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O direito de morrer dignamente

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11/02/2012 às 17:35
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4 – EUTANÁSIA, SUICÍDIO ASSISTIDO, DISTANÁSIA E ORTOTANÁSIA.

4.1 – Breve introdução

Depois de apresentados o direito à vida digna, o direito à liberdade, a relação médico-paciente e os requisitos de validade da autonomia privada do paciente, faz-se necessário apresentar as modalidades de disposição da vida solicitadas por aqueles que reivindicam a própria morte.

Amplamente discutida e de diversas formas encarada no mundo e nas religiões, a eutanásia é a modalidade da qual mais se tem ouvido falar. Mas, nem por isso, está bem esclarecida para a sociedade. A doutrina oferece diversos conceitos e distinções de eutanásia. Muitos simpósios abordaram a eutanásia, a distanásia, a ortotanásia e “outros vocábulos exóticos foram equacionados na discussão, gerando uma verdadeira alquimia semântica, que não deixa de ser perigosa porque pode dar origem a interpretações variadas” (SANVITO, 2002, p. 66).

4.2 – Eutanásia

Eutanásia é uma palavra que vem do grego, eu (boa) e thanatos (morte), e, em sua origem, quer dizer “boa morte, morte apropriada, morte piedosa, morte benéfica” (SÁ, 2005, p.38). A primeira utilização do termo eutanásia foi feita pelo filósofo inglês “Francis Bacon, em 1623, em sua obra Historia vitae et mortis” (SOUZA, 2002, p. 146).

De acordo com Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2001), a eutanásia, em sua origem, não tinha a intenção de causar a morte, ainda que para cessar os sofrimentos do doente. O primeiro sentido do termo, segundo a autora, referia-se a facilitar o processo de morte, sem, entretanto, interferência neste. Ainda sobre a origem do termo, a professora complementa: 

Na verdade, conforme o sentido originário da expressão, seriam medidas eutanásicas não a morte, mas os cuidados paliativos do sofrimento, como acompanhamento psicológico do doente e outros meios de controle da dor. Também seria uma medida eutanásica a interrupção de tratamentos inúteis ou que prolongassem a agonia. Ou seja: a eutanásia não visava à morte, mas a deixar que esta ocorresse da forma menos dolorosa possível (BORGES, 2001, p. 285).

Contudo, a concepção atual de eutanásia já não é mais a mesma. Hoje, ela é tida como ato médico, movido pela piedade, de abreviação da vida de doente com doença incurável e forte sofrimento, que solicita a própria morte.

A par disso, é imperioso destacar quatro elementos importantes para a configuração da eutanásia: “o requerimento por parte do paciente; a piedade diante da indigna situação do indivíduo; a gravidade da doença e a realização do ato pelo profissional da medicina” (SÁ, 2005, p. 136).

Maria de Fátima Freire de Sá (2005, p. 39) reforça a idéia de que a eutanásia, atualmente, “é a conduta por meio da ação ou omissão do médico, que emprega, ou omite, meio eficiente para produzir a morte em paciente incurável e em estado de grave sofrimento, diferente do curso natural, abreviando-lhe a vida”.

Corroborando este raciocínio, Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2001, p. 285-286) assinala: “em vez de deixar a morte acontecer, a eutanásia, no sentido atual, age sobre a morte, antecipando-a”. Para a autora, “só é eutanásia a morte provocada em doente com doença incurável, em estado terminal e que passa por fortes sofrimentos, movida por compaixão ou piedade em relação ao doente”.

A eutanásia, neste sentido, atualmente, constitui crime de homicídio, classificado como privilegiado, perante o Código Penal Brasileiro. Entretanto, o sentimento de piedade que impulsiona o agente pode ensejar a redução da pena de um sexto a um terço, conforme prescrição do artigo 121, parágrafo 1º do Código Penal.

Homicídio simples

Art. 121 - Matar alguém:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos.

Caso de diminuição de pena

§ 1º - Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

Maria de Fátima Freire de Sá (2005, p. 39) apresenta dois elementos envolvidos na eutanásia, quais sejam: a intenção e o efeito da ação. Segundo a professora, “a intenção de realizar a eutanásia pode gerar uma ação, daí tem-se a “eutanásia ativa”, ou uma omissão, ou seja, a não realização de ação que teria indicação terapêutica naquela circunstância – “eutanásia passiva” ou ortotanásia”.

Wilson Luiz Sanvito apresenta a seguinte distinção entre eutanásia passiva e ativa:

Na eutanásia passiva, há omissão de tratamento tanto do ponto de vista farmacológico quanto da utilização de procedimentos ou recursos extraordinários de manutenção da vida, quer dizer, manutenção de vida por meio de equipamentos. A eutanásia ativa configura-se naqueles casos em que há um procedimento ativo do médico, ou de outro profissional da saúde, propiciando ou acelerando a morte do paciente (SANVITO, 2002, p. 66).

4.2.1 – Suicídio Assistido

O suicídio assistido, ou auxílio ao suicídio, “ocorre com a participação material, quando alguém ajuda a vítima a se matar oferecendo-lhe meios idôneos para tanto” (BORGES, 2007, p. 235). 

Para Roxana Cardoso Brasileiro Borges,

Para que a ação de auxílio ao suicídio tenha a valoração de eutanásia, é preciso que o paciente tenha solicitado a ajuda para morrer, diante do fracasso dos métodos terapêuticos e dos paliativos contra as dores, o que acaba por retirar a dignidade do paciente, segundo seu próprio entendimento (BORGES, 2007, p. 235).

A pessoa que induz, instiga ou auxilia o suicídio incorre nas sanções do artigo 122 do Código Penal, que prescreve:

Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio.

Art. 122 - Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça:

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de

1 (um) a 3 (três) anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave.

Suicídio assistido e eutanásia são condutas que não podem ser confundidas. Enquanto no suicídio assistido, a morte é resultado de uma ação da própria vítima, que foi orientada, auxiliada ou apenas assistida por terceiro, na eutanásia, a morte resulta diretamente de uma ação ou omissão de terceiro.

4.3 – Distanásia

Distanásia é um termo pouco conhecido na área da saúde, mas que, ao contrário da eutanásia, que é muito menos praticada, está sendo uma praxe nos hospitais de hoje (PESSINI, 2002). Para Léo Pessini (2002, p. 76), “trata-se de atitude médica que, visando salvar a vida do paciente terminal, submete-o a grande sofrimento”.

O termo, segundo o autor, é de origem grega, tendo o prefixo dys o significado de “ato defeituoso”. Assim, o termo significa o “prolongamento exagerado da morte de um paciente” (PESSINI, 2002, p. 76), podendo ser empregado como sinônimo de tratamento inútil, pois, nesta conduta, não se encomprida a vida propriamente dita, mas o processo de morrer.

Este “prolongamento exagerado da morte” também pode ser chamado de obstinação terapêutica que constitui:

Uma prática médica excessiva e abusiva decorrente diretamente das possibilidades oferecidas pela tecnociência e como o fruto de uma teimosia de estender os efeitos desmedidamente, em respeito à condição da pessoa doente. A obstinação terapêutica surge como um ato profundamente anti-humano e atentatório à dignidade da pessoa e a seus direitos mais fundamentais (BAUDOUIN, Jean-Louis; BLONDEAU, Danielle. apud BORGES, 2007, p. 231).

Criticando esta conduta, Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2007), ressalta que nessas situações em que os tratamentos se tornam um fim em si mesmos, o paciente está em risco de sofrer medidas desproporcionais, já que os interesses da tecnologia deixam de estar subordinados aos interesses do ser humano. Conclui, então, que a distanásia “é expressão da obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, sem a devida atenção em relação ao ser humano” (BORGES, 2007, p. 236).

Léo Pessini (2002, p. 77) considera que “a distanásia (obstinação terapêutica) começou a se tornar um problema ético de primeira grandeza à medida que o progresso técnico-científico começou a interferir de uma forma decisiva nas fases finais da vida humana”. Sua prática, conforme Maria de Fátima Freire de Sá (2005, p. 39) está do lado oposto da eutanásia e “dedica-se a prolongar, ao máximo, a quantidade de vida humana, combatendo a morte como grande e último inimigo”. A distanásia, portanto, não é uma modalidade de eutanásia, mas exatamente o seu inverso.

4.4 – Ortotanásia

Em oposição à distanásia, está a ortotanásia que, em termos simples, quer dizer morte correta. O termo orto significa certo e a tradução do vocábulo grego thanatos é morte.

Na ortotanásia [03], o processo de morte ocorre naturalmente. Afinal, a conduta que lhe é própria tem caráter omissivo, qual seja o de suspensão do tratamento médico que adia, injustificadamente, a concretização do evento morte. Segundo Maria de Fátima Freire de Sá,

Entende-se que a eutanásia passiva, ou ortotanásia, pode ser traduzida como mero exercício regular da medicina e, por isso mesmo, entendendo o médico que a morte é iminente, o que poderá ser diagnosticado pela própria evolução da doença, ao profissional seria facultado, a pedido do paciente, suspender a medicação utilizada para não mais valer-se de recursos heróicos, que só têm o condão de prolongar sofrimentos (distanásia) (SÁ, 2005, p. 134). 

É importante ressaltar que, mesmo talvez sendo considerada como exercício regular da medicina, é necessária a consulta à família, pois são “os parentes os guardiões dos interesses do doente incapaz” e, também, “porque tal medida traria segurança ao médico, evitando-se possível ação judicial em face do profissional” (SÁ, 2005, p. 135).

A ortotanásia não está prevista no Código Penal Brasileiro. Entretanto, no Anteprojeto para modificação da Parte Especial do Código Penal, havia previsão, no artigo 121, para a ortotanásia, como hipótese de exclusão de ilicitude:

Eutanásia

§3º - Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave:

Pena – reclusão de três a seis anos.

Exclusão de ilicitude

 §4º - Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.

Esta modificação na Parte Especial do Código Penal não aconteceu, mas é de se notar que, acompanhando os ditames doutrinários, já naquele projeto de lei, nos casos de eutanásia e de ortotanásia, há a exigência do pedido do paciente, ou do seu consentimento. No caso da ortotanásia, como foi prescrito no §4º, é admitido o consentimento do ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão na impossibilidade de o paciente expressar sua vontade. No Código Penal vigente, porém, “o pedido da vítima não serve para afastar a ilicitude, sendo o consentimento irrelevante para a caracterização do que se chama eutanásia” (BORGES, 2007, p. 239).

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5 – PROPOSIÇÕES ACERCA DO DIREITO DE MORRER DIGNAMENTE

Considerando tudo que se expôs ao longo do trabalho, parece certo que a proteção jurídica direcionada à vida volta-se para a vida humana digna, o que implica reconhecer a pessoa como um fim último e jamais como recurso para alcance de quaisquer outras finalidades. Assim, se também parece inquestionável caber ao Estado permitir que o ser humano desenvolva sua personalidade de forma saudável, impõe-se autorizar que ele exerça a liberdade. Fundindo tais aspectos, pode-se dizer que a vida deve ser concretizada através da liberdade. E, sendo assim, se a morte é apenas uma fase da vida, talvez ela também possa ser livremente escolhida pela própria pessoa. Senão, veja-se.

Parece certo que se impõe que a proteção jurídica à vida volte-se para a vida digna, o que implica reconhecer que o ser humano pode exigir ser respeitado como um fim em si mesmo. Da mesma forma, certo é que cabe ao Estado permitir que o ser humano desenvolva sua personalidade de forma saudável, o que pode ser fruto da autorização para que se exerça a liberdade.

O artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988 apresenta como um dos fundamentos da República a dignidade da pessoa humana. Há situações, porém, em que a defesa desta apresenta-se de uma forma muito delicada. São situações que envolvem os direitos fundamentais à vida e à liberdade.

A vida, como demonstrado ao longo deste trabalho, não se resume apenas a seu caráter biológico, mas integra-se também de elementos psíquicos e espirituais que compõem a personalidade da pessoa. A concepção deste direito não deve ser feita de forma isolada, mas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana.

A liberdade, por seu turno, é um direito cujo exercício propicia o desenvolvimento da personalidade. Tal direito, como já ressaltado, encontra seus limites na liberdade alheia, ou seja, uma pessoa pode exercer sua liberdade sem, com isso, invadir a liberdade de outra. O fato de o homem viver em sociedade revela a necessidade deste limite.

Analisados estes direitos, fica mais fácil apresentar e discutir um polêmico tema que a eles se relaciona, qual seja: a reivindicação ao direito de morrer dignamente das pessoas com doença grave e incurável, que estejam em estado terminal, assim definido pela medicina.

Todos os dias, no mundo todo, pessoas nesta situação pedem que lhes seja permitido morrer, por si mesmas, ou que seja permitido que outras pessoas as matem (DWORKIN, 2003).

Seguindo esta linha, Ronald Dworkin complementa:

Os médicos dispõem de um aparato tecnológico capaz de manter vivas – às vezes por semanas, em outros casos por anos – pessoas que já estão à beira da morte ou terrivelmente incapacitadas, entubadas, desfiguradas por operações experimentais, com dores ou no limiar da inconsciência de tão sedadas, ligadas a dúzias de aparelhos sem os quais perderiam a maior parte de suas funções vitais, exploradas por dezenas de médicos que não são capazes de reconhecer e para os quais já deixaram de ser pacientes para tornar-se verdadeiros campos de batalha. Situações desse tipo nos aterrorizam a todos. Também temos medo – alguns mais que outros – de viver como um vegetal inconsciente, mas escrupulosamente bem cuidados. Cada vez mais, nos damos conta da importância de tomar uma decisão com antecedência: queremos ou não ser tratados desse modo? (DWORKIN, 2003, p. 252).

Amedronta a todos a idéia de viver em estado vegetativo. Este medo faz com que muitas pessoas reflitam sobre o modo como gostariam de ser tratadas caso enfrentassem uma doença grave incurável, encontrando-se em estado terminal.

Estas questões sempre vêm à tona quando se fala dos avanços da medicina. Eles contribuíram para que, atualmente, o próprio paciente reivindicasse o direito de morrer dignamente. “Há uma preocupação sobre a salvaguarda da qualidade de vida da pessoa, mesmo na hora da morte” (BORGES, 2001, p. 284). Entretanto, segundo Roxana Cardoso Brasileiro Borges (2001, p. 284), “alguns procedimentos médicos, em vez de curar ou propiciar benefícios ao doente, têm apenas prolongado o processo de morte”.

Biologicamente, pessoas podem ser mantidas em funcionamento indefinidamente, de forma artificial, sem nenhuma perspectiva de cura ou melhora (BORGES, 2001, p. 284). A esse respeito, Cimon Hendrigo Burmann de Souza questiona:

será que toda essa tecnologia está  mesmo a serviço da pessoa humana, tornando a morte, que também é parte integrante da vida, um evento mais digno? Ou será que a tecnologia, em vez de somente acrescentar vida aos anos, busca também prolongar o sofrimento durante a fase final da existência? (SOUZA, 2002. p. 141).

Se a vida não vai ser considerada apenas no seu caráter biológico, mas também na acepção mais biográfica (SILVA, 2003, p.196), seria justo prolongar artificialmente a vida de uma pessoa já em estado terminal? É possível deixar ao sujeito a escolha do momento de morrer? Por mais amplo que seja o direito a liberdade, ele abrangeria também esta opção?

No desenvolvimento deste trabalho, foram trazidas considerações acerca das modalidades de abreviação da vida. Entretanto, é necessário explicar o que vem a ser o polêmico e reivindicado direito de morrer dignamente. Para Roxana Cardoso Brasileiro Borges:

O direito de morrer dignamente é a reivindicação por vários direitos, como a dignidade da pessoa, a liberdade, a autonomia, a consciência; refere-se ao desejo de se ter uma morte humana, sem o prolongamento da agonia por parte de um tratamento inútil. Isso não se confunde com o direito de morrer. Esse tem sido reivindicado como sinônimo de eutanásia ou de auxílio ao suicídio, que são intervenções que causam a morte. Não se trata de defender qualquer procedimento que cause a morte do paciente, mas de reconhecer a sua liberdade e sua autodeterminação (BORGES, 2007, p. 232).

Por envolver a vida, que é um direito fundamental e, por isso, indisponível, esta solicitação está cercada de polêmicas.

O ordenamento jurídico brasileiro não prevê o direito de morrer dignamente. A eutanásia, em sua modalidade ativa, configura crime de homicídio privilegiado, em virtude do sentimento de piedade que impulsiona o agente, conforme o artigo 121, § 1º do Código Penal. Também é crime induzir, instigar ou auxiliar a suicídio, de acordo com o artigo 122 do mesmo diploma legal.

A distanásia, que, contrariamente à eutanásia, tem o foco na manutenção da vida, através do prolongamento exagerado do tratamento, é uma conduta que está se tornando cada vez mais comum nos hospitais (PESSINI, 2002). Entretanto, tal conduta, também chamada de obstinação terapêutica, constitui uma prática que atenta contra a dignidade humana, uma vez que, com o prolongamento do tratamento de um paciente já em estado terminal, prolonga-se, também, a agonia e o processo de morte.

De lado oposto, está a ortotanásia, a modalidade passiva da eutanásia, cujo caráter é omissivo, importando na suspensão do tratamento médico que adia, injustificadamente, a concretização do evento morte. A ortotanásia é conduta atípica perante o Código Penal Brasileiro, talvez podendo ser considerada como exercício regular da medicina. Entretanto, para sua configuração, é também necessária a solicitação do paciente, já que apenas este pode decidir sobre sua vida.

Mesmo sendo reconhecida a autonomia do paciente, não há que se esquecer a irrenunciabilidade e a indisponibilidade do direito à vida. Por isso, não é possível que uma pessoa solicite que outra a mate ou lhe auxilie a suicidar. Isto, porém, não justifica o prolongamento exagerado de um tratamento, haja vista a irreversibilidade do estado do paciente e o prolongamento de seu sofrimento.

A vedação à prática do auxílio ao suicídio e da eutanásia (homicídio privilegiado) não serve para permitir ou justificar a distanásia. Enquanto aquelas antecipam a morte abreviando a vida, esta prolonga a vida, de forma artificial, e o processo de morte. A distanásia visa a prolongar a vida, não tendo por objetivo propiciar sua qualidade.

Assim, a ortotanásia parece responder melhor aos anseios de pacientes que reivindicam o direito de morrer dignamente, posto que, por meio de tal conduta, o processo de morrer ocorre naturalmente. Não há a abreviação da vida nem o prolongamento de um tratamento inútil.

A opção pela ortotanásia permite fazer uma importante distinção entre tirar uma vida e deixar uma pessoa morrer. Para Norman Geisler (1997, p. 198), “o primeiro ato pode ser errado, ao passo que o último, na mesma situação, não precisa ser errado”. Retirar o medicamento de um paciente em estado terminal – desde que haja consentimento – e deixá-lo morrer naturalmente não parece ser um mal moral, talvez seja a coisa mais misericordiosa a se fazer. O autor complementa seu raciocínio: 

Isto não quer dizer que um médico deva dar remédios ou fazer uma operação para apressar a morte – isto poderia, muito provavelmente, ser assassinato. Mas esta posição realmente subentende que permitir misericordiosamente a morte do sofredor é moralmente certo, ao passo que precipitar sua morte não o é. Os remédios devem ser dados para aliviar o sofrimento mas não para apressar a morte. Se, porém, a falta de remédios ou da máquina pode diminuir o sofrimento ao permitir que a morte ocorra mais cedo, então por que se deve ficar moralmente obrigado a perpetuar o sofrimento do paciente por meios artificiais? Em síntese, matar envolve tirar a vida de outra pessoa, ao passo que a morte natural não o envolve; é meramente deixar a pessoa morrer. O homem é responsável por aquele ato, mas Deus é responsável por este (GEISLER, 1997, p. 198. Grifos no original).

É importante relembrar que, ainda que se entenda a ortotanásia como exercício regular da medicina, é necessária a solicitação do paciente, no sentido da interrupção do tratamento a que está sendo submetido.

Para se evitar uma possível responsabilização do médico, sugere-se um pedido judicial, com ciência do hospital, ao qual deve-se anexar a solicitação escrita do paciente, um laudo contendo toda a história da doença, bem como os tratamentos que lhe foram oferecidos, a opinião escrita de dois médicos não envolvidos no caso e a comprovação de que o paciente recebeu um acompanhamento psicológico para comprovar a veracidade do pedido (SÁ, 2005). 

Em que pesem a indisponibilidade do direito à vida e o fato de que somente a pessoa pode decidir sobre a manutenção de seu tratamento, não se pode esquecer dos casos em que o paciente não pode se manifestar em virtude do estado de inconsciência. Nesses casos, poderia a solicitação partir dos familiares do paciente? Para esses casos, ousa-se sugerir, também, o pedido judicial feito pela família – cônjuge, companheiro (a), ascendente, descendente ou irmão (ã) – solicitando ao juiz a permissão para a suspensão do tratamento [04]. Para esta hipótese, seria necessário anexar também a documentação indicada para o pedido, principalmente a solicitação do paciente, feita em momento anterior ao estado de inconsciência. Solicitação esta que embasaria o pedido judicial proposto pela família à qual se deu legitimidade. A possibilidade de o pedido judicial ser feito pela família, conforme determinação do paciente, reforça a idéia da autonomia deste. 

As sugestões feitas neste trabalho não têm o objetivo de esgotar o tema, haja vista sua complexidade. A defesa da ortotanásia como a melhor forma de atender aos anseios de pacientes em estado terminal que reivindicam a própria morte justifica-se pelo fato de que a dignidade da pessoa será respeitada e sua autonomia será reconhecida.

O que se pretende, portanto, é mostrar que o ser humano tem o direito de reivindicar um fim de vida digno, o que representa aceitar que a morte faz parte da vida, não devendo esta ser mantida às custas de dor e sofrimento.


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Sobre o autor
Aluisio Santos de Oliveira

Advogado, Professor de Direito Civil II (Atos, Fatos e Negócios Jurídicos). Pós-graduado em Direito Privado pela Universidade Gama Filho (2008). Graduado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas de Itabira (Fachi).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Aluisio Santos. O direito de morrer dignamente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3146, 11 fev. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21065. Acesso em: 16 abr. 2024.

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