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Processo eletrônico: enfoque no controle dos procedimentos internos como forma de garantir a eficiência da função pública jurisdicional e a efetividade da prestação jurisdicional

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O processo eletrônico, ao possibilitar o controle dos procedimentos internos realizados pelos servidores da justiça, colabora com a busca pela maior eficiência na prestação dos serviços do Poder Judiciário e, consequentemente, efetividade da prestação jurisdicional.

Resumo: À luz dos ditames do Consenso de Washington, o Estado vem aprimorando as suas funções primordiais em prol da melhor administração dos interesses públicos. Assim, a Administração Pública vem utilizando novos instrumentos (oriundos da tecnologia da informação) e mudando o seu modo de gerenciamento com o objetivo de garantir a adequada prestação dos serviços públicos e atividades inerentes às funções públicas. No âmbito do Poder Judiciário, é possível identificar essa novel postura, diante de elementos que sistematizam a busca pela maior eficiência na prestação jurisdicional. Sob esse contexto, busca-se analisar a relevância dos instrumentos de controle dos procedimentos internos, realizados no âmbito da 7ª Vara Federal (Juizado Especial Federal) da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, para a eficiência da prestação da função pública jurisdicional e, consequentemente, a efetividade da prestação jurisdicional. Para isso, foi realizada uma pesquisa exploratória bibliográfica e documental, com o levantamento bibliográfico sobre o objeto de estudo, bem como a coleta de dados do Sistema Creta. Com a análise das informações obtidas, pode-se inferir que o maior enfoque nos procedimentos internos realizados pelos órgãos do Poder Judiciário, no sentido de garantir a eficiência do serviço jurisdicional, permite que a busca pela efetividade das decisões judiciais seja mais algo mais viável. Nesse sentido, a possibilidade do acompanhamento simultâneo das atividades realizadas por cada servidor e, pois, do desenvolvimento interno do órgão jurisdicional, contribui para que a resposta jurisdicional seja concedida com a maior brevidade possível e, com isso, satisfaça tempestivamente aos interesses das partes processuais.

Palavras-chave: Processo Eletrônico. Eficiência da prestação jurisdicional. Efetividade das decisões judiciais.

Sumário: 1. Introdução. 2. Serviço jurisdicional: serviço público ou função pública? 2.1. Análise do conceito de serviço público. 2.2 Análise do conceito de função pública. 2.2.1. Função pública: concepção política e constitucional. 2.2.2. Função pública: categoria de uma das atividades do estado. 2.3. O serviço jurisdicional como função pública. 3. Atual papel do estado em relação aos jurisdicionados. 3.1. Consenso de Washington: principais diretrizes. 3.2. Reforma administrativa. 4. Processo eletrônico: análise à luz do direito administrativo e direito processual civil. 4.1. A tecnologia da informação diante do novo paradigma da gestão pública. 4.2. O poder judiciário e a busca pelo aprimoramento da função jurisdicional. 4.2.1. Aplicação de recursos tecnológicos no âmbito dos processos judiciais. 4.2.2. Dinâmica geral do processo eletrônico. 4.3. Identificação de uma nova fase do processo civil. 4.3.1. Fases do processo civil já consagradas. 4.3.2. Enfoque nos procedimentos internos. 4.3.2.1. Reformas do processo civil: racionalização dos procedimentos internos. 5. Do processo eletrônico nos Juizados Especiais Federais da seção judiciária do Rio Grande do Norte. 5.1. Juizado especial federal: ambiente favorável à criação do processo eletrônico. 5.2. Sobre o sistema Creta. 5.2.1. Estrutura e funcionalidade. 5.2.2. Identificação dos instrumentos de controle dos procedimentos internos. 5.2.2.1. Relatórios de produtividade. 5.2.2.1.1. Processos distribuídos. 5.2.2.1.2. Processos em andamento. 5.2.2.1.3. Processos por advogado/órgão. 5.2.2.1.4. Processo por assunto judicial. 5.2.2.1.5. Processos por classe. 5.2.2.1.6. Processos por fase judicial. 5.2.2.1.7. Processos por situação do processo. 5.2.2.1.8. Processos por valor da causa. 5.2.2.1.9. Processos pendentes de sentença. 5.2.2.1.10. Tempo médio. 5.2.2.2. Estatísticas estruturadas pelo sistema. 5.2.2.2.1. Boletim estatístico 01. 5.2.2.2.2. Boletim estatístico 02. 5.2.2.2.3. Boletim estatístico 03. 5.2.2.2.4. Mapa de acompanhamento de audiências. 5.2.2.2.5. Mapa de produtividade de audiências. 5.2.2.2.6. Relatório estágio probatório – Juiz Federal substituto. 5.2.2.3. Painel do sistema. 6. Análise dos dados obtidos. 6.1. Acerca da prestação do serviço jurisdicional . 6.1.1 Relatórios de produtividade.6.1.1.1. Relatório de processos pendentes de sentença. 6.1.1.2. Mapa de acompanhamento de audiências. 6.1.1.3. Relatório estágio probatório – Juiz Federal substituto. 6.1.1.4. Boletim estatístico tipo 01. 6.1.1.5. Boletim estatístico tipo 02. 6.1.2. Fases processuais. 6.1.2.1. Painel do sistema Creta. 6.1.2.2. Processos em andamento. 6.2. Acerca do tempo de duração do processo. 6.2.1. Tempo médio de duração do processo. 7. Correlação entre eficiência da função jurisdicional e efetividade da prestação jurisdicional. 7.1. Relevância dos instrumentos de controle dos procedimentos internos. 7.2. Compreensão da efetividade da prestação jurisdicional. 8. Conclusão. Referências.


1. INTRODUÇÃO

A Reforma do Estado, como tendência mundial e motivada principalmente pelo Consenso de Washington, visa primordialmente modificar a perspectiva de atuação do Estado (de suas funções administrativas), bem como promover o equilíbrio fiscal (redução de despesas, à luz do pensamento neoliberal). Em consonância com esse posicionamento, é possível verificar que o Estado tem buscado aprimorar, gradativamente, as suas funções, em prol da melhor administração dos interesses públicos.

A constitucionalização do princípio da eficiência incentivou, de modo primordial, a realização de mudanças no comportamento funcional do Estado, no sentido de garantir maior dinamização de suas atividades. Destarte, a Administração Pública, de modo semelhante as entidades da iniciativa privada, vem utilizando os novos instrumentos (oriundos da tecnologia da informação) e mudando o seu modo de gerenciamento (administração pública de resultados) com o objetivo de garantir a adequada execução de suas funções públicas.

Sob esse contexto, foi possível identificar, no âmbito do Poder Judiciário, a imprescindibilidade de se promover mudanças estruturantes por meio de reformas rápidas e profundas no sistema organizacional dos órgãos julgadores. De fato, cria-se a concepção de que o serviço jurisdicional, como função pública, necessita ser analisado não apenas do ponto de vista do Direito, mas, sobretudo, da sua organização (gestão) dentro do órgão.

A partir de então, há a inserção de recursos tecnológicos no âmbito dos órgãos desse Poder com forma de promover o melhor desenvolvimento dos procedimentos internos necessários para o regular andamento processual das ações judiciais. Com a gradual utilização da tecnologia de informação, alcança-se o desenvolvimento de um modelo de processo judicial eletrônico, por meio do qual há a substituição dos autos em papel por autos arquivados (ou gerenciados) com o auxílio da internet. Ou seja, concebe-se um modelo de sistema virtual, por meio do qual todas as peças processuais, decisões, certidões, intimações e outros elementos inerentes ao desenvolvimento processual são elaborados, arquivados e disponibilizados na rede mundial de computadores.

Num primeiro momento, há a implantação desse modelo virtual no âmbito dos Juizados Especiais Federais (JEF´s), fomentada pelo suporte normativo (conferido pela Lei nº. 10.259, de 12 de julho de 2001), bem como pelo princípio da informalidade (inerente ao rito processual desse órgão jurisdicional). No âmbito da 5ª Região da Justiça Federal, há a implementação do processo eletrônico, em junho de 2004, por meio do Sistema Creta no JEF de Sergipe, expandindo esse sistema, após certo tempo, aos demais JEF´s das Seções Judiciárias vinculadas ao Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região.

Em razão da recente utilização desse modelo de processamento dos autos processuais nos órgãos do Poder Judiciário, ainda é escasso o repertório de estudos doutrinários acerca do tema1. Destarte, torna-se relevante, do ponto de vista científico, a elaboração desse trabalho monográfico, no sentido de agregar conhecimento interdisciplinar no campo do direito administrativo e direito processual civil sobre esse novel tema do processo eletrônico.

Com amparo nas mudanças oriundas no âmbito do direito administrativo (como a Reforma do Estado, a previsão constitucional expressa do princípio da eficiência e a mudança no modelo de gerenciamento da Administração Pública), identificam-se reflexos no âmbito do direito processual civil (diplomas legislativos que visam dinamizar o rito processual civil).

Sendo assim, com o modelo do processo eletrônico busca-se promover a praticidade da atividade forense, sem alteração substancial nos atos processuais existentes no ordenamento jurídico pátrio, restando modificações apenas no modo de processamento e armazenamento de informações pertinentes. Portanto, o sistema virtual (para o desenvolvimento regular do andamento processual) permite a dinamização dos atos praticados pelos servidores, uma vez que há a análise direta e simultânea dos procedimentos internos realizados no âmbito do órgão jurisdicional.

Sob esse pórtico, busca-se analisar a relevância dos instrumentos de controle dos procedimentos internos2, realizados no âmbito dos JEF´s da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte, para a eficiência da prestação da função jurisdicional e, consequentemente, a efetividade da prestação jurisdicional. Para isso, foi realizada uma pesquisa exploratória bibliográfica e documental, com levantamento bibliográfico acerca do tema em doutrina e textos monográficos, bem como coleta de dados do modelo de sistema virtual (Sistema Creta) utilizado nesses órgãos jurisdicionais.


2. SERVIÇO JURISDICIONAL: SERVIÇO PÚBLICO OU FUNÇÃO PÚBLICA?

2.1. ANÁLISE DO CONCEITO DE SERVIÇO PÚBLICO

É cediço que a noção de serviço público perfaz-se como uma das mais relevantes no estudo do Direito Administrativo. Para Mello (2008), tal relevância reside, em princípio, no status constitucional dos deveres do Estado em relação à sociedade, o que reflete uma escolha política adequada a determinado momento histórico.

Segundo dispõe Aguillar (2009), a identificação de determinada atividade como sendo serviço público tem como objetivo reconhecer o regime jurídico que lhe é aplicável. Com efeito, para a execução de uma atividade enquadrada como serviço público, é necessária a observância das regras aplicáveis a este instituto. No entanto, as atividades classificadas como sendo meramente econômicas (em regra, exercidas por particulares, no regime de direito privado) não se submetem às restrições e imposições típicas dos serviços públicos.

Em face disso, grande discussão emerge com a tentativa de conceituação desse instituto. Os primeiros esforços nesse sentido foram realizados na França, com a Escola do Serviço Público, patrocinada por doutrinadores como Léon Duguit. Nesse contexto histórico, sobressaía-se a compreensão de que o serviço público era primordial para o Direito Administrativo, haja vista ser caracterizado como sendo a pedra angular desse ramo de estudo. Conforme expõe Mello (2008, p. 659),

[...] a noção de serviço público apareceu como fórmula revolucionadora do Direito Público em geral e do Direito Administrativo em particular, intentando em fazer substituir o eixo metodológico desta disciplina – que dantes se constituía pela ideia de “poder” estatal - pela ideia de “serviço aos administrados”.

Destarte, o serviço público era concebido como fundamento do Direito Público (em específico o Direito Administrativo) e como critério para a definição da repartição de competências entre a jurisdição administrativa e o Conselho de Estado da França.

A noção de serviço público, portanto, abarcava as atividades, prestadas pelo Estado, destinadas ao oferecimento de comodidades e utilidades aos administrados. À luz dessa compreensão não se concebia a possibilidade de exercício de atividades materiais (de satisfação à sociedade) sem intervenção da força estatal, ou seja, a instituição de meios de delegação do serviço público (concessão, permissão) a entidades de direito privado.

Em momento posterior, utilizou-se da concepção de serviço público para designar outros tipos de atividades (que não essenciais ou destinadas à satisfação dos administrados), como a exploração de atividade econômica pelo Estado. Identifica-se, nesse período, a permissão de se executar atividades estatais sob o regime de direito privado, abarcando, até mesmo, atos da iniciativa privada.

Além disso, possibilitou-se que particulares exercessem atividades conferidas ao Estado, sob o regime de direito público (mas sem que houvesse a aplicação do instituto da concessão nos moldes de sua compreensão atual). Segundo Mello (2008, p. 660), essa forma de prestação de serviço público por entidades de direito privado classificava-se como “serviço público virtual”.

Hordienamente, é possível identificar a coexistência de dois sentidos para o instituto do serviço público, quais sejam, o amplo e o restrito. De acordo com Aguillar (2009, p. 300), “em sentido amplo, vulgar, serviço público é sinônimo de atividade do Estado, qualquer que seja ela”. Remonta-se, com essa concepção, aos estudos pioneiros na França sobre o tema, fato que pode ocasionar dificuldade interpretativa quando da adequada classificação da atividade exercida.

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Com efeito, a doutrina identifica que a amplitude do conceito de serviço público dificulta a sua efetiva compreensão no ordenamento jurídico. Nesse sentido, “[...] adotar uma noção com contornos desatados não apresenta préstimo algum, sobretudo para a problemática atual do direito Administrativo e em particular para a sistematização das atividades administrativas [...]” (MELLO, 2008, p. 660, grifos do autor).

Em sentido restrito, tem-se serviço público, em linhas gerais, como “atividade econômica atribuída ao Estado, em regime de privilégio, e que pode ser desempenhada pela iniciativa privada apenas se obedecidas certas formalidades e satisfeitos certos requisitos” (AGUILLAR, 2009, p. 300). Apesar da transcrição desse conceito, é preciso salientar que há complexas posições sobre o adequado sentido estrito de serviço público.

Um primeiro ponto a ser ressaltado é a inexistência, no sistema constitucional vigente, de um conceito jurídico do instituto. No texto da Constituição Federal, o artigo 175 expõe um elemento de caracterização do serviço público, qual seja, a possibilidade de delegação (por concessão ou permissão) do exercício desse tipo de atividade. Assim, “[...] os serviços públicos de que fala o artigo 175 são aqueles em sentido estrito, porque há inúmeras atividades estatais que não são suscetíveis de licitação para concessão ou permissão [...]” (AGUILLAR, 2009, p. 311).

Nesse afã, cabe inferir que a Constituição Federal especifica as atividades que se classificam como sendo serviço público, mas não expressa um conceito jurídico sobre o instituto. Depreende-se, pois, que serviço público corresponde a uma atividade econômica à qual o texto constitucional conferiu essa qualificação (com consequente submissão ao regime jurídico próprio).

Apesar de não ter o condão de conceituar, o artigo 175 induz a uma modificação interpretativa da matéria no momento em que expressa a possibilidade de delegação do serviço público. Afasta-se, com essa previsão, a compreensão de que toda e qualquer atividade estatal é serviço público e, com isso, exclui dessa classificação atividades insuscetíveis de exercício pela iniciativa privada.

Outro ponto essencial, decorrente da exposição anterior, é que os conceitos expostos na doutrina não se fomentam no direito positivo. Conforme expõe Aguillar (2009, p. 308), “os conceitos existentes de serviço público, quaisquer que sejam eles, são formulados doutrinariamente a partir da observação dos fatos ou da aplicação concreta do direito”.

Diante da inexistência de conceito jurídico expresso no direito positivo, os doutrinadores, com base no ordenamento jurídico e seus princípios basilares, formulam estudos com o intuito de delimitar, mesmo que para fins didáticos, o elemento central da concepção de serviço público.

Assim, traz-se o conceito divulgado na doutrina administrativista:

Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça às vezes, sob regime de Direito Público – portanto, consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais –, instituído em favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.(MELLO, 2008, p. 659, grifos do autor).

Portanto, Mello (2008) destaca, na elaboração do conceito de serviço público, algumas características primordiais para compreensão desse instituto: oferecimento de utilidade ou comodidade à sociedade; dever do Estado em prestar tais atividades; regime de direito público (com supremacia e restrições especiais). Para Justen Filho (2006), o conceito de serviço público fomenta-se em três aspectos, quais sejam, ângulo material (ou objetivo), ângulo subjetivo e o ângulo formal.

O aspecto material perfaz-se diante da satisfação de necessidades individuais essenciais da coletividade. No conceito de Mello (2008), salienta-se o fato de o substrato material do conceito de serviço público ser inerente à noção desse instituto, em razão da persecução de interesses particulares (sem atender às necessidades do público em geral) não justificar a responsabilidade do Estado em executar essas atividades. Para esse autor, o objetivo de satisfação das necessidades individuais e coletivas da sociedade é elemento primordial para a noção de serviço público, sob pena descaracterização do instituto.

Quanto ao aspecto subjetivo, Justen Filho (2006) compreende tratar-se da atuação desenvolvida pelo Estado, ou por quem exerça atividade sua em razão de alguma forma de concessão ou permissão de execução do serviço a entes de personalidade jurídica de direito privado. A respeito desse elemento, é preciso ter cautela, uma vez que, para esse autor (corrente essencialista), não é a titularidade do Estado que qualifica o serviço como público, mas a essencialidade da atividade (serviço público) para o interesse coletivo (garantia de direitos fundamentais) que justifica a responsabilidade do Estado em titularizar tais serviços.

No que tange ao aspecto formal, Justen Filho (2006) argumenta que o serviço público será toda aquela atividade submetida ao regime jurídico de direito público. À luz da exposição desse autor, esse elemento do conceito de serviço público, por si só, não é suficiente para a caracterização do instituto, argumentando que o cerne da classificação deve estar voltado para o aspecto material (satisfação de direitos fundamentais) do serviço público.

Para Mello (2008), o elemento formal do serviço público é decisivo para a formulação do seu conceito jurídico, decorrendo deste os princípios pertinentes ao instituto: dever inescusável da prestação de serviço público pelo Estado; supremacia do interesse público sobre o privado; adaptabilidade; universalidade; continuidade; transparência; motivação; modicidade das tarifas; controle.

Cabe citar que a enumeração de princípios pertinentes ao serviço público varia a depender da compreensão de cada doutrinador sobre o tema. Ademais, não será objeto deste trabalho a análise desse tema.

Segundo Gasparini (2007), a dificuldade de conceituação desse instituto reside na sua variação diante das necessidades políticas, sociais e culturais de cada sociedade em cada época. Com isso, é possível inferir que o conceito de serviço público abarca algumas discussões pertinentes.

2.2 ANÁLISE DO CONCEITO DE FUNÇÃO PÚBLICA

Imprescindível, de pronto, analisar as diferentes conotações do termo “função pública” em nosso ordenamento jurídico. De fato, parte da doutrina o identifica como sinônimo de funções do Estado, sobressaindo-se, nesse caso, a análise política e constitucional do termo.

Além disso, é possível identificar o termo como caracterizador de uma das atividades exercidas pelo Estado em sua atuação direta. Nesse caso, identificam-se três categorias de atividades, analisadas pelo Direito Administrativo e pelo Direito Econômico: funções públicas, serviços públicos e atividades econômicas desempenhadas pelo Estado.

2.2.1. Função pública: concepção política e constitucional

À luz da doutrina, é possível identificar que “[...] função pública, no Estado Democrático de Direito, é a atividade exercida no cumprimento do dever de alcançar o interesse público mediante o uso dos poderes instrumentalmente necessários conferidos pela ordem jurídica” (MELLO, 2008, p. 29, grifos do autor).

Nesse caso, o doutrinador utiliza a expressão “função pública” como sinônimo de função administrativa (ou função do Estado), sob a concepção de satisfação ao interesse da sociedade (interesse público). Pode-se identificar, dentro dessa concepção, pois, a trilogia de funções do Estado: legislativa, executiva e judiciária.

Em conformidade com esse posicionamento, “as funções do Estado [...] são aquelas atreladas aos órgãos da soberania nacional” (TAVARES, 2007, p. 1027). Para esse autor, a definição das funções do Estado (como teoria) relaciona-se diretamente com as características, fins e poderes do Estado correspondente. Assim há uma relação intrínseca entre as funções públicas e os Poderes Constitucionais, de modo que aquelas seriam apenas decorrência da instituição destes.

Apesar da relevância dessa concepção, não constitui objeto desse trabalho a análise do conceito de função pública a partir dessa linha de estudo.

2.2.2 Função pública: classificação de uma das atividades do Estado

Com base na doutrina de Aguillar (2009), os elementos para a classificação de uma atividade como função pública residem no caráter não econômico quando desenvolvida pelo Estado e na irrenunciabilidade (e não exclusividade) do ente estatal em executá-la. Mencionado autor rejeita, portanto, o critério da essencialidade como justificador da avocação da titularidade de exercício pelo Estado.

Quanto ao primeiro ponto, é cediço que a determinação da intervenção do Estado no domínio econômico decorre dos comandos constitucionais (imperativo de segurança nacional ou relevante interesse público). Portanto, regra geral, as atividades desempenhadas pelas entidades estatais não possuem caráter econômico, decorrendo do poder-dever de atendimento ao interesse público.

Nesse sentido, Aguillar (2009) afirma que as atividades, exercidas pelo Estado como função pública, não possuem caráter econômico enquanto estão sob a titularidade do ente estatal. Assim, no momento que o exercício é delegado a uma entidade de direito privado, a atividade passa a assumir a característica de atividade econômica. Desse modo,

Normalmente as funções públicas não se constituem em atividades econômicas enquanto desempenhadas pelo Estado. Ocorre, porém, que as atividades paralelas às funções públicas que não forem vedadas à iniciativa privada por esta serão desempenhadas, evidentemente, na condição de atividade econômica. (AGUILLAR, 2009, p. 338)

É preciso elucidar que essa posição não é unânime, como exemplo, cite-se a classificação dos serviços educacionais. Com base nos argumentos de Aguillar (2009), esses são considerados como função pública irrenunciável pelo Estado, embora haja a possibilidade de entidade de direito privado os exercerem, momento em que tais serviços assumem a classificação de atividade econômica.

No entanto, o Supremo Tribunal Federal já expôs a sua posição no sentido de classificar os serviços educacionais como serviço público mesmo quando exercido por entidades de direito privado:

Os serviços de educação, sejam os prestados pelo Estado, sejam os prestados por particulares, configuram serviço público não privativo, podendo ser prestado pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou autorização. Tratando-se de serviço público, incumbe às entidades educacionais particulares, na sua prestação, rigorosamente acatar as normas gerais de educação nacional e as dispostas pelo Estado-Membro no exercício de competência legislativa suplementar (§2º do art. 24 da Constituição do Brasil). (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 1.266. Rel. Ministro Eros Grau. Julgado em 06 abr 2005, sem grifos no original).

Conforme Aguillar (2009), há uma justificativa para o posicionamento expresso pela Suprema Corte e por demais doutrinadores e juristas, qual seja o receio de que a classificação dos serviços educacionais como algo distinto de serviço público implique na exclusão do controle estatal. Argumenta, no entanto, que mesmo sendo passível o desempenho de tal atividade3 pela iniciativa privada, não há a liberdade plena de atuação (existindo regras essenciais para o seu exercício).

O segundo elemento de sua classificação reside na irrenunciabilidade, ou seja, a “[...] circunstância de não poder o Estado furtar-se a desempenhá-las” (AGUILLAR, 2009, 336). Nesse momento, o autor defende a distinção entre exclusividade e irrenunciabilidade, sob argumento de que a compreensão de tais atributos como sinônimos não é eficaz para caracterizar certa atividade como função pública, in verbis:

Não se deve confundir exclusividade com irrenunciabilidade. As funções públicas nem sempre são desempenhadas exclusivamente, por mais essenciais que sejam aos olhos da generalidade das pessoas. O que de fato as funções públicas têm por característica fundamental é a irrenunciabilidade. (AGUILLAR, 2009, p. 336, grifos do autor)

Esclarece que o único atributo absolutamente exclusivo do Estado refere-se à repressão e ao constrangimento, de modo que apenas o Estado detém o poder-dever de impor uma conduta a alguém (ou executar o decidido) sob pena de sanções jurídicas e de restringir a liberdade.

No que se refere à essencialidade, defendida por alguns autores como elemento primordial da classificação das funções públicas, Aguillar (2009) não a admite. Para esse autor, há um equívoco, sob argumentando de que não é a essencialidade da atividade que justifica a avocação desta pelo Estado com exclusividade. Com base no seu posicionamento, há atividades que, embora essenciais, não são desempenhadas com exclusividade pelo Estado (serviços educacionais, serviço de saúde).

De fato, o doutrinador identifica, a título de exemplificação, algumas atividades que se enquadram na sua concepção de função pública: “[...] aquelas decorrentes da instituição dos Poderes Constitucionais, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, as tarefas inerentes da Administração pública, como a imprensa oficial, a arrecadação e administração de impostos” (AGUILLAR, 2009, p. 337). Defende, portanto, a compreensão de que o serviço jurisdicional prestado pelo Poder Judiciário merece ser concebido como função pública.

2.3 O SERVIÇO JURISDICIONAL COMO FUNÇÃO PÚBLICA

Com amparo na doutrina de Aguillar (2009), pode-se inferir que os elementos primordiais para a classificação de uma atividade como função pública residem no caráter não econômico quando desenvolvida pelo Estado e na irrenunciabilidade (que não é sinônimo de exclusividade) do ente estatal em executá-la, excluindo-se o critério da essencialidade. Cabe, portanto, analisar a atividade jurisdicional à luz de tais ditames.

O caráter não econômico da função jurisdicional não exige, para a sua compreensão, maiores digressões, uma vez que o exercício da jurisdição possui fundamento constitucional como atividade inarredável do Estado.

A irrenunciabilidade, do mesmo modo, tem amparo constitucional. Com efeito, é cediço que a função jurisdicional de dirimir conflitos é uma das atividades primordiais do Estado a ser desenvolvida pelo Poder Judiciário. Conforme dispõe o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, o Estado não pode eximir-se de apreciar lesão ou ameaça de lesão ao direito dos cidadãos, de modo que o exercício da função jurisdicional é um imperativo que emana do texto constitucional.

Para Tavares (2007), há, em favor do Estado, o monopólio de uso da força (quando necessário) para a solução dos conflitos. Argumenta, pois, que a vedação da justiça privada, nos dias atuais, tem como fundamento a destinação dos conflitos sociais ao Estado, que passa a substituir a vontade das partes na busca pela resolução dos conflitos de interesses que eventualmente surgem no contexto social. Assim

Em primeiro lugar, não é dado ao particular fazer justiça “com as próprias mãos”. Em segundo lugar, todo conflito pode ser levado ao Estado, que deverá solucioná-lo. Nessa última diretriz, podem-se vislumbrar duas ideias que são essenciais: A) o Estado não pode negar-se a apreciar e decidir o conflito social; e B) nenhum conflito poderá ser excluído (previamente, por lei ou por qualquer outro ato) da apreciação dos órgãos estatais competentes. (TAVARES, 2007, p. 1030-1031)

Desse modo, não havendo, em regra4, a autotutela privada, é imprescindível a atuação do Estado na resolução dos conflitos, visto que essa atividade estatal é irrenunciável, pelo Estado, por expressa determinação constitucional.

Conforme exposto, a irrenunciabilidade não é sinônimo de exclusividade. Aquela advém de imperativo constitucional de o Estado promover a solução dos conflitos de interesses por meio de órgão próprio; essa pode estar presente numa atividade inerente ao Estado, mas passível de execução por outras entidades.

Sendo assim, o Poder Judiciário (órgão ao qual é atribuída a função típica de dirimir conflitos) não executa a atividade jurisdicional com exclusividade. De fato, a arbitragem constitui uma forma alternativa de resolução de conflitos, regulamentada pela lei nº. 9.307/96 e aceita pelo ordenamento jurídico.

A arbitragem, de modo semelhante à jurisdição, permite a resolução de conflitos por meio da heterocomposição. Representa, pois, o exercício da função pública jurisdicional, visto que a cláusula arbitral é obrigatória, uma vez estabelecida pelas partes, vedando a atuação do Estado na resolução do conflito correspondente.

No entanto, existem algumas tarefas próprias da jurisdição que não podem ser executadas por entidades diversas do Estado, como a execução forçada dos títulos executivos judiciais ou extrajudiciais. Para Aguillar (2009), tal fato demonstra que a exclusividade do Estado para o exercício da atividade jurisdicional é pertinente apenas a algumas tarefas, não se estendendo, pois, à compreensão geral da atividade como função pública.

Pode-se inferir, pois, que ainda que particulares a executem, o Estado não detém a permissão de renunciá-las (ou não desempenhá-las). Assim, o elemento que sobressai, na classificação defendida, é a circunstância do Estado não poder se furtar de exercer a função pública jurisdicional. Com isso, a essencialidade da atividade não se apresenta como critério suficiente para o seu enquadramento da atividade jurisdicional como função pública, visto que mesmo detendo essa característica, é possível o uso da arbitragem para dirimir conflitos entre as partes.

Nesse pórtico, a percepção do serviço jurisdicional, como função pública do Estado, fomenta-se nos argumentos expostos por Aguillar (2009): caráter não econômico quando desenvolvida pelo Estado e na irrenunciabilidade do ente estatal em executá-la.

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Sobre a autora
Luzia Andressa Feliciano de Lira

Mestranda em Direito Constitucional na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Graduada em Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIRA, Luzia Andressa Feliciano. Processo eletrônico: enfoque no controle dos procedimentos internos como forma de garantir a eficiência da função pública jurisdicional e a efetividade da prestação jurisdicional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3270, 14 jun. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22011. Acesso em: 23 abr. 2024.

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