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A preclusão, a coisa julgada e a eficácia preclusiva da coisa julgada: exegese do art. 474 do Código Buzaid e a posição adotada pelo projeto para um novo CPC

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17/04/2012 às 14:21
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A eficácia preclusiva da coisa julgada material é uma circunstância processual complexa, a partir da fixação de precisos conceitos de preclusão e de coisa julgada material e formal.

Índice: Resumo. I. Introdução. II. Dos fenômenos da preclusão e da coisa julgada formal e material. III. Da eficácia preclusiva da coisa julgada material: previsão do art. 474 do Código Buzaid e do art. 489 do Projeto para um novo CPC. IV. Conclusão. Referências doutrinárias.

Palavras-chave: Preclusão e Coisa julgada. Coisa julgada material e formal. Eficácia preclusiva da coisa julgada material.

RESUMO

O presente trabalho intenta acrescentar algumas objetivas linhas a respeito do fenômeno denominado “eficácia preclusiva da coisa julgada material”, prevista no art. 474 do Código Buzaid. Trata-se de circunstância processual complexa, a exigir detalhado e autônomo tratamento, a partir da fixação de precisos conceitos do que seja a preclusão e a coisa julgada material e formal. O estudo também se justifica pela atualidade da discussão a respeito da possibilidade de entrada em vigor de um novo CPC, Projeto 166/2010, e do tratamento que vem sendo dado à matéria a partir dele.


I – INTRODUÇÃO

Avançando nos estudos de Processo civil e articulação de seus importantes institutos, chega-se a oportunidade de investigarmos um dos mais densos artigos do Código Buzaid, qual seja, o art. 474, o qual gera muitas incompreensões na prática do foro e principalmente no ambiente acadêmico, justamente em razão da complexa relação fixada entre a preclusão e a coisa julgada material[1] - a redundar em interessante fenômeno denominado de “eficácia preclusiva da coisa julgada material”. Eis a razão pela qual, no nosso sentir, o Projeto 166/2010, para um novo Código de Processo Civil, bem captou a necessidade de tratar com mais clareza do tema, o que fez, como se verá, ao disciplinar a matéria no art. 489.


II – DOS FENÔMENOS DA PRECLUSÃO E DA COISA JULGADA FORMAL E MATERIAL

1. Antes de adentrarmos, em minúcias, nos contornos do dispositivo infraconstitucional que regula a denominada “eficácia preclusiva da coisa julgada material”, relevante que discorramos sobre os fenômenos, em perspectiva autônoma.

A coisa julgada, tradicionalmente subdividida pela doutrina em material e formal, vincula-se especificamente às sentenças, não mais passíveis de exame; enquanto a preclusão se refere não só às decisões finais (sentenças), mas também às decisões proferidas no curso do processo (interlocutórias). De fato, a preclusão apresenta-se no processo, à medida que, no curso deste, determinadas questões são decididas e eliminadas[2]; apresentando-se também no momento final, quando é pressuposto necessário da coisa julgada substancial[3].

2. Aliás, destaca-se o fato de como na história (registro especial ao direito germânico na alta idade média – séculos V-XI), houve uma inadequada fusão dos termos (preclusão e coisa julgada, aplicando-se indiscriminadamente o último, em detrimento da primeiro), sendo usual o emprego da expressão “sentença interlocutória”[4].

Explica-nos Chiovenda que essa “uniformização de nomenclatura que dá margem a muitos erros e confusões”[5] é mesmo própria do processo germânico/bárbaro, que acabou influenciando a grande maioria dos sistemas processuais, inclusive o italiano, mas tão só a partir de época posterior à do direito romano – o qual, especialmente no último período da extraordinaria cognitio, mantinha uma fiel e nítida diferenciação entre a sentença que encerra o feito e adquire autoridade de coisa em julgado, das pronúncias do juiz em meio ao seu trâmite[6]. Já no direito romano-canônico ou italiano-medieval, no século XII, constatou-se a presença de resquícios das concepções traçadas pelo direito germânico anterior, sendo previsto que o recurso de apelação poderia voltar-se tanto contra decisões definitivas quanto contra interlocutórias (interlocutiones)[7]; restando inapropriadamente sedimentado, neste estágio, que a então denominada sententia interlocutoriae, caso não impugnada, passava em julgado, criando verdadeira res judicata que impedia a rediscussão da matéria na hipótese de ausência de impugnação recursal[8].

Ainda a respeito, registram Calamandrei e Zanzucchi que a tradição romana de bem diferenciar a decisão final das providências preliminares foi restabelecida, já sem resquícios, pelo Código Processual de 1940[9]. Quanto ao sistema pátrio, a aludida imprecisa tradição dos tempos mais remotos do direito comum fora rompida pelo Código Processual de 1939, sendo seguida pelo atual CPC que, no art. 162, diferencia expressamente a sentença da decisão interlocutória[10].

De acordo com o atual sistema pátrio e tradicional doutrina, capitaneada por Liebman, tem-se que a coisa julgada material (art. 467 CPC) somente atua sobre as sentenças definitivas (art. 269 CPC), impedindo que a questão meritória venha a ser novamente discutida em outro processo – e pressupõe a existência da coisa julgada formal, que, por sua vez, representa a impossibilidade de a decisão final, seja qual for, ser novamente discutida nos autos em que proferida, ou seja, imutabilidade da sentença pela preclusão dos prazos para recurso. Na Itália, Liebman criticou fortemente a posição inversa de Carnelutti, o qual dá a entender que seria a coisa julgada material o pressuposto para a coisa julgada formal[11]: rebate Liebman, com acerto, em mais de um estudo, que, a seguir esse raciocínio, “a autoridade da coisa julgada subsistiria sem a passagem em julgado da sentença: resultado paradoxal que se resolve em contradição de termos”[12].

3. Das próprias concepções firmadas pela doutrina clássica, percebe-se então que o conceito de coisa julgada formal decorre da incidência, no processo, de uma preclusão de questão final, não abrangendo, por certo, todas as preclusões possíveis de questões incidentais decididas pelo julgador (ou seja, preclusão das decisões interlocutórias inimpugnadas ou inimpugnáveis), que, aliás, podem se suceder mesmo após a ocorrência do trânsito em julgado da decisão de conhecimento – como qualquer decisão incidental importante em sede de execução de sentença.

Embora mantenha a nomenclatura tradicional, tal constatação justifica a razão pela qual Pontes de Miranda, no seu “Tratado das Ações”, em mais de uma oportunidade, não se esquivou de equiparar o termo “preclusão” à expressão “força formal de coisa julgada”[13]. Da mesma forma, nitidamente aproximando os institutos da preclusão e da coisa julgada formal, Ovídio Baptista ressalta que a última é uma forma de preclusão, que cobre a sentença de que não caiba recurso algum (“preclusão máxima”), não se tratando de verdadeira coisa julgada[14]. Em maiores detalhes Sérgio Porto destaca que a coisa julgada formal representa a estabilidade que a decisão adquire no processo em que proferida, quer tenha havido análise de mérito (art. 269 do CPC), quer não tenha ocorrido tal investigação (art. 267), eis que esta nada mais é do que a “preclusão recursal”[15].

Por isso, temos como adequado o posicionamento, na Itália, de Ugo Rocco[16], e, por aqui, o de Celso Agrícola Barbi[17], no sentido de que o conceito de coisa julgada formal é inútil[18]. No entanto, embora seja uma discussão menor, não nos parece adequado genericamente equiparar, como fez Barbi, toda e qualquer preclusão de questões com a coisa julgada formal, ao passo que tecnicamente (desde Chiovenda – como já aludido – e no nosso CPC, art. 503) se diferencie a preclusão de questões em incidentais (recaindo sobre decisões interlocutórias) e finais (recaindo sobre as sentenças).

Exato, assim, Moniz de Aragão[19], bem acompanhado na discussão da problemática por Humberto Theodoro Jr.[20], ao registrar que “a rigor coisa julgada formal é o fenômeno da preclusão, com a peculiaridade de estar relacionado somente ao ato que extingue o processo”. Portanto, entendemos somente identificável, com a coisa julgada formal, a denominada preclusão de questão final ou preclusão recursal, sobressaindo-se, mesmo assim, sem dúvida, o esvaziamento do conteúdo daquela dita espécie anômala de coisa julgada.

Embora haja respeitáveis vozes em contrário, no sentido de sustentar alguma importância na manutenção da nomenclatura “coisa julgada formal”[21], tem-se, como se sugeriu, que a própria história nos mostra a incongruência da expressão. Repise-se que no direito romano a sentença, sobre a qual exclusivamente incide o instituto da coisa julgada, tão somente significava “sentença definitiva”, sendo desconhecida a figura da “sentença terminativa”[22] – reconhecendo-se, ademais, ao longo da história, que se o ato do juiz não encaminha a fazer cessar a incerteza sobre a norma aplicável ao caso concreto (envolvendo então a lide, na concepção carneluttiana[23]), teríamos uma providência que não é substancialmente uma sentença[24].

Afigura-se, pois, impreciso que haja possibilidade de, em uma decisão final que não seja de mérito (“sentença terminativa”), restar corporificada uma espécie de “coisa julgada” (a formal); sendo melhor, tecnicamente, falar-se em aplicação, in casu, tão somente da figura da preclusão. Mais uma vez preciso, Moniz de Aragão expressa, no mesmo sentir, sua desconfiança: “A denominação ‘coisa julgada formal’ chega a ser contraditória; se a coisa – ‘res’ – está julgada e por isso se fala em ‘res iudicata’ (coisa julgada), é inadmissível empregar essa locução para designar fenômeno de outra natureza, correspondente a pronunciamento que não contêm o julgamento da ‘res’” [25][26].

Ciente da denunciada inutilidade do conceito “coisa julgada formal”, e a partir dos próprios conceitos de Chiovenda, Isidoro Eisner desenvolve conclusivamente que a principal e necessária distinção a ser feita é entre a preclusão e a coisa julgada material: “A coisa julgada, como eficácia e autoridade emanada da sentença final, vale e se impõe fora do processo enquanto deve ser acatada por todos os juízes dos juízos futuros que pretendem debater a mesma questão já resolvida; enquanto que a preclusão, durante o processo, das diversas questões suscitadas (mesmo as finais), só tem eficácia e se faz indiscutível dentro do mesmo, sem se estender e se impor a outros juízos”[27].

E é exatamente por discorrer sobre todas essas perspectivas, parece mesmo que faltou uma dose de coragem à Chiovenda, lá no início do século XX, para denunciar a inoperância e mesmo então a incongruência de se sustentar a utilização da expressão criticada – especialmente, na hipótese sobredita de sentença terminativa, em que apareceria desacompanhada da coisa julgada material, não havendo então o julgamento da res.

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4. Demonstrada a inutilidade da expressão “coisa julgada formal”, suficiente ter-se presente que sobre a sentença de mérito, de que não caiba mais recurso, atua a preclusão (endoprocessualmente) e a coisa julgada material (panprocessualmente), sendo que nos demais casos de que não caiba mais recurso (sentença terminativa e decisão interlocutória) tão somente atua o primeiro instituto.


III – DA EFICÁCIA PRECLUSIVA DA COISA JULGADA MATERIAL: PREVISÃO DO ART. 474 DO CÓDIGO BUZAID E DO ART. 489 DO PROJETO PARA UM NOVO CPC

5. O art. 474 do CPC é o dispositivo que verdadeiramente aproxima de maneira menos estanque os institutos a serem diferenciados (repite-se: preclusão e coisa julgada material), à medida que corporifica a hipótese da eficácia preclusiva da coisa julgada material (também denominada “coisa julgada implícita” ou simplesmente “julgamento implícito”) – em que a eficácia do fenômeno preclusivo excepcionalmente transcende os limites do processo em que foi proferida a sentença coberta pela coisa julgada (eficácia preclusiva externa, panprocessual ou secundária)[28].

Ocorre que, embora o art. 468 do Código Buzaid limite a força da res judicata aos limites da lide e as questões decididas, o CPC, aparentemente sem querer contrariar essa premissa, determina no art. 474 que “passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido”.

Assim, com o trânsito em julgado da sentença de mérito, as alegações, nos termos em que posta a demanda, que poderiam ter sido apresentadas, visando ao acolhimento do pedido, pelo autor, ou rejeição dele, pelo réu, é como se o tivessem sido, impedindo reexame em outro processo dessa matéria deduzível não trazida para o processo.

Daí figura-se que a eficácia preclusiva da coisa julgada alcança não só as questões de fato e de direito efetivamente alegadas pelas partes, mas também as questões de fato e de direito que poderiam ter sido alegadas pelas partes, mas não o foram – o que por certo não abrange a matéria fática e jurídica superveniente à decisão, e ainda as questões de fato e de direito que, mesmo não alegadas pelas partes por inércia indevida, poderiam ter sido examinadas de ofício pelo juiz, mas também não o foram.

Trata-se, como argumenta, Scarpinella Bueno, de algo necessário para a compreensão do próprio fundamento da coisa julgada e para a eficiência desta opção política, que realiza o princípio da segurança jurídica, expressamente consagrado no art. 5°, XXXVI da CF/88: “não se pode cogitar, com efeito, da imutabilidade de uma decisão se fosse possível levar ao judiciário, a cada novo instante, novos argumentos das questões já soberanamente julgadas, iniciativa que, em última instância, teria o condão de desestabilizar o que, por definição, não pode ser atacado”[29].

Está-se, portanto, diante de situação especial que projeta os efeitos da preclusão, ocorrida na apresentação do tema litigioso (especialmente na fase postulatória, em face da aplicação da técnica da eventualidade), para fora do processo, vetando, em muitos casos, a propositura de nova demanda. Louvável, por isso, o seu estudo pontual, bem como a utilização da específica expressão “eficácia preclusiva da coisa julgada material”[30] – já que se trata de instituto autônomo (produto final “c”), decorrente da aplicação amalgamada dos préstimos da preclusão (produto “a”) e da coisa julgada material (produto “b”).

6. Pois bem. Tem-se, no tópico, que o grande problema a ser solucionado cinge-se ao limite da eficácia preclusiva da coisa julgada. A análise isolada do dispositivo parece nos levar a compreender um limite extensivo da eficácia preclusiva, defendido dentre outros por Araken de Assis[31] e com algumas ressalvas por Ovídio Baptista[32], determinando, em termos práticos, que tendo a esposa, com o objetivo de extinguir sua relação matrimonial, proposto ação de separação contenciosa com base exclusivamente na embriaguez habitual do marido, e tendo sido julgada improcedente esta ação, não poderia ela ingressar novamente em juízo, com o mesmo pedido (separação), mas diversa causa de pedir (v.g., o adultério).

No entanto, analisando a matéria dentro do contexto do Código (interpretação sistemática do art. 474 com os arts. 2°, 128, 264, 300, 301, 468 e 469), bem como tendo presente a opção pátria pela teoria da substanciação (estabelecida no art. 282, III, do CPC, a considera os fatos como relevantes para a definição do conteúdo da causa de pedir e, por conseguinte, da matéria dispositiva da sentença), temos, como mais adequada a posição adotada, dentre outros por Barbosa Moreira[33], que confere limite restritivo à eficácia preclusiva da coisa julgada material.

Para essa corrente, a variação de qualquer dos elementos identificadores da ação importa, de per si, na variação da própria demanda, deixando, pois, de haver identidade entre ambas, visto que modificado um dos seus elementos individualizadores. Ademais, invoca-se, o art. 5°, XXXV, da CF/88, informando que, pelo art. 474 CPC, a decisão de mérito reputa deduzidas todas as matérias passíveis de invocação, sem suprimir de apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito advindas de causas outras aptas a dar suporte à pretensão, não apresentadas naquela determinada contenda.

7. Portanto, a eficácia preclusiva da coisa julgada deveria tão somente consumir todas as alegações e defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido, nos parâmetros da lide deduzida, ou seja, sem que altere ou extrapole qualquer dos limites individualizadores das demandas, modificando a causa petendi.

De acordo com esta corrente de interpretação restritiva do art. 474, Liebman[34], ainda comentando o anterior Código de Processo Civil, à luz do conceito de lide empregado por Carnelutti, refere que as questões que constituem premissa necessária da conclusão, isto é, da decisão sobre o pedido das partes, entendem-se definitivamente decididas “nos limites da lide”; “quer dizer que a mesma lide não poderá ser suscitada com fundamento nessas questões, quer o juiz as tenha realmente decidido, quer não. A contrario sensu, as mesmas questões não se entenderão decididas, se a lide for outra”. A mesma interpretação restritiva a partir do texto do então vigente art. 287 do CPC de 1939 é sustentada por Alfredo Buzaid[35], o autor do posterior Código Processual – o que abaliza ainda mais a posição dessa vertente.

Também na mesma trilha anda Sérgio Gilberto Porto, que ao comentar o art. 474 do CPC, fez uma sintética e coerente análise de todo o problema, concluindo, a partir de exemplo prático (já lançado em página precedente), o seguinte: “Consideram-se deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas pertinentes, e por pertinentes à demanda entendam-se aquelas que contribuem para a fixação da lide (...) nos limites da causa. Assim, na ação de separação judicial proposta e na insuportabilidade da vida em comum, em face da embriaguez habitual de um dos cônjuges, tudo em torno do conteúdo fático da causa é considerado deduzido, mesmo que não o tenha sido. Todavia, em caso de improcedência da demanda, nada obsta que seja proposta nova ação, agora com base no adultério, ainda que este já tivesse sido consumado à época do ajuizamento da primeira demanda, eis que – por se tratar de ação diversa, em razão da mudança da causa – não há que se falar em coisa julgada e, muito menos, em eficácia preclusiva desta”[36].

8. Não é outra a posição adotada em paradigmáticos julgados do STJ e STF, que ao fazerem menção expressa aos arts. 474 e 469, I, do CPC, acenam para a possibilidade de propositura de nova demanda, se as alegações e defesas escapem do objeto do processo[37]. Certo, pelo que se nota da posição jurisprudencial ventilada, que o entendimento majoritário de interpretação restritiva do conteúdo apresentado pelo art. 474 do CPC, a estabelecer os devidos limites objetivos da coisa julgada, envolve adequada ponderação do que realmente deva ser abrangido pelo que se tem como o “objeto litigioso do processo”[38]. Aprofundemos a investigação.

9. Tratando-se, grosso modo, da pretensão deduzida em juízo pela parte autora (direito material afirmado)[39], temos que o objeto litigioso do processo, no nosso sistema, abrange não só o pedido, mas também a causa de pedir que o serve de fundamento.

Na Alemanha, onde de fato o tema foi extensamente debatido, Schwab registra que o pedido é o verdadeiro objeto do litígio (Antrag), sendo bem sedimentado por Rosenberg e depois por Habscheid que a causa de pedir (ou o “estado das coisas”: Lebenssachverhalt) também o integram[40]. Liebman, seguido por Frederico Marques, manteve a posição de que somente o pedido do autor é objeto do processo[41], no que fora adequadamente superado, a nosso ver, dentre outros, pelo raciocínio deduzido por Sydney Sanches, ao expor que em face das características do ordenamento jurídico-processual brasileiro (assumindo a teoria da substanciação) “parece-nos que a causa de pedir se ajunta ao pedido para com este formar, em nosso sistema, o chamado objeto litigioso do processo”[42]. No mesmo sentido Botelho de Mesquita, em maiores linhas, destaca: “Causa petendi e petitum, intimamente ligados, qual verso e reverso da mesma medalha, ou alicerces e paredes do mesmo edifício, são por excelência os elementos identificadores do objeto do processo, pois o petitum é condição da existência da causa petendi e esta, por sua vez, não se limita a qualificá-lo ou restringi-lo, mas o individua plenamente”[43].

E a causa de pedir, a seu turno, resta corporificada pela presença do fato jurídico (causa petendi remota), sob os quais gravitam os fatos simples, como bem diferenciou Adolf Schönke[44]; respectivamente, “fatos essenciais” e “fatos circunstanciais” na nomenclatura adotada por Devis Echandía[45], ou ainda “fatos essenciais” e fatos “não essenciais” conforme mencional Marinoni e Mitidiero[46] - sendo ainda imprescindível, no sistema pátrio, a presença da causa petendi próxima, representada pelos fundamentos jurídicos do pedido (ou seja, as consequências jurídicas que o autor pretende extrair com a exposição dos fatos[47]); o que não se confunde com os prescindíveis fundamentos legais do pedido (ou seja, a mera referência aos dispositivos de lei que a parte entende que servirão para obter resultado favorável na demanda).[48]

De qualquer forma, podendo o magistrado eventualmente desprezar os fundamentos legais invocados, e até os fundamentos jurídicos aportados (causa petendi próxima)[49], valendo-se para tanto do adágio iura novit curia (presumindo-se que o juiz conhece o direito, pela incidência do correlato brocardo narra mihi factum, dabo tibi ius)[50], correto se pensar que para o estudo da abrangência do objeto litigioso do processo, deve-se especialmente focar a atenção, além do pedido propriamente dito, aos fatos jurídicos/fatos essenciais elencados na exordial (causa petendi remota).

Avancemos, pois: quando alguém pede a procedência da demanda de separação judicial com base, para permanecermos no exemplo ilustrado, na embriaguez habitual do companheiro, o fato jurídico é a embriaguez; e os fatos simples são aqueles que levam à conclusão de que efetivamente ocorreu o fato jurídico (a embriaguez). Assim, sempre relembrando a diferenciação de Schönke, o julgador só poderá julgar a demanda nos limites absolutos aportados pela parte autora, em termos de pedido(s) e de fato(s) jurídico(s) – como, aliás, registra expressamente o art. 128 c/c art. 460 do CPC[51], a redundar que alterado o fato jurídico (passando a ser, v.g., o adultério), há diversa causa petendi, e por consequência, nova demanda poderá ser proposta (mesmo que mantida a identidade de partes e até de pedido).

Por isso que quando o art. 131 do CPC, ao aludir que na apreciação livre da prova, pode o julgador levar em consideração as circunstâncias e os fatos constantes nos autos ainda que não alegados pelas partes, temos, em respeito ao princípio dispositivo em sentido material ou próprio, que está autorizando a utilização, ex officio pelo julgador, tão somente de algum fato simples relacionado ao fato jurídico apontado expressamente na exordial, e não propriamente de fatos jurídicos autônomos não apresentados pela parte demandante[52]. Tal ponderação, fica agora mais fácil de constatar, é possível em sistema processual que adota a teoria da substanciação, preocupado, com o material fático aportado pelas partes, e não própria e exclusivamente com a relação jurídica concreta havida entre elas; resultando daí que os fatos (jurídicos) não aportados pelas partes não podem ser tomados em consideração pelo juiz naquela demanda, tão somente em outra – se assim demonstrar interesse a parte autora, com o ajuizamento de nova ação judicial[53].

A discussão, nos limites sobreditos, aponta com maior visibilidade para a matéria que realmente deva ser abrangida pela coisa julgada material (seus limites objetivos)[54], já que os fatos simples, relacionados ao fato jurídico discutido no feito (embriaguez habitual), que poderiam ser alegados pela parte e até mesmo reconhecidos pelo juiz com base nas provas aportadas ao feito, mas ali não foram, não poderão ser em outra demanda (eficácia preclusiva da coisa julgada material)[55], o que não importará, como visto, na impossibilidade de serem alegados, em ulterior demanda, fatos simples relacionados a outro fato jurídico não desenvolvido na demanda originária (v.g., adultério).

Cabe por isso, conclui-se, atenta exegese articulada do art. 469, I, do CPC com o que dispõe o art. 474 do CPC, já que mesmo se sustentando que isoladamente os motivos da sentença, pertinentes ao plano fático, não fazem coisa julgada, vindo a integrar indiretamente o dispositivo sentencial (quando constituem o seu “precedente lógico necessário”, nas palavras de Carnelutti[56], e especialmente identificam o real alcance do tema travado entre os litigantes[57]), podem ser decisivos para a fixação dos limites objetivos da coisa julgada material, ao menos no nosso sistema processual (que adota a teoria da substanciação, e que por isso os tem, por regra, como verdadeiro cerne da causa petendi).

10. Trataremos, por fim, de outro exemplo da prática do foro para que fique melhor explicitada a questão central do presente ensaio.

Em uma demanda acidentária foi requerido determinado benefício (pedido) em desfavor do órgão previdenciário em razão de problemas ortopédicos do segurado (Lesões por Esforços Repetitivos, LER – fato jurídico/fato essencial). Caso seja julgada improcedente a pretensão levada ao órgão jurisdicional, sob o fundamento de não caracterização do alegado problema ortopédico, em tese, e em aplicação restritiva dos limites da eficácia preclusiva da coisa julgada material, é viável a apresentação de novel processo acidentário a fim de que o mesmo benefício seja concedido em razão de outro problema incapacitante – v.g., déficit auditivo (Perda Auditiva Induzida por Ruído, PAIR). Essa segunda demanda possui relativa/suficiente autonomia, com relação à primeira, à medida que não obstante seja constatada identidade de pedido entre as lides, há distinção entre elas no que tange à causa de pedir (remota), ou seja, os fatos jurídicos apresentados são absolutamente diversos (LER versus PAIR). Portanto, na hipótese ventilada, caso reste devidamente confirmada a incapacidade laborativa em decorrência agora de problemas auditivos (e não de problemas ortopédicos), o benefício há de ser concedido ao segurado.

Essa complexa questão envolvendo a exegese do art. 474 do CPC, finaliza-se, parece ter sensibilizado os doutos que trabalharam na formação do Projeto 166/2010 para um Novo Código de Processo Civil, já que pela redação conferida ao art. 489, o tema resta melhor esclarecido, sendo prestigiada a tese acolhida nesse ensaio, de interpretação restritiva dos limites da eficácia preclusiva da coisa julgada material. Nesses termos, o Projeto prevê, que “transitada em julgado a sentença de mérito, considerar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e as defesas que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido, ressalvada a hipótese de ação fundada em causa de pedir diversa”[58] (grifo nosso, com a novidade introduzida pelo Projeto).

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Sobre o autor
Fernando Rubin

Advogado do Escritório de Direito Social, Bacharel em Direito pela UFRGS, com a distinção da Láurea Acadêmica. Mestre em processo civil pela UFRGS. Professor da Graduação e Pós-graduação do Centro Universitário Ritter dos Reis – UNIRITTER, Laureate International Universities. Professor Pesquisador do Centro de Estudos Trabalhistas do Rio Grande do Sul – CETRA/Imed. Professor colaborador da Escola Superior da Advocacia – ESA/RS. Instrutor Lex Magister São Paulo. Professor convidado de cursos de Pós graduação latu sensu. Articulista de revistas especializadas em processo civil, previdenciário e trabalhista. Parecerista.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RUBIN, Fernando. A preclusão, a coisa julgada e a eficácia preclusiva da coisa julgada: exegese do art. 474 do Código Buzaid e a posição adotada pelo projeto para um novo CPC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3212, 17 abr. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21533. Acesso em: 28 mar. 2024.

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