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A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Ximenes Lopes” e a postura do Estado brasileiro no processo de garantia de direitos humanos

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09/02/2012 às 14:12
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4.A ATUAÇÃO DA COMISSÃO E DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO "XIMENES LOPES"

Como já dito no decorrer deste trabalho, a proteção aos direitos humanos no continente latino-americano encontra sua principal base legislativa no Pacto de São José da Costa Rica. Essa convenção data de 1969, começando a vigorar apenas no ano de 1978. Por sua vez, o Brasil tornou-se signatário apenas em 1992.

A Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos foram criadas pelo Pacto da Costa Rica a fim de conhecer de assuntos relacionados aos direitos firmados neste documento, protegendo a pessoa humana dos abusos e omissões dos Estados pactuantes.

Em apertada síntese, tem-se que cabe à Comissão, por um lado, requisitar informações e formular recomendações aos Estados signatários quando da existência de alguma situação que desrespeite os direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos. É o órgão principal, devendo agir como conciliadora, assessora, crítica, legitimadora, promotora e protetora em relação aos direitos humanos, conforme lecionam José Ricardo Cunha e Nadine Borges [08].

A propósito, complementam os autores afirmando que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos atua por três maneiras distintas: sistema de petições individuais, sistema de relatórios e sistema de investigação in loco. Para uma petição ser aceita perante a Comissão, deve preencher os requisitos de admissibilidade previstos no artigo 46 do Pacto de São José da Costa Rica, a saber: prévio esgotamento dos recursos na jurisdição nacional, apresentação da petição em até seis meses a contar da data da decisão definitiva e inexistência de litispendência no plano internacional. Como exceção, vê-se que será admitida a petição nos seguintes casos: quando não exista devido processo legal, quando o indivíduo não tenha acesso aos recursos da jurisdição interna e quando haja demora injustificada na decisão dos recursos.

Por sua vez, cediço que a Corte tem como objetivo maior a aplicação e interpretação da Convenção supracitada, tendo, por conseqüência e respectivamente, dois âmbitos de competência: consultiva e contenciosa. Francisco Rezek resume algumas características do órgão na seguinte passagem, em sua obra Direito Internacional Público – Curso Elementar (2010, p. 230):

A Corte não é acessível a pessoas ou a instituições privadas. Exauridas, sem sucesso, as potencialidades da comissão, pode esta transferir o caso ao conhecimento do colégio judiciário. [...] também pode fazê-lo outro Estado pactuante, mas desde que o país sob acusação tenha, a qualquer momento, reconhecido a competência da Corte para atuar em tal contexto. [...] Órgão judiciário que PE, a Corte não relata, nem propõe, nem recomenda, mas profere sentenças, que o Pacto aponta como definitivas e inapeláveis. Declarando, na fundamentação do aresto, a ocorrência de violação de direito protegido pelo tratado,, a Corte determina seja tal direito de pronto restaurado, e ordena, se for o caso, o pagamento de indenização justa à parte lesada.

Já foi exaustivamente salientada no presente artigo a importância desses dois órgãos para consecução de um julgamento justo no caso "Ximenes Lopes". Decerto, o comportamento do Estado brasileiro diante da morte da vítima obrigou sua família a buscar, na jurisdição internacional, a atenção necessária para tamanho desrespeito.

A princípio, importa notar que a Convenção Americana de Direitos Humanos impõe como requisito à admissibilidade de um pedido na Comissão Interamericana o esgotamento da jurisdição interna. Se apenas existisse esse dispositivo, sem qualquer exceção, certamente seria fonte de injustiças das mais perversas, visto que possibilitaria a países que mantém um Judiciário falho e lento – como o Brasil – a se livrar de possíveis sanções.

Em verdade, tal matéria foi arguida em sede de preliminar de mérito pelo Estado brasileiro no processo perante a Corte, já que havia um processo penal em andamento no país. Para o Brasil, a ação existente seguia os moldes constitucionais e processualísticos pátrios, respeitando, inclusive e primordialmente, o devido processo legal. Todavia, não seria lógico aquele colégio judiciário admitir tal premissa (como realmente não admitiu!), já que, conforme mostrado, apesar de existir processo penal cujo objeto era a morte de Damião Ximenes Lopes, estava eivado de um vício que contamina o Judiciário brasileiro como o todo: a ausência de duração razoável.

Desde as falhas no sistema público de saúde, incapaz de fiscalizar as instituições a ele vinculadas, até a persecução penal parcial e imersa em problemas inconcebíveis, o certo é que a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos apontaram omissões gravíssimas do Estado brasileiro quanto à violação de prerrogativas fundamentais.

Esse processo se revestiu de importância ímpar, tendo em vista que foi a primeira condenação do Brasil no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos, servindo para alertar o Estado brasileiro da necessidade de se implementar reformas no sistema público de saúde e no sistema processual, evitando que ofensas aos direitos humanos, como as relatadas no caso "Ximenes Lopes", se repitam.

Infelizmente, no entanto, não há como afirmar que houve uma espécie de "divisor de águas" quanto à sentença proferida na Corte: não há um Brasil violador de direitos humanos antes e um Brasil respeitador desses direitos após a referida decisão. Em verdade, a realidade pouco se modificou, sendo notória a existência de milhares de casos de violações de direitos fundamentais pelo Estado brasileiro. Por maior que tenha sido a repercussão do caso "Ximenes Lopes" e da condenação brasileira, não se pode falar num sistema efetivo de proteção a direitos dessa natureza, corroborando, nesse sentido, o brilhante ensinamento de Paulo Sérgio Pinheiro (apud CUNHA e BORGES, p. 38):

O sistema global ou os sistemas regionais de proteção aos direitos humanos nos hemisférios sul e norte nunca serão eficazes por completo para os excluídos, se os países não solucionarem a deficiência da legislação interna, a ineficácia do poder judiciário, a inoperância do aparato repressivo do Estado e a implementação precária dos direitos no âmbito nacional.


5.CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das considerações supra declinadas, restou inconteste a existência de um Direito Internacional dos Direitos Humanos, responsável por situar o ser humano no centro das relações jurídicas internacionais, como sujeito de direitos a quem são garantidas prerrogativas fundamentais à consecução de uma existência digna.

Esse Direito Internacional é marcado pela presença de ordenamentos supranacionais que reforçam o caráter universal de direitos dessa natureza e tem servido de norte e/ou de fundamento na organização dos sistemas jurídicos internos, orientando, primordialmente, os Estados a se portarem de modo a materializar as garantias mais básicas.

Nesse sentido, atestou-se, como consequência direta e mais importante dessa ordem supranacional, a importância dos instrumentos utilizados para a efetivação dos direitos humanos, destacando-se, no continente latino-americano, a atuação da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos como essencial à proteção destinada aos indivíduos em face dos abusos e das omissões estatais. No caso "Ximenes Lopes", por exemplo, o papel desses órgãos foi de suma relevância para o alcance da responsabilidade do Brasil pela morte da vítima, bem como pela postura de desrespeito na persecução penal sobre o caso. Certamente, em conhecendo todas as circunstâncias que cercavam o caso, sem a busca pela jurisdição internacional e atuação da Comissão e da Corte supracitadas, a família de Damião Ximenes Lopes não teria obtido a solução dada por esta última à lide.

Por outro lado, verificou-se que, mesmo com todo o discurso em prol da efetivação de direitos humanos no mundo inteiro, a prática ainda é bastante diferente, sendo corriqueiros os casos de violações a essas garantias tão elevadas no plano teórico. No Brasil, em especial, o cenário de proteção aos direitos fundamentais é caótico, transparecendo a ineficácia do Estado em garanti-los.

Analisando o falecimento de Damião Ximenes Lopes, devido à atuação de profissionais pouco capacitados ligados ao sistema público de saúde brasileiro, restou nítido quão pouco este país tem feito para dar efetividade aos preceitos da sua Carta Magna, não promovendo direitos básicos à emancipação de qualquer ser humano. De fato, a saúde é direito dos mais essenciais, consectário do próprio direito à vida, merecendo atenção e políticas públicas realmente voltadas a materializá-lo.

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Em realidade, foi ostensivamente mostrado que o Brasil claudicou quanto à garantia a vários bens jurídicos abarcados pelo ordenamento pátrio e com previsão no Pacto São José da Costa Rica. Sendo assim, conclui-se que a condenação do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela violação aos direitos à vida, à integridade pessoal e às garantias judiciais, reflete a necessidade de se constituir um sistema eficaz de garantias, promovendo políticas concretas, sob pena de perpetuar um cenário de injustiça.

Ademais, após exame da situação fática em comento, houve verdadeiro reforço à visão geral de inoperância que se tem do Judiciário brasileiro. Na realidade, se concluiu que, mesmo com a condenação internacional por conta da inoperância do Poder Judiciário brasileiro, verificada no caso "Ximenes Lopes" e em outros tantos relatos semelhantes, a postura de descaso de tal poder ainda é bastante presente, sendo propagada diariamente uma imagem de parcialidade e ineficiência, contrariando a própria lógica do que propõe o ordenamento jurídico brasileiro.

Nesse passo, diante da sanção imposta ao Estado brasileiro por sua desídia no caso "Ximenes Lopes" e considerando que a realidade no país ainda está distante de garantir as mínimas condições de vida preceituadas na Constituição brasileira e nos tratados internacionais, a indicação não poderia tomar rumo diverso: se faz essencial que os poderes constituídos, em todas as suas três dimensões, se portem a fim de assegurar essas prerrogativas, sendo imprescindível, por outro lado, que os cidadãos cobrem a atuação das autoridades nacionais, recorrendo, inclusive, à intervenção da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sempre que aquelas forem omissas. Deve-se lembrar sempre que, por mais que existam sistemas internacionais de implementação de Direitos Humanos voltados à proteção da pessoa humana, estes não terão eficácia completa e não solucionarão as falhas nas garantias básicas caso não existam Estados organizados para esse fim, com todo seu aparato funcionando satisfatoriamente.


REFERÊNCIAS

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CUNHA, José Ricardo et alli.A efetivação dos direitos humanos pelo Poder Judiciário no Rio de Janeiro. Revista Ciências Sociais Aplicadas – Direito. Disponível em: http://www.sbpcnet.org.br/livro/58ra/SENIOR/RESUMOS/resumo_498.html. Acesso em: 13 out 2011.

FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. 1ª. Ed. São Paulo: Malheiros, 2010.

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PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Direitos Humanos: doutrina – legislação. 3ª Ed. São Paulo: Método, 2009.

REZEK, Francisco. Direito Internacional Público – curso elementar. 12ª. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

SARMENTO, Daniel. Livres e iguais: estudos de Direito Consitucional. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010.

TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6ª. Ed. São Paulo: Saraiva. 2008.

VENTURI, Gustavo (org.). Direitos Humanos: percepções da opinião pública. 1ª. Ed. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, 2010.


Notas

  1. Apesar da distinção conceitual existente entre "direitos humanos" e "direitos fundamentais", conforme preceitua Humenhuk (2002), neste trabalho os termos serão utilizados indistintamente, dada a íntima ligação existente entre eles, o que, certamente, não trará prejuízo à compreensão do tema.
  2. Nesse sentido, Sidney Guerra, em "A proteção internacional da pessoa humana e a consolidação do Direito Internacional dos Direitos Humanos" (p. 13).
  3. Nesse sentido, "A garantia dos direitos humanos na reconstrução do Estado de Direito: a luta contra a exclusão", in Direitos Humanos e Poder Judiciário no Brasil (p. 7).
  4. Francisco Rezek, Direito Internacional Público – curso elementar, p. 229.
  5. Segundo dados da pesquisa Percepções sobre Direitos Humanos no Brasil, realizada em 2008 pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a saúde é considerada o direito mais importante pelos brasileiros.
  6. Idem, p. 16.
  7. Palavras usadas, inclusive, no depoimento de João Alfredo Teles Melo, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembléia Legislativa do Ceará à época dos fatos.
  8. Idem, p. 41.
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Sobre o autor
Saulo Medeiros da Costa Silva

Doutorando em Direito e Ciências Sociais pela UMSA/AR. Pós-graduado em Direito Tributário pelo IESP. Graduado em Ciências Jurídicas pela UEPB. Ex-Diretor Administrativo e Membro do Conselho Fiscal do Instituto Paraibano de Estudos Tributários – IPBET. Presidente da Comissão de Estudos Tributários da OAB/PB – Subseção de Campina Grande. Professor de Direito Tributário e Financeiro da Escola Superior da Advocacia – ESA, Subseção de Campina Grande/PB e do Centro de Ensino Superior Reinaldo Ramos – CESREI. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Saulo Medeiros Costa. A condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso “Ximenes Lopes” e a postura do Estado brasileiro no processo de garantia de direitos humanos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3144, 9 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21056. Acesso em: 29 mar. 2024.

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