sua experiência e conhecimento da vida na caserna. Se o juiz militar não explicita as razões do seu convencimento, é retirada a oportunidade de auxiliar a formação do convencimento dos demais componentes do Conselho de Justiça. A experiência obtida por cada componente do Conselho não pode circunscrever-se ao hermético ambiente da intimidade do pensamento, mas deve ser aberta ao conhecimento das partes e do público, mediante a devida fundamentação dos seus votos. A ideia inerente a existência de um órgão colegiado, formado por pessoas com experiências diversas, conhecimentos peculiares, pontos de vista divergentes, enfim, uma série de circunstâncias que torna rica a tarefa de julgar. não é aproveitada quando só se exige do magistrado togado a exposição das razões de decidir, reprimindo ainda a capacidade argumentativa dos demais membros do órgão colegiado.

A única ressalva feita pela Constituição Federal à ausência de fundamentação das decisões judiciais diz respeito ao Tribunal do Júri. Com efeito, o art. 5.º, XXXVIII, "b", estabelece como princípio reitor desse órgão do Poder Judiciário o sigilo das votações. O jurado, também sem formação técnico-jurídica, não precisa justificar seu voto, para não sofrer represálias ou pressões indevidas. Caso se impusesse aos componentes do Conselho de Sentença a obrigação de explicar motivadamente as razões de seus vereditos, acabariam por revelar seu teor, fazendo cair por terra o sigilo das votações. Gostando ou não do Tribunal do Júri, a ausência do dever de motivar por parte do jurado existe por manifesta vontade do Poder Constituinte originário. Tivesse o constituinte a mesma intenção de dispensar os juízes militares de justificar suas decisões, o teria feito. Não o fazendo, não pode a legislação infra-constitucional deixar ao alvedrio de cada juiz militar expor ou não os fundamentos de suas decisões.

Poder-se-á argumentar sobre a possibilidade conferida ao juiz militar de adotar como razão de decidir os fundamentos da decisão do juiz-auditor. Nessa hipótese, coincidem as conclusões do juiz togado com as do juiz militar, de sorte que o famoso "com o relator" ainda pode ser aceito. Agora, em se tratando de conclusões diversas, não cabe ao juiz militar simplesmente votar em sentido contrário, sem veicular toda a fundamentação necessária para afastar os argumentos do magistrado concursado. Vale destacar que o Superior Tribunal Militar, atuante na segunda instância da Justiça Militar da União, é formado por 10 (dez) juízes militares e 05 (cinco) civis. Nem por isso os Ministros dos Superior Tribunal Militar provenientes das Forças Armadas são eximidos do dever de motivação.

Causa espanto quando se verifica, em alguns julgamentos encetados na primeira instância da Justiça Castrense, após o voto do juiz auditor pela absolvição do acusado, mediante apresentação das razões de fato e de direito, por meio de valoração das provas dos autos, muitas vezes com lições doutrinárias e pesquisa jurisprudencial, ser derrotado pelos juízes militares, com singelos "voto pela condenação", "entendo que o réu deve ser condenado, até para servir de exemplo", "embora não tenha provas, acho que ele praticou o crime", "concordo com o Ministério Público e condeno o réu". A lógica dos "achismos" não encontra espaço em um Estado Democrático de Direito, sendo dever de cada agente público justificar suas decisões. A hierarquia das normas jurídicas, já dizia o velho Kelsen, há de ser respeitada.

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5 Conclusões

A Justiça Militar tem composição heterogênea, integrada por juízes togados e membros das organizações militares, constituindo-se, destarte, em uma forma de escabinato, incompatível com uma atuação judicial que assegure a proteção da esfera jurídica das partes;

De qualquer magistrado é exigida uma sólida formação jurídica, de sorte que deve ser abolida do Poder Judiciário Pátrio a figura do juiz militar.

Os festejados valores da hierarquia e da disciplina, inerentes à vida militar, não tem o condão de solapar as garantias processuais dos litigantes, não se prestando, pois, como fonte inesgotável de arbitrariedades.

Uma das mais relevantes características do Estado Democrático de Direito é a necessidade de cada agente público de justificar os seus atos, de sorte que o princípio da motivação das decisões judiciais atua como importante barreira de contenção do poder judicial.

A motivação da decisão judicial propicia o adequado conhecimento das partes sobre o conteúdo da decisão, viabilizando o correto exercício da atividade impugnativa recursal.

O dever de motivar as decisões judiciais é personalíssimo, não se admitindo sua transferência a outros magistrados.

Não se aceita a motivação implícita no direito processual penal brasileiro, sendo inerente à função jurisdicional a exposição dos fundamentos da decisões de forma clara e coerente, mediante exame das provas e dos argumentos lançados pelas partes.

Os dispositivos do Código de Processo Penal Militar e da Lei de Organização Judiciária Militar, ao determinar ao juiz togado a incumbência de proferir sentença, mesmo quando discordar dos votos dos juízes militares, não se compatibiliza com os princípios constitucionais da independência do juiz e da motivação das decisões judiciais.


Referências

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FERNANDES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. 6.ª edição. São Paulo: RT, 2010.

GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A Motivação das Decisões Penais. São Paulo: RT, 2001.

MELLO, Rogério Lucastro Torres de. Ponderações sobre a motivação das decisões judiciais. Revista Forense. Volume 384. Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 171-183.

MEYER-PELUG, Samantha Ribeiro, SILVEIRA, Vladimir Oliveira. A Pena de Morte no Brasil, a Legislação Militar e a Justiça Militar. In RAMOS, Dircêo Torrecillas, ROTH, Ronaldo João, COSTA, Ilton Garcia da (Org.). Direito Militar: Doutrina e Aplicações. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p.335-356.

REIS, José Carlos Vasconcellos dos. Constituição e Processo: O Dever de Motivação das Decisões Judiciais à Luz do Princípio Democrático. Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes: nova série. v.1. Rio de Janeiro: UCAM, FDCM, 1996, p. 217-231.

SCHEID, Carlos Eduardo. A motivação das decisões penais a partir da teoria garantista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

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Sobre o autor
Marcelo Lopes Barroso

Defensor Público Federal em Fortaleza (CE). Professor da Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARROSO, Marcelo Lopes. A motivação das decisões judiciais no processo penal militar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3136, 1 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/20994. Acesso em: 28 mar. 2024.

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