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A aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o patrimônio do Código Penal Brasileiro

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07/06/2012 às 19:36
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06: A DISCRICIONARIEDADE DO DELEGADO DE POLÍCIA E A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO IMEDIATA DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA FACE A ATUAL SITUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO BRASILEIRO

6.1 Considerações acerca do Poder Judiciário Brasileiro e a Polícia Judiciária tomando-se como base o Estado de São Paulo

Nos capítulos anteriores vimos todas as questões mais relevantes relacionadas à aplicação do princípio da insignificância aos crimes contra o patrimônio do Código Penal Brasileiro.

Neste capítulo, analisar-se-á a possibilidade ou não da aplicação imediata do princípio da bagatela pela própria autoridade policial, aduzindo que tal idéia poderia ser um meio de desafogar um pouco o Poder Judiciário, bem como de evitar gastos desnecessários e também uma forma de realizar a Justiça de maneira mais célere.

As questões que talvez possam surgir são: Mas será que tal atitude é realmente necessária? Qual é a verdadeira situação em que se encontram a Polícia Judiciária e o Poder Judiciário?

Responder a essas questões de maneira precisa e geral, de forma a compreender e especificar todas as regiões do país é uma tarefa dificílima. Porém, apenas para ilustrar e também limitar o objeto deste item, tomar-se-á por base o Estado de São Paulo, analisando-se alguns dados referentes à polícia judiciária civil do Estado e à Justiça Estadual, a fim de que possamos atingir a finalidade ora pretendida.

Segundo dados da Secretária de Segurança Pública de São Paulo[110], somente no último trimestre de 2010, foram elaborados mais de 633.249 boletins de ocorrência, 44.994 termos circunstanciados e 86.118 inquéritos policiais. Foram registrados 273.286 crimes contra o patrimônio sendo que destes, 129.259 referem-se a furtos outros que não os de veículos.

Alguns talvez aduzam que nem todos esses inquéritos ou termos circunstanciados virarão uma ação penal no futuro, entretanto, se considerarmos que apenas metade desses números serão os que se tornarão um processo e ao somarmos esse número ao de feitos que já estão em andamento nos tribunais, o número a que se chegará é exorbitante. Destaca-se, mais uma vez, que os números acima mencionados dizem respeito somente ao último trimestre de 2010.

Se a situação na polícia judiciária civil do Estado de São Paulo é calamitosa, quanto mais a situação do Poder Judiciário Paulista. De acordo com as informações do site “Justiça em números”, do Conselho Nacional de Justiça, em 2009, o Judiciário Paulista registrou 534.284 novos casos. Na época, haviam 770.232 casos criminais pendentes de conhecimento.

Em segundo grau, a situação também não era diferente. O Tribunal de Justiça de São Paulo, no mesmo ano, registrou 145.117 casos novos criminais. Naquele ano, haviam 105.228 casos pendentes de julgamento no Tribunal. A taxa de congestionamento em segunda instância chegava a 64,7%.

Como era de se esperar, com um número tão grande de processos, os gastos também são exageradamente altos. A despesa total da Justiça Paulista em 2009 foram de exatos R$ 4.795.975.135. O Judiciário Paulista arrecadou com recolhimentos diversos R$ 1.317.360.458, quantia esta que representa apenas 27% da despesa total da Justiça.

Estima-se que a cada novo processo que a Justiça recebe são gastos, em média, R$ 600,00.[111]

Necessário se faz também trazer alguns dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo - SAP, já que os números supracitados da Polícia Judiciária e do Poder Judiciário implicam diretamente na situação carcerária do Estado.

Em 1999 havia 53.177 pessoas presas em 62 unidades coordenadas pela SAP. Em 2009, o número de presos era de 130.814, número este que representa um aumento de 180%[112].   

Dados divulgados em 2010 pelo Conselho Nacional de Justiça colocam o Brasil no ranking do terceiro país com maior população carcerária do mundo, ou seja, 494.598 presos. Com esse número o Brasil só fica atrás dos Estados Unidos e da China.[113]

Atualmente, no Estado de São Paulo há 167.713 presos (homens e mulheres) para as atuais 104.053 vagas divididas entre os 319 estabelecimentos prisionais existentes no estado, ou seja, há um déficit de mais de 63 mil vagas. Dentre os presos, somente 37% destes são presos provisórios.[114]

Num primeiro momento, esse aumento da população carcerária poderia indicar algo positivo no sentido de demonstrar que a justiça está sendo feita e que se tem punido efetivamente os delinqüentes. Essa afirmação é um tanto que perigosa. O aumento da população carcerária pode indicar, de fato, um maior número de condenações judiciais, no entanto, a questão é outra: manter mais pessoas em cárcere tem dado resultados?

Em 2008, o índice de reincidência no Estado de São Paulo era de 58%[115], ou seja, mais da metade das pessoas que eram condenadas, tornavam a praticar crimes. Esse índice revela, seguramente, que o Estado não estava conseguindo cumprir as finalidades pretendidas com a prisão.

Note-se que o preço de manutenção de uma pessoa na cadeia varia entre 1000,00 e 1.500,00 reais[116].

Há de se ressaltar que nem todas as pessoas que se encontram presas, já foram condenadas. Aqui não se pretende criar qualquer tipo de ideologia no sentido de desqualificar o cárcere como sanção penal. A intenção, nesse momento, é apenas a de analisar os dados e discutir se tais números não poderiam ser menores caso o princípio da insignificância fosse aplicado em fases anteriores ao processo ou ainda no início deste.

6.2 A discricionariedade da autoridade policial e a possibilidade de aplicação imediata do princípio da insignificância

Através da breve análise realizada no item anterior percebe-se o verdadeiro caos em que se encontram o Poder Judiciário e a Polícia Judiciária. A pergunta que se faz é: será que o delegado de polícia pode aplicar imediatamente o princípio da insignificância, deixando de elaborar um termo circunstanciado ou um inquérito policial, resolvendo a questão prontamente e evitando a elaboração do processo?

Antes de responder a questão suscitada, convém esclarecer alguns pontos pertinentes ao título desse item, já que estes são essenciais para a solução daquela.

Autoridade policial é o agente do Poder Executivo encarregado de manter ou de restaurar a ordem e segurança públicas e reprimir atos que atentem contra a propriedade e os bons costumes.[117] Essa autoridade é o delegado de polícia, civil ou federal, que além das funções mencionadas, também possui a função de instaurar e conduzir o inquérito policial e o termo circunstanciado, que são procedimentos administrativos que visam a colheita de provas para que possam servir de base para a propositura da ação penal.

Embora os livros tradicionalmente indiquem a discricionariedade como característica do inquérito policial, tenho que tal característica ou poder é, em verdade, do delegado de polícia.

A discricionariedade do delegado de polícia consiste no poder de determinar as diligências investigatórias a serem realizadas no curso do inquérito, ou seja, o delegado de polícia conduz as investigações da forma que melhor lhe aprouver. A autoridade policial pode atender ou não aos requerimentos patrocinados pelo indiciado ou pela própria vítima, fazendo um juízo de conveniência e oportunidade quanto à relevância daquilo que lhe foi solicitado[118].

A discricionariedade abrange também a liberdade que a autoridade policial tem em instaurar ou não o procedimento administrativo ao deparar-se com um fato trazido pelos seus subordinados, outros policiais ou mesmo pelo próprio ofendido. Essa liberdade, não existirá quando o juiz ou o representante do Ministério Público requisitar a instauração de inquérito policial.

Pode-se chegar a tal conclusão através do seguinte trecho da decisão proferida pelo Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:

A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante.[119]

Se a autoridade policial pode decidir sobre a lavratura ou não do auto de prisão em flagrante, porque ela não poderia decidir sobre a instauração ou não do inquérito policial ou sobre elaboração ou não do termo circunstanciado?

Ademais, é sabido que à autoridade policial compete a verificação da ocorrência ou não de crime. Verifica-se a materialidade delitiva e tenta-se obter a autoria ou ao menos aos indícios de autoria.

Como dito alhures, o princípio da insignificância retira a tipicidade da conduta delituosa do agente. A tipicidade é um dos elementos do fato típico e ao retirar-se esta, o fato típico resta descaracterizado, ou seja, não ocorre.

Dessa forma, analisando somente as funções e os poderes do delegado de polícia, bem como os elementos constitutivos do crime em seu conceito analítico, tem-se que é legal a aplicação do princípio da insignificância pela a autoridade policial quando esta verificar, no caso concreto, a insignificância do crime segundo os parâmetros estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal.

Tal solução mostra-se inclusive plausível frente aos dados trazidos no item anterior haja vista que constituiria numa economia significativa ao Estado e também numa forma de realização da justiça de maneira mais célere. Em palavras simples, a adoção imediata do princípio da insignificância pela autoridade policial é uma das formas de realizar o princípio preconizado por todos os ramos direito, qual seja o da economia e celeridade processual.

A fim de que o ato seja pautado de legalidade e seriedade, defendo, pessoalmente, que ao aplicar o princípio da insignificância a autoridade policial deva redigir um documento simples que contenha os dados principais do agente e um pequeno resumo dos fatos apenas para controle interno e externo de outros órgãos da segurança pública. Acredito, ainda, que esta simples documentação evitaria o benefício reiterado do princípio da insignificância por pessoas que reiteradas vezes poderiam cometer delitos insignificantes, agindo com má-fé, bem como minimizaria eventuais ocorrências de corrupção.


CONCLUSÃO

No decorrer deste trabalho foi visto que o direito penal visa proteger aqueles bens jurídicos de maior relevância. Tratou-se de todos os crimes contra o patrimônio, oportunidade em que foram analisadas as peculiaridades de cada um deles.

Foi defendido e abordado que o direito penal, devido à sua própria importância, não deve preocupar-se com ninharias ou delitos insignificantes, irrelevantes ou ínfimos.

Os julgados trazidos ao trabalho serviram para mostrar que, embora não consagrado expressamente na Constituição Federal ou no Código Penal ou mesmo no Código de Processo Penal, o princípio da insignificância vem sendo aplicado e conseqüentemente reconhecido como legítimo pelos tribunais nacionais.

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Ademais, ao destacar-se a importância dos princípios, de maneira geral, na constituição de um estado e a relação existente entre o princípio da bagatela e o princípio da dignidade da pessoa humana, ficou evidente que a simples argumentação de ausência de previsão no ordenamento jurídico não é suficiente para obstar a aplicação do princípio da insignificância.

Chegou-se à conclusão que o princípio da insignificância retira a tipicidade da conduta, tipicidade esta que pode ser tanto a conglobante, segundo os ensinamentos de Zaffaroni, ou a material. A não verificação da tipicidade, que é um dos elementos do fato típico, acaba por desqualificar todo o fato criminoso insurgindo na inocorrência de delito. 

Admitimos que o princípio da insignificância nem sempre poderá ser aplicado a todos os crimes contra o patrimônio em razão da própria gravidade do delito, bem como em razão do bem jurídico tutelado.

Através do parâmetro criado pelo Supremo Tribunal Federal, conclui-se que o princípio da bagatela somente será aplicado quando houver a mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Infelizmente, observou-se que para ver reconhecido o princípio da insignificância é necessário, na maior parte das vezes, recorrer-se ao Superior Tribunal de Justiça ou ao Supremo Tribunal Federal, o que pode demorar anos haja vista os dados revelados no capítulo 6.

Outro problema que observamos foi a ausência de unidade do Tribunal de Justiça de São Paulo, ou seja, notamos que há divergência por parte de algumas câmaras criminais no que tange à aplicação do princípio da insignificância. Ao nosso modo de ver, essa divergência tão discrepante acaba resultando em insegurança jurídica já que o interessado ficará à mercê da sorte, haja vista que o reconhecimento da insignificância dependerá em muito da câmara que receberá seu recurso e não no preenchimento efetivo dos requisitos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal.

Felizmente, não poderíamos deixar de comentar, também, que as câmaras criminais mais novas do tribunal paulista parecem que têm visto o princípio da insignificância com mais receptividade, seguindo, portanto, a tendência do Superior Tribunal de Justiça.

Algo que particularmente chama-nos a atenção foi o fato de que o princípio da insignificância fora admitido em casos de crimes qualificados e em casos em que o agente era reincidente. Isto revela uma maior abrangência desse princípio mesmo nos casos em que a maioria da população não aceitaria como válido em razão da própria cultura de criar pré-conceitos dos outros. Acreditamos que tais decisões creditam o Poder Judiciário como órgão realizador do ideal de justiça, já que foram analisados os elementos objetivos dos delitos, bem como a situação individual de cada caso concreto.

No último capítulo, foi feito um “apelo” no sentido de se aplicar o princípio da insignificância já no momento em que o delegado toma conhecimento do fato ocorrido. Sustentou-se a legalidade de tal atitude e indiretamente pretendeu-se reconhecer a aplicação imediata do princípio da insignificância pela autoridade policial como um meio de diminuir o número de processos em andamento no país e um modo do Estado economizar com gastos desnecessários.

É claro que não se pode elevar o princípio da insignificância ao ponto de considerá-lo como o solucionador de todos os problemas que o Judiciário enfrenta, longe disso é a nossa intenção.

Pretendeu-se traçar algumas idéias que levassem o leitor ao raciocínio, de modo que ele mesmo pudesse tecer algumas conclusões. Foram vistos os gastos que envolvem a manutenção de uma pessoa encarcerada e os gastos bilionários da Justiça com processos. Pergunta-se: será que alguns desses gastos não poderiam ser evitados? Fora o tempo que demanda para um recurso chegar até as instâncias superiores, na maioria das vezes o inquérito policial ou a ação penal logo que é ajuizada já saiu bem mais caro para o Estado do que o próprio patrimônio violado quando da prática delituosa.

Sem levarmos em conta a questão econômica da aplicação do princípio da insignificância, há ainda a questão da finalidade da pena. No capítulo três discorremos sobre a sanção penal e lá foi abordado que a pena tem a função ressocializadora, retributiva e preventiva. Com base no índice de reincidência existente somente do Estado de São Paulo dá para se ter uma idéia que o cárcere não consegue atingir nenhuma das finalidades da pena, assim deve-se refletir: seria justo manter alguém preso, ainda que somente até a prolação da sentença de primeiro grau, por ter cometido um delito insignificante, sujeitando-o aos malefícios da prisão e o expondo ao contato com os mais diversos criminosos?

Conforme mencionado no capítulo 4, a aplicação do princípio da insignificância do âmbito criminal não impede que o agente seja punido em outras esferas do direito. Tenho que essa afirmação é a solução para aqueles que possam achar que a aplicação do princípio da insignificância é uma forma de impunidade.

Por fim, concluímos que o princípio da insignificância não é uma forma de impunidade e sim uma forma de realização da justiça, isto devido a ele estar intimamente relacionado com o princípio da dignidade da pessoa humana e também ao fato da aplicação desse princípio contribuir para a realização de outros princípios, tais como o da celeridade e economia processual.

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Sobre a autora
Aline Albuquerque Ferreira

Delegada de Polícia do Estado de São Paulo. Ex-Advogada. Pós-graduada em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público. Pós- graduanda em Direito Público. Possui graduação em direito pela Universidade Paulista (2011). Aprovada no IV Exame da Ordem. Tem experiência em direito, com ênfase em direito penal e direito do consumidor.Foi estagiária concursada do Ministério Público Estadual (área criminal) e Ministério Público Federal (área: tributária, constitucional). Foi estagiária da magistratura estadual de São Paulo na área criminal, estagiária na vara das execuções criminais de São Paulo e Vara das Execuções Fiscais.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Aline Albuquerque. A aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra o patrimônio do Código Penal Brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3263, 7 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21947. Acesso em: 28 mar. 2024.

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