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Crime organizado e o tratamento legislativo brasileiro

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5 MEIOS DE INVESTIGAÇÃO E PRODUÇÃO DE PROVA NA LEI N.° 9.034/95

Resolvida a questão do conceito de organização criminosa, delimitado o alcance de aplicação da Lei n.° 9.034/95, podemos tratar de seu conteúdo, dos institutos que trouxe ao ordenamento brasileiro para viabilizar o combate ao crime organizado. 

Como disse o então Deputado Miro Teixeira, na ocasião do despacho para sanção do projeto de lei n.° 3.516/89, a lei veio para “resgatar, ainda que um pouco, esta cidadania que vem deixando de pertencer aos cidadãos e que vem, à rigor, protegendo somente criminosos.”.

Tal afirmação não é absurda, pois, como constatamos nos capítulos anteriores, historicamente as organizações criminosas eram intocáveis em sua estrutura, até o advento de um fenômeno legislativo que permitisse aos órgãos repressivos do Estado uma atuação eficaz contra suas ações criminosas. Se pensarmos bem, não poderia ser diferente, no Estado Democrático de Direito, o Jus Puniendi é controlado, indiretamente, pelo povo, já que limitado pelo alcance da lei, que por sua vez, é construída pelos representantes do povo, eleitos democraticamente. Em resumo, a ampliação do poder de punir do Estado está sempre condicionado à inovação legislativa, logo, existe sempre um período de incapacidade de combate entre a inovação criminosa e a legislativa. A trajetória das organizações criminosas brasileiras não poderia ser diferente, suas estruturas complexas só lhe serviram de escudo contra o poder do Estado até o advento da Lei n.° 9.034/95, que contém os institutos capazes de ir além e alcançar a criminalidade organizada dentro de sua armadura.

Nesse mesmo sentido é a lição de Antonio Scarance[169]:

É essencial para a sobrevivência da organização criminosa que ela impeça a descoberta dos crimes que pratica e dos membros que a compõe, principalmente de seus líderes. Por isso ela atua de modo a evitar o encontro de fontes de prova de seus crimes: faz com que desapareçam os instrumentos utilizados para cometê-los e com que prevaleça a lei do silêncio entre os seus componentes; intimida testemunhas; rastreia por meio de tecnologias avançadas os locais onde se reúnem os seus membros para evitar interceptações ambientais; usa telefones e celulares de modo a dificultar a interceptação, preferindo conversar por meio de dialetos ou línguas menos conhecidas. Por isso, os Estados viram-se na contingência de criar mecanismos especiais para descobrir as fontes de provas, de conservá-las e de permitir produção diferenciada da prova para proteger vítimas, testemunhas, colaboradores.

Como conclui Antonio Scarance, o único modo de se combater o crime organizado é pela inovação, pela adoção de técnicas capazes de driblar o modo organizacional criminoso e atingir seu âmago.

A Lei n.° 9034/95[170] em seu artigo primeiro declara, de pronto, que o objetivo da norma é regular e definir os meios de obtenção de prova e de investigação quando a prática do ilícito decorrer da ação de quadrilha, bando ou organização criminosa, é, portanto, o principal diploma utilizado no combate ao crime organizado pois visa, pela adoção de institutos diferenciados, possibilitar a investigação e o processamento das organizações criminosas.

Art. 1o Esta Lei define e regula meios de prova e procedimentos investigatórios que versem sobre ilícitos decorrentes de ações praticadas por quadrilha ou bando ou organizações ou associações criminosas de qualquer tipo.

Como já explanado a persecução penal no sistema processual brasileiro se dá em duas fases, uma administrativa, em que o Estado-Administração investiga a existência material de um delito, e identifica os possíveis autores do delito, e uma judicial em que o Estado-Juiz julga a acusação para ver aplicada a lei penal.

Ocorre que no decorrer da investigação criminal são encontrados e coletados indícios do crime e produzidas provas para a formação do convencimento do Promotor Público a fim de subsidiar a denúncia. Esses elementos coletados só adquirem valor probatório capaz de formar o convencimento do magistrado, e fundamentar a sentença penal, se confirmados sob o crivo do contraditório, no decorrer da instrução criminal.

Essa é a prescrição do art. 155 do Código de Processo Penal[171], com redação conferida pela Lei n.° 11.690 de 2008:

Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

A interpretação desse dispositivo pode ser extraída da análise do seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça[172]:

Processual penal. Habeas corpus. Tráfico de substância entorpecente.

Prova colhida na fase inquisitorial. Ratificação em juízo.

Regularidade. Depoimento de policiais. Meio probatório válido. Ordem denegada.

1. Não há irregularidade se os depoimentos colhidos no curso do inquérito policial foram ratificados na fase judicial, em respeito aos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal 2. O depoimento de policiais pode servir de referência ao juiz na verificação da materialidade e autoria delitivas, podendo funcionar como meio probatório válido para fundamentar a condenação, mormente quando colhido em juízo, com a observância do contraditório, e em harmonia com os demais elementos de prova.

3. Ordem denegada.

(HC 123.293/MS, rel. Ministro  Arnaldo Esteves Lima, quinta turma, julgado em 20/10/2009, DJE 16/11/2009)

Superada, portanto, qualquer confusão sobre a produção da prova e a investigação criminal passaremos à análise dos institutos da Lei n.° 9.034/95.

5.1 A AÇÃO CONTROLADA

O art. 301 do Código de Processo Penal torna obrigatória, para a autoridade policial e seus agentes, a prisão em flagrante do elemento que se acha em estado de flagrância. Isso importa em dizer que não há qualquer margem de discricionariedade quanto ao momento de efetivação da prisão, quando da ocorrência do delito.

O referido princípio desempenha papel de suma importância vez que contribui para a segurança pública criando obrigação para todo agente policial, seja das polícias militares, civis ou federais.

Ocorre que, como vimos anteriormente no presente trabalho, uma das características principais das organizações criminosas é a adaptabilidade, ou seja, a capacidade de reagir à iniciativa do Estado e adaptar-se, com o objetivo de garantir sua impunidade. Para tanto, as organizações criminosas desenvolvem mecanismos complexos para ocultar os membros de médio e alto escalão de suas organizações, blindando-os da persecução Estatal.

Nesse sentido é a lição de Mário Sérgio Sobrinho[173]:

Empregar a ação controlada permite minimizar a utilidade do segredo, característica que reina entre os membros dessas organizações, bem como atingir mais facilmente os dirigentes das atividades ilícitas praticadas por elas, os quais procuram se afastar sistematicamente, da execução das atividades mais rotineiras e visíveis relacionadas com a prática do crime.

É por essa razão que a maioria absoluta da doutrina entende que a ação controlada é medida estratégia no combate ao crime organizado, pois permite que a autoridade policial monitore a ação dos integrantes da organização sem expor a maiores riscos nem a sociedade, nem os agentes policiais.

Na linguagem popular tal estratégia pode ser ilustrada pelo ditado, basta dar corta para se enforcar, ou seja, na ação controlada não há intervenção policial, há observação e coleta de informações para que se determine qual o momento mais propício para a prisão em flagrante dos envolvidos.

Vale destacar que a prisão em flagrante efetuada mediante a ação controlada tem grandes chances de se tratar da modalidade de prisão em flagrante denominado flagrante impróprio, previsto no art. 302, inc. III do Código de Processo Penal, já que os indivíduos serão perseguidos após a prática delituosa, sem, no entanto, ter consciência disto.

A Lei n.° 9.034/95, atendendo a seu objetivo de combate ao crime organizado inovou a investigação criminal, permitindo que os agentes do Estado utilizem-se de uma técnica de difícil detecção e altamente eficaz no combate ao crime organizado, a ação controlada.

A redação do art. 2°, inc. II da Lei n.° 9.034/95 é a seguinte[174]:

II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;

Portanto, a partir da edição da Lei n.° 9.034/95, conferiu-se ao policial "discricionariedade para, presenciando a prática de uma infração penal, em vez de efetuar a prisão em flagrante, aguardar um momento mais propício e mais eficaz do ponto de vista da formação da prova e do fornecimento de informações"[175].

Mário Sérgio Sobrinho[176] destaca que uma das principais características da ação controlada é a vigilância que deve ser instaurada pela equipe policial. O acompanhamento do desenrolar da atividade criminosa é vital para o sucesso da operação, sob pena de se permitir a fuga e desaparecimento de indivíduos que já cometeram um delito. Para o autor a ação controlada "faculta ao Estado identificar testemunhas, encontrar documentos ou apreender coisas que poderão servir para formar a convicção acerca da autoria e materialidade da prática de crime"[177].

Quanto à necessidade de autorização judicial para que a autoridade policial e seus agentes procedam ao retardo do flagrante, Gustavo Octaviano[178] observa que é contrária à tendência mundial a iniciativa legislativa brasileira, já que:

Diversamente de outros países, não há necessidade de autorização judicial prévia, sendo somente dois os requisitos para que tome efeito a ação controlada: 1) existência de crime em andamento praticado por organização criminosa; 2) observação e acompanhamento por parte do agente policial para que a medida legal se efetive no melhor momento para a produção probatória.

O posicionamento jurisprudencial a respeito dos requisitos para a efetivação da ação controlada é tranqüilo, como se extrai da leitura da ementa do julgamento de um Habeas Corpus pelo Superior Tribunal de Justiça[179]:

AÇÃO POLICIAL CONTROLADA. MP. Pretende-se afastar, por falta de prévia manifestação do MP, a decisão que deferiu a busca e apreensão em sede de investigação requerida pela autoridade policial, bem como reconhecer a ilegalidade do ato praticado pela polícia, que “acompanhou” o veículo utilizado para o transporte de quase meia tonelada de cocaína, retardando a abordagem. Quanto ao primeiro tema, vê-se que não há dispositivo legal a determinar obrigatoriamente que aquela medida seja precedida da anuência do membro do Parquet. Ademais, a preterição de vista ao MP deu-se em razão da urgência da medida, bem como da ausência, naquele momento, do representante do MP designado para atuar na vara em questão. Já quanto à segunda questão, a ação policial controlada (art. 2º, II, da Lei n. 9.034/1995) não se condiciona à prévia permissão da autoridade judiciária, o que legitima o policial a retardar sua atuação com o fim de buscar o momento mais eficaz para a formação de provas e fornecimento de informações. HC 119.205-MS, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 29/9/2009.

Eduardo Araújo da Silva alerta para a possibilidade de a autoridade policial, por não ter de requerer autorização para proceder com a ação controlada ao Magistrado, afastando-se assim possível manifestação do membro do Ministério Público, acabar por violar, no curso da ação, "a intimidade e a privacidade dos cidadãos investigados"[180]. A advertência é válida, porém, acreditamos que a autoridade policial e seus agentes possuem, devido à sua formação e experiência profissional, o discernimento necessário para que tais infortúnios não se concretizem.

Nucci faz ressalva importante quanto ao alcance do instituto, pois como o princípio que rege a prisão em flagrante é o da obrigatoriedade, para a autoridade policial e seus agentes, portanto, por ausência de previsão legal:

Cremos ser a (ação de organização criminosa) única hipótese possível de ação controlada (flagrante retardado), não valendo o mesmo para o cenário das infrações cometidas por quadrilha ou bando ou outra forma de associação criminosa.

Resta ao agente do Estado, como é sua a discricionariedade para retardar o flagrante, constatar, no caso concreto, se o delito perpetrado se trata de obra de membro de organização criminosa ou da criminalidade comum, não organizada.

Daí a importância da interação do presente instituto com o da infiltração de agente de polícia ou inteligência a ser analisado em parte seguinte do trabalho, pois, caso já exista na organização criminosa investigada um agente infiltrado, ele será capaz de identificar, com alto grau de acerto, primeiro, se a ação é mesmo fruto da organização, segundo, se o retardamento do flagrante é justificado, tendo em vista o alto risco e perigo que cercam essa modalidade de obtenção de prova.

Abel Fernandes Gomes[181] traz à discussão a questão mais delicada quando se trata de ação controlada, o descontrole, quando, por razões alheias ao controle da autoridade policial e seus agentes, ou por uma falha evitável, a vigilância falha e os integrantes fogem ou a consumação do delito se dá em escala muito superior à aceitável.

No primeiro caso, como destaca o autor, nenhuma conseqüência restará aos agentes, pois, no caso de a falha ocorrer por motivo imprevisível e inevitável, afasta-se a antijuridicidade por tratar-se de infortúnio.

No entanto, se houve uma falha de protocolo ou um descuido evitável por parte dos agentes do Estado, resultando em um agravamento do delito ou na impunidade de seus perpetradores, nesse caso a autoridade e seus agentes, por terem o dever jurídico de evitar o resultado danoso advindo da operação que vigiam, responderão pelo resultado do delito na modalidade culposa, em razão da hipótese de participação omissiva imprópria, prevista no art. 13, §2° do Código Penal.

Sobre os crimes omissivos impróprios observa Bitencourt que, "o dever de agir é para evitar um resultado concreto. O agente deve agir com a finalidade de impedir a ocorrência de determinado evento"[182], no caso, a autoridade policial e seus agentes tem o dever de agir para evitar a perda do controle sobre a operação, quando falham por razões de desídia, acabam por participar omissivamente do cometimento do delito.

Nesse sentido vale a lição de Damásio de Jesus[183]:

O art. 13, §2°, regulamentando a relação de causalidade normativa nos delitos comissivos por omissão (ou omissivos impróprios) e, assim, adotando a teoria da omissão normativa, determina que a omissão é penalmente quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado; c) com o seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado.

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Mendroni também sustenta a mesma tese de Abel Gomes, pois afirma que "uma coisa é o controle da atuação - permitindo-se a prática de crimes como agente passivo ou expectador", outra totalmente diferente seria o descuido policial, por desídia, o que acarreta a responsabilidade penal, civil e administrativa do agente.

5.2 O ACESSO A DADOS SIGILOSOS

As primeiras declarações de direitos, por tratarem-se de documentos redigidos em um momento histórico em que a tecnologia pouco contribuía para a divulgação em massa de informações pessoais de indivíduos, não dispensaram o devido tratamento à guarda da intimidade e à proteção de informações sigilosas contra a devassa da vida íntima. Celso Ribeiro Bastos[184] atribui aos franceses, no início do século XX, a autoria das primeiras normas protetivas da intimidade.

Nucci destaca que a proteção conferida à intimidade pelo art. 5°, inc. X da Constituição Federal, como a proteção dispensada a todo direito fundamental, não é absoluta. Ou seja, a intimidade do cidadão não se encontra blindada contra qualquer interferência Estatal, muito pelo contrário, se presente um justo motivo o Estado pode "bisbilhotar a esfera íntima do cidadão"[185].

Esse justo motivo é o que obriga a análise judicial do pedido de acesso a dados sigilosos. De um lado, não pode o criminoso utilizar-se do direito à proteção da intimidade como "um manto protetor"[186], nem pode a sociedade ser vigiada por um grande irmão, como aquele de Orwell.

É para garantir que ninguém possa se esconder sob o manto de seus direitos que o inc. III do art. 2°, da Lei n.° 9.034/95 inovou a ordem jurídica com a seguinte redação[187]:

Art. 2° Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

III - o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias, financeiras e eleitorais.

A quebra do sigilo, da proteção à intimidade, é medida salutar na luta contra a criminalidade organizada, pois, assim como a ação controlada, goza de certa imprevisibilidade e é de difícil, se não impossível detecção. Como explicamos nos capítulos anteriores, um alto grau de organização e hierarquia protege a criminalidade organizada, imunizando-a contra as ações policiais comuns, razão pela qual deve o legislador inovar, permitindo que a investigação criminal seja algo eficaz, na medida em que permite à autoridade policial e seus agentes conhecer a organização em profundidade, com o menor risco possível.

É por isso que o inciso III do art. 2° da Lei n.° 9.034/95 permite que, com a devida autorização judicial, o Estado, quando investiga práticas criminosas perpetradas por quadrilha ou bando, organizações criminosas e associações criminosas de qualquer tipo quebre o sigilo de indiciados ou acusados para, segundo Nucci[188]:

Buscar dados (ex.: contras telefônicas, especificando as ligações feitas nos últimos meses), documentos (qualquer base material que contenha o registro de fatos, como, por exemplo, a nota fiscal emitida por uma empresa, alienando produtos a terceiros) e informações fiscais (dados relativos à renda da pessoa física ou jurídica), bancárias (dados concernentes a contas mantidas em bancos e sua respectiva movimentação), financeiras (dados ligados à aplicações no mercado financeiro) e eleitorais (cadastro do eleitor constante no Tribunal Regional Eleitoral, como endereço).

Devemos manter em mente que uma das principais preocupações da organização criminosa é a lavagem de capitais, a reinserção dos ativos adquiridos ilegalmente no mercado legal, para que possa ser livremente usufruído. Por isso que determinadas informações que aparentemente não importam, como o cadastro de eleitor de determinada pessoa, tornam-se cruciais para a investigação e combate ao crime organizado, pois grande parte da organização teve funcionar de acordo com a lei, desempenhando papéis sociais responsáveis com o objetivo final de fazer a transição para a legalidade dos ativos adquiridos com o cometimento de delitos.

Sobre os requisitos para a autorização judicial necessária à quebra dos sigilo dos dados, Antonio Scarance Fernandes faz a seguinte observação[189]:

Como a quebra proporciona acesso a dados mediante restrição à inviolabilidade constitucional, a da vida privada, ela depende de expressa autorização legislativa, a qual deve: a) explicitar as hipóteses possíveis de acesso; b) arrolar as pessoas ou entidades que têm direito ao acesso; c) prever os órgãos competentes para autorizar o acesso.

O mesmo autor contempla as conseqüências quando do não atendimento dos requisitos do acesso aos dados sigilosos, e a interpretação que deve ser conferida à norma, em caso de dúvidas sobre sua amplitude[190]:

Por outro lado, duas premissas importantes derivam do estabelecimento desses contornos legislativos: o acesso fora dos limites delineados pela lei constitui violação do direito do sigilo; b) em caso de dúvida sobre a possibilidade de acesso, a interpretação da norma autorizadora deve ser restritiva, nunca ampliativa.

No mesmo sentido é a lição de Silva[191]:

Tratando-se de medida que toca os direitos fundamentais, a quebra dos sigilos fiscal, bancário e financeiro  deverá ser precedida de motivada autorização judicial  (art. 93, inc. IX, da Constituição da República), devendo o juiz, após concluir pela viabilidade da medida e por sua necessidade ante as circunstâncias do caso concreto, especificar seu alcance: quais pessoas serão atingidas pela quebra do sigilo, quais contas ou aplicações financeiras serão violadas, quais instituições financeiras deverão fornecer as informações e sobre qual período recairá a violação.

A definição de sigilo bancário, "a obrigação que têm os bancos de não revelar, salvo justa causa, as informações que venham a obter em virtude de sua atividade profissional"[192], utilizada pela doutrina pode ser obtida da obra de Sérgio Carlos Covello, e serve para se adquirir uma perspectiva do panorama de informações que podem ser utilizadas na investigação e combate às organizações criminosas, que, apesar da advertência de Eduardo Araújo da Silva no sentido de que os "vultuosos ganhos ilícitos (do crime organizado) acabam por desaguar em diversas contas bancárias e aplicações financeiras, geralmente localizadas em paraísos fiscais"[193], é válida a iniciativa de se descobrir a profundidade do entranhamento do capital criminoso no sistema financeiro.

Carlos Marchi[194] critica a redação da Lei n.° 9.034/95, quanto à quebra de sigilos, pois, como demonstra, é redundante em alguns pontos. A mesma observação é feita por Abel Fernandes Gomes, que cita Carlos Marchi para afirmar a redundância do dispositivo.

O Código Tributário Nacional, contém, em seu art. 198, §1°, inc. I, a autorização para a divulgação de "informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades"[195], mediante requisição da autoridade judiciária, para que se atenda ao interesse da justiça.

O Código Eleitoral, por previsão dos "arts. 45, §6°, e 371, não consideram sigilosas informações relativas ao alistamento, à filiação, às campanhas eleitorais e às finanças partidárias."[196]

5.3 A INTERCEPTAÇÃO AMBIENTAL

A captação de sinais ambientais fora incluída no rol dos meios de investigação e prova previstos na Lei n.° 9.034/95 em 2001, por força da Lei n.° 10.217/01.

A redação do art. 2°, inc. IV é a seguinte[197]:

Art. 2° Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:  

IV – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos, óticos ou acústicos, e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização judicial;

Eduardo Araújo da Silva[198] na introdução ao estudo do presente instituto indica que a interceptação ambiental é meio de combate ao crime organizado empregado por diversos países, "Itália, França, Alemanha e Estados Unidos"[199] e tem sua efetividade comprovada, vez que já possibilitou a prisão de grandes lideres mafiosos como Salvatore "Toto" Riina, da região da Sicília e o líder máximo da Tríade Chinesa na Europa em 1995.

A vigilância eletrônica, como é conhecida a interceptação ambiental nos meios policiais, não confunde-se com a interceptação telefônica, medida que também é utilizada no combate ao crime, no entanto encontra regulação em outro diploma legal, a Lei n.° 9.296/96.

Gustavo Octaviano cita Eduardo Araújo para esclarecer quais condutas englobam a interceptação ambiental, a lição é no sentido de que[200]:

Pelo texto legal, poderão os agentes da polícia, mediante prévia autorização judicial, instalar aparelhos de gravação de som e imagem em ambientes fechados (residências, locais de trabalho, estabelecimentos prisionais, etc.) ou abertos (ruas, praças, jardins públicos etc.), com a finalidade de gravar não apenas os diálogos travados entre os investigados (sinais acústicos), mas também de filmar as condutas por eles desenvolvidas (sinais ópticos). Ainda poderão os policiais registrar sinais emitidos pelos aparelhos de comunicação, como rádios transmissores (sinais eletromagnéticos), que tecnicamente não se enquadram no conceito de comunicação telefônica, informática ou telemática.

Por tratar-se de exceção ao direito à intimidade, assim como o acesso a dados sigilosos, previsto no inciso III do mesmo artigo, a interceptação de sinais ambientais somente pode ocorrer mediante circunstanciada autorização judicial.

Nesse sentido é a lição de Nucci[201], que destaca ser obrigatória a autorização judicial para a medida de interceptação ambiental, uma vez que pode ocorrer dentro de ambientes privados, o que importaria em grave violação da intimidade e conseqüente ilegalidade da prova.

Gustavo Octaviano[202] destaca que os requisitos da autorização judicial são: indicação dos sujeitos que serão alvo da interceptação, o local onde será realizada, a finalidade da medida (que será sempre, indiretamente, o combate a quadrilha, bando organização criminosa ou qualquer outra associação criminosa), e o tempo de sua duração, sendo que a jurisprudência ainda não firmou entendimento sobre a limitação temporal para a ação.

Capez[203] faz ressalva quanto à possibilidade de se aceitar como prova lícita a interceptação ambiental realizada sem a devida autorização judicial. Sua tese gira em torno do princípio da proporcionalidade pro societate, e argumenta que em um conflito entre a legalidade do ato e a justiça da condenação judicial baseada na prova produzida ao arrepio da lei, deve prevalecer a justiça, tendo em vista que o bem jurídico protegido pela sentença penal, qual seja, a ordem pública ou a segurança coletiva, é maior que a privacidade do criminoso.

Alexandre de Moraes define o direito à intimidade como forma de proteção constitucional da vida privada, "salvaguardando um espaço íntimo intransponível por intromissões ilícitas externas"[204], portanto, para se justificar sua invasão seria necessária a autorização judicial, ou, no caso concreto, a análise da proporcionalidade entre os bens jurídicos, como afirma Capez.

Contrapondo-se à argumentação de Capez, Mário Sérgio Sobrinho[205] define o instituto como inconstitucional, por ter ampliado o texto constitucional, que, a seu entender, só permite a interceptação telefônica mediante ordem judicial, para fins de investigação criminal, como prevê o art. 5°, inc. XII da Constituição Federal. A continuidade da crítica se dá no afastamento da aplicação do princípio proporcionalidade, por não haver no Brasil definição legal de organização criminosa. Como demonstramos anteriormente esse ponto não pode ser alegado, tendo em vista a internalização da convenção de Palermo pelo Decreto n.° 5.015/04.

Ora, conforme a lição de Alexandre de Moraes, entendemos que o argumento de Mário Sérgio Sobrinho resta prejudicado pois, como ensina o constitucionalista, "apesar da exceção constitucional expressa referir-se somente à interceptação telefônica, entende-se que nenhuma liberdade individual é absoluta"[206], portanto, não há de se falar em inconstitucionalidade da interceptação ambiental, nem pelo primeiro, nem pelo segundo argumento apresentado por Mário Sérgio Sobrinho.

5.4 A INFILTRAÇÃO DE AGENTES ESPECIALIZADOS

A origem histórica da infiltração de agente de inteligência para a colheita de informações e provas remonta ao final do século XVI, início do XVII, no reinado absolutista de Luís XVI, quando cidadãos recebiam favores do Rei por descobrir quais eram os inimigos do Estado que transitavam no seio da sociedade[207]

Para Mário Sobrinho[208] a infiltração de agentes "é técnica trazida dos conceitos de espionagem e contra-espionagem para o processo penal."

Com a promulgação da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional por meio do Decreto n.° 5.015/04, o Brasil assumiu, segundo Gustavo Octaviano[209], o compromisso de, para melhor combater o crime organizado, utilizar-se do instituto da infiltração de agentes do Estado.

A redação do art. 20, ponto 1 da Convenção promulgada pelo do Decreto supracitado esclarece qualquer dúvida quanto à legitimidade do instituto[210]:

1. Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada.

No Brasil, o instituto foi introduzido pela Lei n.° 9.034/95. No entanto, o texto original do Projeto de Lei n.° 3.516/89, que originou a lei trazia um procedimento de investigação e formação de provas que fora vetado pelo Presidente da República quando da publicação da lei, a redação original era a seguinte[211]:

Art. 2º Em qualquer fase de persecução criminal que verse sobre ação praticada por organizações criminosas são permitidos, além dos já previstos na lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

I - a infiltração de agentes da polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer coparticipação delituosa, exceção feita ao disposto no art. 288 do Decreto-Lei n.° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, de cuja ação se preexclui, no caso, a antijuridicidade;

O parecer do Ministério da Justiça indicou que o instituto contraria o interesse público, por permitir a infiltração policial na organização criminosa independentemente da autorização do Poder Judiciário, o veto foi no seguinte sentido[212]:

O inciso I do art. 2°, nos termos em que foi aprovado contraria o interesse público, uma vez que permite que o agente policial, independentemente de autorização do Poder Judiciário, se infiltre em quadrilhas ou bandos para a investigação de crime organizado.

(...) Além do mais, deve-se salientar que o dispositivo em exame concede expressa autorização legal para que o agente infiltrado cometa crime, preexcluída, no caso, a antijuridicidade, o que afronta os princípios adotados pela sistemática do Código Penal.

Pode-se facilmente compreender a razão no veto. O potencial danoso da infiltração policial sem a devida autorização judicial é enorme, pois tornaria a fiscalização dessas ações praticamente impossíveis, deixando-se de garantir, também, os direitos dos investigados, expondo as provas produzidas a risco de contaminação por ilegalidade.

No entanto a validade e importância da infiltração policial para o combate ao crime organizado foi reconhecida pelo legislador em um segundo momento temporal, na edição da Lei n.° 10.217 de 11 de abril de 2001, que alterou a Lei n.° 9.034/95, incluindo no art. 2°, que trata dos meios de investigação e obtenção de prova, o inciso V, com a seguinte redação[213]:

V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial.

Assim, o equívoco, flagrantemente contrário ao interesse público, como constatou o veto presidencial, constante na redação original da Lei n.° 9.034/95 foi sanado, sendo admitida na ordem jurídica a infiltração de agentes de polícia ou de inteligência, uma vez conferida a competente autorização judicial.

A redação atual do inciso V Lei n.° 9.034/95 é a seguinte:

Art. 2° Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas:

 V – infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial.

De acordo com a redação atual da Lei é necessária prévia e fundamentada autorização judicial para que se empregue a infiltração de agente do Estado como meio de investigação e produção de prova no combate ao crime organizado. Fernando Capez[214] adverte que a infiltração de agente realizada sem a devida autorização judicial pode constituir abuso de autoridade. Para nós é difícil admitir tal afirmativa vez que só se admite falar em crime de abuso de autoridade se a conduta típica estiver descrita nos artigos 3° e 4° da Lei n.° 4.898/65, o que não visualizamos.

A lição de Gustavo Octaviano[215], é no sentido de se exigir do juiz uma autorização detalhada para a infiltração, nos moldes da previsão da Lei das Interceptações Telefônicas:

Em verdade, ao determinar que a autorização seja circunstanciada, deve o magistrado indicar os motivos pelos quais defere a infiltração policial. Da mesma forma, deve indicar as circunstâncias em que se desenvolverá tal infiltração, vale dizer: em qual grupo criminoso será feita a infiltração, por quanto tempo perdurará a infiltração, qual a extensão territorial da atividade desenvolvida pelo agente infiltrado, entre outras medidas.

No mesmo sentido é o entendimento de Eduardo Araujo[216]:

A lei nacional não disciplinou um procedimento próprio para seu processamento (infiltração de agente), assim como não previu quais os requisitos para o seu deferimento, quem tem legitimidade para requerê-la, se o juiz pode determiná-la de ofício ou não, por quanto tempo pode perdurar, se é possível sua renovação, se as informações obtidas pelo policial devem ser relatadas ao juiz e como se dá a participação do Ministério Público.

O autor propõe como solução à lacuna legislativa que se aplique, no que couber, o previsto na Lei n.° 9.296/96, que versa sobre a interceptação telefônica.

Mário Sobrinho[217] também reputa como adequada a aplicação dos requisitos da Lei n.° 9.296/96 para o deferimento da infiltração de agentes em organizações criminosas.

Eduardo da Silva[218] explica que a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência apresenta três características:

Dissimulação, ou seja, a ocultação da condição de agente oficial e de suas verdadeiras intenções; o engano, posto que toda a operação de infiltração apóia-se numa encenação que permite ao agente obter a confiança do suspeito; e, finalmente, a interação, isto é, uma relação direta e pessoal entre o agente e o autor potencial.

A dissimulação é uma das características que, segundo Mendroni, garante que o agente infiltrado não seja caracterizado como integrante da organização, sendo, portanto, desnecessário afirmar que o agente infiltrado goza de exclusão da antijuridicidade de sua conduta, já que serve ao combate ao crime organizado, e não à sua proliferação.

As vantagens decorrentes da infiltração do agente na organização criminosa são significativas e, segundo a maior parte da doutrina, justificam essa operação de alto risco, especialmente no que toca à segurança pessoal do agente. Marchi[219] observa grande utilidade na infiltração, destacando que trata-se de uma das principais técnicas utilizadas pelo judiciário norte-americano no combate às organizações criminosas.

Dentre os benefícios da infiltração policial como técnica de investigação e obtenção de prova no combate ao crime organizado Mendroni destaca a possibilidade de se descobrir "o modus operandi, nomes - principalmente dos 'cabeças' da organização, nomes de testas de 'ferro', bens, planos de execução de crimes, agentes públicos envolvidos, nomes de empresas e outros mecanismos utilizados para a lavagem de dinheiro, etc."[220].

Mendroni também faz observação muito relevante quanto à interação entre os institutos da a ação controlada e da infiltração policial. Como já analisado no presente trabalho fator decisivo para que a ação controlada seja bem sucedida é a qualidade da informação que guia o adiamento da prisão ou apreensão. Daí se falar em interação entre a infiltração e a ação controlada. Se o agente infiltrado tem acesso à informação de qualidade pode orientar seus colegas para que realizem operações de maneira a atingir o maior número possível de criminosos. Nesse sentido é a observação de Mendroni[221], "os dois institutos, ação controlada e infiltração de agentes devem coexistir harmoniosamente, pois o sucesso do mecanismo, tal como uma engrenagem faz um do outro depender."

Como se depreende da leitura do texto legal, e como observa a totalidade da doutrina, a Lei n.° 9.034/95 "não dispôs a respeito dos limites que deverão ser observados pelo agente policial quando da infiltração autorizada judicialmente"[222].

No desenrolar do presente trabalho constatamos que as atividades desempenhadas pelas organizações criminosas são as mais diversas, indo do tráfico de artigos pornográficos ao homicídio por grupos de extermínio.

Com isso em mente é fácil compreender a preocupação do legislador quando permite que o agente se infiltre em organização criminosa que sabe ser capaz de perpetrar um sem número de delitos, ao começar pelos ritos iniciais.

Mas se a lei admite a infiltração do agente, e espera que ele forneça informações vitais para o desmantelamento da organização, como lidar com os delitos que ele será obrigado a cometer, até mesmo sob a mira de uma arma?

Fernando Capez entende que "ao agente infiltrado, fica a ressalva de que este, em hipótese alguma, poderá cometer algum delito, sob o argumento de conveniência ou necessidade da investigação"[223].

Mendroni[224], por outro lado, considera que o dilema enfrentado pelo agente infiltrado pode ser resolvido pela doutrina alemã intitulada Princípio da Proporcionalidade Constitucional. Segundo essa doutrina, já adotada pela jurisprudência nacional, quando o operador do Direito se depara com um conflito entre princípios fundamentais deve fazer prevalecer aquele que detém maior peso, ou seja, maior relevância constitucional.

Nesse caso, como destaca o autor, "nada poderia justificar o sacrifício de uma vida em favor da infiltração do agente e este deverá utilizar de todas as suas habilidades para impedi-lo"[225].

Por fim, a doutrina do Princípio da Proporcionalidade Constitucional pode ser resumida, no caso da infiltração de agente de inteligência ao seguinte enunciado[226]:

O agente infiltrado poderá até praticar condutas típicas (que não são crimes porquanto não sejam antijurídicas), desde que não atentem contra um direito constitucional sobrevalente.

Um comentário final deve ser tecido em relação à atuação do agente infiltrado, o entrapment defense ou, em português, a alegação de armadilha.

No Direito americano entrapment ocorre quando um agente policial age no sentido de induzir uma pessoa a cometer um crime que, caso o agente não agisse, não ocorreria.

No Brasil o Supremo Tribunal Federal editou súmula de n.° 145 tratando do flagrante provocado ou preparado, situação em que o agente é instigado a cometer o delito, sem saber que está sob vigilância policial, o que afasta a existência de delito por tratar-se de crime impossível:

Súmula 145: não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação.

Isabel Oneto, autor português, define agente infiltrado como o agente, no nosso caso policial ou de inteligência, que, "no âmbito da prevenção ou repressão criminal, e com o fim de obter provas incriminatórias sobre determinadas atividades criminosas, oculta a sua identidade e qualidade, podendo praticar fatos típicos sem, contudo, os poder determinar" [227].

 Já o agente provocador é aquele que instiga a prática do delito, podendo ou não ser policial.

Nesse mesmo sentido observa Mendroni quando afirma que agente provocador é aquele que participa ofensivamente, estimulando a prática delituosa, ao contrário do agente infiltrado que, mediante prévia autorização judicial, infiltra-se na organização criminosa com ordens de passivamente analisar a organização, participando de ações criminosas "em conjunto ou em apoio com seus membros somente quando inevitável para que não seja descoberto"[228].

Portanto, após a distinção entre o agente provocador e o infiltrado podemos afastar qualquer pretensão de defesa baseada no entrapment defense, valendo-se da súmula n.° 145 do Supremo Tribunal Federal.

5.5 A INCONSTITUCIONALIDADE DO JUIZ INQUISIDOR, ART. 3° DA LEI N.° 9.034-95.

O artigo 3° da Lei n.° 9.034/95 criou, segundo Luiz Flávio Gomes[229], a figura do juiz inquisidor, um magistrado com poderes especiais, capacitado para efetuar pessoalmente diligências, quando houver risco de quebra do sigilo constitucional do indiciado ou acusado.

Nesses termos é a redação da lei:

Art. 3º Nas hipóteses do inciso III do art. 2º desta lei, ocorrendo possibilidade de violação de sigilo preservado pela Constituição ou por lei, a diligência será realizada pessoalmente pelo juiz, adotado o mais rigoroso segredo de justiça.

§ 1º Para realizar a diligência, o juiz poderá requisitar o auxílio de pessoas que, pela natureza da função ou profissão, tenham ou possam ter acesso aos objetos do sigilo.

§ 2º O juiz, pessoalmente, fará lavrar auto circunstanciado da diligência, relatando as informações colhidas oralmente e anexando cópias autênticas dos documentos que tiverem relevância probatória, podendo para esse efeito, designar uma das pessoas referidas no parágrafo anterior como escrivão ad hoc.

§ 3º O auto de diligência será conservado fora dos autos do processo, em lugar seguro, sem intervenção de cartório ou servidor, somente podendo a ele ter acesso, na presença do juiz, as partes legítimas na causa, que não poderão dele servir-se para fins estranhos à mesma, e estão sujeitas às sanções previstas pelo Código Penal em caso de divulgação.

§ 4º Os argumentos de acusação e defesa que versarem sobre a diligência serão apresentados em separado para serem anexados ao auto da diligência, que poderá servir como elemento na formação da convicção final do juiz.

§ 5º Em caso de recurso, o auto da diligência será fechado, lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão, que dele tomará conhecimento sem intervenção das secretarias e gabinetes, devendo o relator dar vistas ao Ministério Público e ao Defensor em recinto isolado, para o efeito de que a discussão e o julgamento sejam mantidos em absoluto segredo de justiça.

A intenção do legislador era trazer mais segurança à realização de diligência que pudesse violar o sigilo constitucional do indivíduo, seja em relação ao acesso a dados fiscais, bancários, financeiros ou eleitorais.

Ocorre que, ao fazê-lo, o legislador acabou por violar o sistema acusatório pois o envolvimento direto do magistrado nas investigações macula sua imparcialidade, tornando-o ao mesmo tempo investigador e julgador.

Nesse sentido é a lição de Carlos Alberto Marchi de Queiroz[230]:

Esse juiz inquisidor, instituido pela Lei n.° 9.034/95, constitui demasia procedimental que, caso implantado, cairá, por si só, na prática processual penal diária, uma vez que viola, frontalmente, o sistema acusatório puro consagrado pelo artigo 129 da Constituição Federal, que atribui, com exclusividade, a iniciativa da ação penal pública ao parquet, além, e certo, de vir de encontro com a máxima ne procedat judex ex officio.

Frente à essa ofensa da Lei à Constituição Federal a Câmara Criminal do Ministério Público Federal solicitou ao Procurador Geral da República a propositura de Ação Direta de Inconstitucionalidade, remédio constitucional previsto para se buscar a declaração de inconstitucionalidade de Lei perante o Supremo Tribunal Federal.

A solicitação deu origem à ADIN n.°1570-2, distribuída em 11 de março de 1997, que questiona a incompatibilidade entre o disposto no art. 3° e incisos da Lei n.° 9.034/95 e os artigos 5°, inc. LV, 93, inc. IX e 129, inc. I da Constituição Federal.

Segundo o Procurador Geral da República[231]:

A transformação do Juiz em investigador, com poderes inquisitoriais, além de trazer inovação não prevista na Constituição, segundo a qual compete aos magistrados processar e julgar  e não investigar, também viola cláusula do due process of law (art. 5°, inciso LIV, da Constituição da República) ao comprometer a imprescindível imparcialidade do juiz, pois, conforme nos ensina a experiência, aquele que dá início às investigações e realiza as diligências na busca de provas que incriminem os envolvidos acaba por se ligar psicologicamente aos motivos que deram origem ao procedimento, colocando-se em posição propensa a julgar favoravelmente à pretensão de punir os investigados.

Por fim, em 12 de fevereiro de 2004 o Supremo Tribunal Federal julgou parcialmente procedente a ADIN n.° 1570-2 para declarar a inconstitucionalidade do art. 3° e seus incisos da Lei n° 9.034/95.

O julgamento foi parcialmente procedente pois em 2001 entrou em vigor a Lei Complementar n.° 105/01 que passou a regular especialmente o sigilo de dados bancários e financeiros, o que fez com que a ADIN perdesse o objeto nessa parte, restando ao Supremo Tribunal Federal julgar pela inconstitucionalidade dos demais incisos, que tratam do sigilo dos dados fiscais e eleitorais.

Concluímos, portanto, que a totalidade do dispositivo se encontra afastada da ordem jurídica, parte dele por advento de lei especial, parte por declaração de inconstitucionalidade.

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Sobre o autor
Paulo Francisco Muniz Bilynskyj

Advogado Criminalista

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BILYNSKYJ, Paulo Francisco Muniz. Crime organizado e o tratamento legislativo brasileiro . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3250, 25 mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21856. Acesso em: 19 abr. 2024.

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