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Notas críticas acerca da responsabilidade e do estatuto do parlamentar

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As imunidades material e formal são decorrência do constitucionalismo inglês dos séculos XV e XVI. Nossa Carta criou outras garantias institucionais, como o foro por prerrogativa de função, que é voltado exclusivamente para a proteção do exercício parlamentar.

Resumo: Diante da construção de uma separação de funções, nada mais evidente do que a necessidade de se conferir aos poderes os instrumentos necessários para impedirem que os demais causem ingerências que atentem contra sua própria autonomia, da mesma forma que é preciso que se encontrem meios para que entre eles haja um equilíbrio democrático. O Estatuto do Parlamentar, com a previsão de garantias e deveres aos congressistas, longe de ser uma novidade, acaba se tornando uma decorrência lógica da democracia representativa. Ademais, as disposições, a despeito de protegerem os parlamentares em face da macro atividade do Executivo e do Judiciário, acabam evitando que o poderio econômico e as posições meramente pessoais subrepticiamente se tornem objetivos centrais do exercício da função. Assim, as prerrogativas, longe de protegerem a pessoa do parlamentar, atuam na defesa não apenas da função, mas também da própria sociedade, representada pelo seu exercício, como determinam as bases do constitucionalismo.

Palavras-chave: Estatuto Parlamentar. Responsabilidade do Parlamentar. Deveres. Prerrogativas. Imunidades. Foro por prerrogativa de função. Separação de poderes. Decoro parlamentar. Incompatibilidades.


INTRODUÇÃO

A separação de poderes é justamente um dos pilares do constitucionalismo. O artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão já previa: “qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição”[1].

Dalmo Dallari lembra que desde Aristóteles até Montesquieu, a construção de uma teoria de separação de poderes/funções advém da necessidade de não se concentrar o poder nas mãos de um ou poucos, gerando os riscos de um governo ditatorial[2]. A ideia hoje pode até nos parecer simplista, diante de uma arraigada construção contemporânea que parte desse pressuposto, mas é oportuno ressaltar que a própria garantia de sobrevivência dos indivíduos – num aspecto micro – e do Estado – num aspecto macro – dependem de um sistema em que as relações entre funções possam se cobrar e ser cobradas, gerando o equilíbrio necessário para o fortalecimento do Estado e da proteção da pessoa.

Sendo dessa forma, nada mais natural que a Constituição prover as funções do Estado de instrumentos para possibilitar o seu livre exercício, bem como se defender da ingerência das demais funções[3].

Nem seria desarrazoado afirmar que tal instrumentária representa verdadeira garantia institucional, aos olhos da República de Weimar e seus constitucionalistas[4], a fim de promover a proteção do livre agir do Parlamento[5]. Deve-se lembrar que o exercício do livre direito de voto acaba por culminar, em consequência, em um Legislativo que se expresse também de forma livre e garantida, de forma a não transformar em químera o ideal da representatividade[6].

Como afirmar que a democracia, a separação de poderes, a representatividade e a liberdade do voto não são instituições protegidas por nossa Carta Constitucional? E a fina linha que divide o direito fundamental da garantia institucional não pode ser vista como obstáculo para seu âmbito de proteção, pois, o que importa, em suma, é evitar que um mínimo essencial, intangível[7] seja enfraquecido pelo próprio Estado.

Nessa linha, o magistério do professor Paulo Bonavides é esclarecedor:

A garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência da instituição, embargando-lhe a eventual supressão ou mutilação e preservando invariavelmente o mínimo de substantividade ou essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado, porquanto se tal acontecesse, implicaria já o perecimento do ente protegido[8].

Filiado à ideia de um exercício livre de poder, com sede no Estado Liberal, a partir das concepções revolucionárias francesas e norte-americana, desde a nossa Constituição Política do Império do Brasil, já se tem a previsão de inviolabilidade por opinião dos membros das Câmaras (artigo 26 e seguintes). Seguiram-lhe as Constituições de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, embora algumas, nas entranhas de “hiatos autoritários”, o fizessem de maneira apenas formal.

O magistério de Pontes de Miranda, ainda sob a égide da Constituição de 1967, já ensinava que “sem liberdade de pensamento, sem liberdade de emiti-lo (liberdade da palavra, de opinião), não há Poder Legislativo que possa representar, com fidelidade e coragem, os interesses do povo” [9].

E nem se diga, de forma simplista, que o exercício da representatividade se faz apenas mediante abstenção do Estado, no âmbito de políticas meramente protecionistas, levando à inegável conclusão de que o Estado não apenas se limita, mas se exige, a fim de possibilitar a boa fluidez do próprio exercício.

Cass Sunstein e Stephen Holmes já afirmavam que “liberdade, na correta concepção, não significa a falta de dependência do governo; pelo contrário, o governo afirmativo fornece as pré-condições para a liberdade”[10].

De se ver, contudo, que a prática e o tempo somaram outras garantias a fim de possibilitar um exercício mais livre do Poder, o que inclui a proteção em relação ao próprio Judiciário, prevendo, por exemplo, que os parlamentares deveriam ser julgados por Tribunais, em decisões coletivas, e distantes das febres locais que podem incendiar as canetas dos juízes.

Por outro lado, como não há poderes que não correspondam a responsabilidades, a contraprestação de toda garantia de exercício de poder é bem exercê-lo, vale dizer, não fazer uso dos instrumentos à disposição para desvirtuar sua finalidade, comprometendo o jogo de equilíbrio funcional.

Nota-se, no entanto, que tanto os direitos quanto os deveres acabam obrando em prol do exercício livre do poder. É assim, por exemplo, quando se exige do parlamentar o afastamento de atividades militares.

Michel Temer assevera com precisão: “garante-se a atividade do parlamentar para garantir a instituição”[11].

A ideia de um estatuto de congressistas e da responsabilidade dos mesmos não pode ser visualizada em separado na medida em que aquele engloba este. Para José Afonso da Silva, “por estatuto dos congressistas devemos entender o conjunto de normas constitucionais que estatui o regime jurídico dos membros do Congresso Nacional, prevendo suas prerrogativas e direitos, seus deveres e incompatibilidades”[12].

Longe, contudo, de esmiuçar a temática, embora não possamos nos furtar ao compromisso de explanação dos institutos, o objetivo central do presente trabalho é apontar, em cada um dos subtemas abordados, aspectos críticos, a partir da doutrina constitucionalista, pátria e comparada, e da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

É a exposição que se segue.


1. A QUESTÃO DAS IMUNIDADES

A imunidade é certamente a prerrogativa mais antiga e mais difundida em todo cenário constitucional, sendo a Inglaterra o eixo em torno do qual se edificaram embrionariamente as imunidades hoje conhecidas.

Em verdade, as imunidades decorrem do arrocho realizado pelos monarcas em face do Legislativo, diante da evidente perda de poder por parte daqueles, como relata Barbosa Lima Sobrinho:

À medida que elas conquistavam independência em face da Coroa, a autoridade do Rei lutava pela restauração ou conservação de suas prerrogativas, enfraquecendo as assembléias, e nenhuma fórmula parecia mais útil, nesse objetivo, que o emprêgo de meios variados de influência, que podiam ir desde a corrupação e o subôrno, à violência e à coação contra os membros das assembléias (...) Para se proteger como assembléia, os corpos legislativos foram até o exercício de podêres administrativos e judiciais, punindo os que não quisessem reconhecer essa autoridade. Na defesa de seus membros, tiveram que valer-se de processos variados, que iam desde a irresponsabilidade pelas palavras e votos, no exercício do mandato, até à imunidade diante da prisão, a famosa “freedom from arrest”, que é um dos pilares das liberdades públicas da Inglaterra[13].

E, embora tenha se solidificado a partir dos séculos XV e XVI, não se pode negar que sua inspiração deita raízes na própria Carta Magna do Rei João Sem Terra de 1215, voltada precipuamente para uma relativização dos poderes do soberano. Todavia, há de se esclarecer que foi em 1689, com o Bill of rights, que a garantia ganhou corpo verdadeiramente constitucional.

As imunidades perfazem a mais substancial garantia do exercício livre da função pelo parlamentar em face de eventuais ingerências dos demais poderes em sua autonomia. É uma garantia, antes de tudo, da própria representação democrática[14]. E, por serem de ordem pública, voltadas ao interesse geral, sequer aceitam qualquer renúncia por parte daquele que exerce o mandato[15].

Consoante veremos, podem ser de natureza material ou formal.

1.1 IMUNIDADE MATERIAL

A imunidade material hodiernamente conhecida decorre da construção inglesa do freedom of speech ou freedom from speak, ou seja, a “liberdade de discurso”, edificada em questões mais práticas do que teóricas[16]. Esteve presente em todas as nossas Cartas Constitucionais, desde o Império (1824), embora nas de 1937 e 1969 sofresse de tantas exceções que a garantia era quase que totalmente nulificada.

Atualmente, a imunidade material tem previsão na cabeça do artigo 53 da Constituição Federal, in verbis: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

Nota-se que a previsão alcança tanto a esfera cível quanto a penal, mas aquela somente passou a ser prevista com a edição da Emenda Constitucional 35/2001, que trouxe outras importantes modificações a serem mais adiante delineadas.

Apesar disso, antes mesmo de 2001, o Supremo Tribunal já se apressava em entender que não haveria sentido em prever a imunidade apenas sob o ângulo penal, até porque, convenhamos, muitas vezes o baque civil – indenizatório, na maioria das ocasiões – é muito maior que o penal[17] – ainda mais após a Lei 9.099/95.

Pontes de Miranda, ainda sob a égide da Constituição de 1946, já prelecionava:

 Não se admite o processo porque não há crime; nem cabe a responsabilidade por perdas e danos, porque a irresponsabilidade do art. 44 é geral, de direito constitucional material e, pois, compreensiva da irresponsabilidade penal e da irresponsabilidade civil[18].

No RE 210.917, o relator, Ministro Sepúlveda Pertence, fazendo elucidativa menção doutrinária brasileira e no direito comparado, e ressaltando que a Constituição Portuguesa possuía menção expressa, ressaltou: “a ausência da menção específica à isenção também da responsabilidade civil nas normas de imunidade material, jamais, se entendeu induzir à exclusão dos efeitos da garantia, da qual, ao contrário, se tem reputado corolário essencial”.

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Mais além, parte da doutrina sustenta que a imunidade alcança também os liames políticos e disciplinares[19], o que faz total sentido, eis que, assim como no âmbito civil, a questão disciplinar pode se mostrar muito mais agressiva que o próprio aspecto penal. Ressaltamos, no entanto, que o limite sempre será, consoante será visto, a exigência de manutenção do decoro parlamentar.

Pois bem. A imunidade material volta-se para o exercício da função parlamentar, onde quer que o mandatário esteja. Ainda em 1989, o STF já decidira no Inquérito 396 (QO) que a imunidade se lançava para fora da Casa Legislativa, “dada a vinculação existente, no caso concreto, entre o discurso questionado e a atividade parlamentar do representado”[20].

E não faria mesmo sentido que uma simples delimitação territorial esvaziasse o sentido da prerrogativa, como se o parlamentar, ao pisar fora da Casa, deixasse de sê-lo. A garantia, convém repisar, é da função, e esta prescinde da tribuna do parlamento para ser exercida.

Todavia, quando a palavra for proferida dentro do recinto da Casa Legislativa presume-se que seja em conexão com a função[21], cabendo à Casa reparar eventuais e inequívocos excessos, até porque imunidade não significa impunidade[22].

Mendes, Branco e Coelho resumem a questão:

Se a manifestação oral ocorre no recinto parlamentar, a jurisprudência atual dá como assentada a existência da imunidade. Se as palavras são proferidas fora do Congresso, haverá a necessidade de se perquirir o seu vínculo com a atividade de representação política[23].

Na práxis já se entendeu que palavras proferidas em Comissão Parlamentar de Inquérito estão acobertadas pelo manto da imunidade, consoante Inquérito 655. Ainda, para fato divulgado na imprensa, seja pelo próprio parlamentar, seja por terceiro, que seja coberta pela inviolabilidade[24].

É o que esclarece, por exemplo, o Ministro Celso de Mello, no julgamento do Agravo de Instrumento 401.600: “a garantia constitucional da imunidade parlamentar material também estende o seu manto protetor (1) às entrevistas jornalísticas, (2) à transmissão, para a imprensa, do conteúdo de pronunciamentos ou de relatórios produzidos nas Casas Legislativas”.

Importante ressaltar que, em um mundo globalizado, a divulgação midiática de qualquer ofensa ocorrida durante ou em função da legislatura é quase instantânea, mormente com os canais televisivos próprios que, numa nítida expressão democrática, dão cobertura integral aos trabalhos legislativos. Assim, a divulgação em imprensa é uma decorrência natural do próprio exercício, sendo até mesmo inevitável nos dias atuais. Ao depois, quanto às entrevistas, a expressão do parlamentar nesse âmbito, muito antes de ofender, visa esclarecer a opinião pública acerca de qualquer temática de interesse genérico. Eventuais ofensas ocorridas nesse meio, ainda que fora do recinto legislativo, que guardem conexão com o mandato, certamente equivalem àquelas proferidas na tribuna da Casa.

Em outro momento, muito se discute sobre a natureza jurídica da imunidade constitucional material conferida aos parlamentares.

Para Mendes, Coelho e Branco, mencionando o Inquérito 2.282. sequer caberia indagar, objetivamente, se o fato poderia constituir crime[25]. Essa também é a posição de Pontes de Miranda[26] e José Afonso da Silva[27]. Para a Ministra Ellen Gracie, no julgamento do Inquérito 2.273, seria uma “causa excludente de tipicidade”.

A despeito de diversos posicionamentos doutrinários em sentido inverso, temos para nós que a razão assiste aos que se encontram acima citados, sequer sendo possível cogitar em configuração de crime por absoluta impossibilidade oferecida pela lei constitucional – que, aliás, incentiva o pronunciamento parlamentar.

Não nos parecem corretas posições no sentido de que há mera isenção de pena[28], eis que a imunidade impede a própria configuração do crime. Desde a teoria da imputação objetiva de Claus Roxin é cediço que só é fato típico aquilo que se encontra no âmbito de proibição da norma, ou seja, aquilo que a norma quis expressamente proibir, dentro do qual não se encontra a opinião e a palavra do parlamentar durante o exercício do mandato. Basta lembrar que essa garantia sempre esteve presente em nossas Cartas Constitucionais.

Mesmo no neokantismo já se afirmava que típica era apenas uma conduta valorada negativamente. E, hodiernamente, no interior da construção da tipicidade conglobante de Eugenio Raúl Zaffaroni a conduta, sendo permitida por outra norma ou até incentivada pelo ordenamento jurídico, sequer pode ser abraçada pelo conceito de crime (teoria das regras)[29].

Qualquer denúncia que diga respeito a fato protegido pela inviolabilidade carece de justa causa, podendo o relator determinar o imediato arquivamento dos autos, consoante Petição 2.920, de relatoria do Ministro Carlos Velloso.

Ainda, cumpre lembrar, embora pareça óbvio, que a proteção se estende ad infinitum, vale dizer, as palavras e opiniões proferidas durante o exercício parlamentar ficam protegidas mesmo após seu final. O contrário trairia o próprio sistema, deixando de conferir a proteção anteriormente assinada e transformaria a imunidade em simples condição suspensiva. Vale dizer, verteria em ilícito aquilo que não era, rompendo com qualquer segurança que se possa oferecer ao exercício democrático.

1.2 IMUNIDADE FORMAL

A “imunidade” formal divide-se em restrição à prisão e restrição processual, configurando modalidades inteiramente distintas e que merecem uma análise pormenorizada em separado.

1.2.1 RESTRIÇÃO À PRISÃO

Decorre da construção jurisprudencial inglesa do freedom from arrest no século XVI, a partir da qual o speaker da Câmara dos Comuns passou a ter competência para sustar processos que não tivesse recebido a licença da Casa.

Contudo, na construção inglesa, bem como nos Estados Unidos, fora concebida para impedir apenas a prisão civil, diferindo em larga escala da garantia pátria[30].

Entre nós, assevera o artigo 53, §2º, CF, com redação dada pela Emenda Constitucional 35/2001, que desde “a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável. Nesse caso, os autos serão remetidos dentro de vinte e quatro horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão”.

A mera observação redacional já nos permite afirmar que não se trata de “vedação à prisão”, mas sim de restrição, eis que excepcionalmente – flagrante de crime inafiançável – poderá ser admitida.

A restrição se inicia com a diplomação do parlamentar e alcança todos os ilícitos, praticados antes ou durante o mandato, eis que seu objetivo é impedir que o mandatário seja preso, pouco importando quando tenha ocorrido o fato gerador da prisão.

A garantia visa, antes de mais nada, impedir que a prisão, por determinação do Judiciário, impeça o livre exercício do mandato parlamentar, eis que pode ser decorrente de açodada decisão de cunho cautelar, sem maiores aprofundamentos. Além disso, não se esconde a barreira que o constituinte traçou para impedir que o Judiciário tome ingerência na política parlamentar por meio de realização de prisões e para gerar “ausências de congressistas em deliberações e votações importantes”[31].

No entanto, o Supremo entende, com acertamento, que a imunidade não alcança decisão transitada em julgado, uma vez que neste caso fora exercido com amplitude o due process of law. E, cumpre repisar, imunidade não pode ser confundida com impunidade.

Nada mais acertado que afirmar que está ultrapassada a linha de risco que impedia que uma decisão provisória determinasse o recolhimento de parlamentar à prisão. A decisão transitada em julgado já sofrera a discussão necessária e o aprofundamento dos debates que exige uma cognição exauriente.

É o que observou o Ministro Celso de Mello, no julgamento do Inquérito 510:

A freedom from arrest não afasta, no entanto, a possibilidade de o parlamentar, sujeito a condenação penal definitiva, vir a ser preso, para efeito de execução da decisão condenatória. Esse aspecto da imunidade formal – estado de relativa incoercibilidade pessoal do congressista – não obsta, observado o due process of law, a execução de penas privativas de liberdade definitivamente impostas ao parlamentar.

Noutro ponto, insta salientar que a restrição alcança tanto a prisão penal – provisória – quanto a prisão civil, que hoje se resume ao inadimplemento injustificado de pagamento de pensão alimentícia[32].

Por derradeiro, quanto ao flagrante em crime inafiançável, embora haja permissivo, a Casa respectiva poderá revogar a prisão. Nesse caso, ocorrida a prisão, devem os autos ser remetidos para a Casa respectiva em 24 horas e esta, por maioria absoluta, resolverá sobre a prisão. Isso não quer dizer que a maioria absoluta deve votar no sentido de revogação da prisão. Pelo contrário, apenas por voto da maioria absoluta é que se manterá a prisão. Assim, há uma predisposição constitucional em evitar que o parlamentar se mantenha preso, mesmo havendo o permissivo. Tal votação será aberta, o que opera uma garantia democrática. Se de um lado se limitam os demais poderes de ingerir no Legislativo, de outro se abre para a sociedade a fiscalização dos atos políticos, que refletirá posteriormente nas urnas – ou, ao menos, deveria refletir.

O STF, no entanto, já relativizou a regra de deliberação posterior, em caso em que 23 dos 24 membros da Casa Legislativa que deveria resolver sobre a prisão justamente do “chefe da organização” estavam – eles também – sujeitos a inquéritos e ações penais relacionados, o que conduziria o resultado a inevitável jogo de interesses e a um problema ético, frustrando o objetivo constitucional. Naquela ocasião, entendeu a Ministra Carmen Lúcia, conferindo uma interpretação afinada com todo o sistema, que

à excepcionalidade do quadro há de corresponder a excepcionalidade da forma de interpretar e aplicar os princípios e regras do sistema constitucional, não permitindo que para prestigiar uma regra – mais ainda, de exceção e de proibição e aplicada a pessoas para que atuem em benefício da sociedade – se transmute pelo seu isolamento de todas as outras do sistema e, assim, produza efeitos opostos aos quais se dá e para o que foi criada e compreendida no ordenamento[33].

O professor José Afonso da Silva, ainda quanto à prisão nos crimes inafiançáveis, observa que, diante da disposição do artigo 5º, LXVI, que assegura que ninguém será levado à prisão ou nela mantido quando a lei admitir liberdade provisória, com ou sem fiança, se o crime admitir liberdade provisória haverá também restrição à prisão, mesmo que inafiançável[34].

1.2.2 RESTRIÇÃO PROCESSUAL

A restrição processual com menos razão merece ser chamada de “imunidade”, eis que, como veremos, apenas por deliberação da Casa legislativa poderá ser sustado o andamento do processo. Aqui o que se tem é uma exceção, vale dizer, a regra é que o processo em face do parlamentar tramite e apenas excepcionalmente seja paralisado.

De acordo com o artigo 53, §3º, com redação dada pela EC 35/2001, nos crimes ocorridos após a diplomação, o STF, ao receber a denúncia, dará ciência à Casa respectiva que, por iniciativa de partido político nela representado, e apenas por voto da maioria absoluta dos membros, poderá sustar o andamento da ação. Se for oferecido o pedido de sustação acima referido, a Casa deverá apreciá-lo no prazo de 45 dias contados do seu recebimento pela Mesa. Ainda, a sustação do processo, para não gerar impunidade, faz suspender a prescrição.

Deixamos aqui apenas algumas observações, eis que as ideias principais do instituto serão analisadas adiante, dada sua intrínseca relação com o foro por prerrogativa de função.

Primeiro, não se encontram abrangidos os processos de crimes praticados antes da diplomação, que independem sequer de cientificação da Casa legislativa[35].

Segundo, o inquérito judicial se processa da mesma forma como o policial, vale dizer, enquanto procedimento administrativo e sem contraditório, com a diferença de realizar-se perante o foro por prerrogativa de função[36].

Terceiro, quanto a natureza jurídica da decisão da Casa sobre a sustação, tem-se duas posições: 1) os fundamentos devem ser jurídicos, negando-se a sustação, caso não haja motivo grave para tanto e se comprove a materialidade do delito e indícios suficientes de autoria; 2) ao Parlamento deve ser assegurada liberdade e autonomia, sendo a sustação regra, ainda que presentes a materialidade do delito e os indícios de autoria, salvo se houver motivo extremamente grave que justifique a continuidade da ação[37].

A nosso ver, a decisão, que deve ser sempre do Plenário, homenageia a garantia de autonomia do Legislativo em face da possível ingerência de outros poderes. E por se configurar uma decisão eminentemente política não pode ser aceito o argumento de que os critérios para tanto devem ser jurídicos. Por outro lado, a alteração constitucional propugnada pela EC 35 foi no sentido de que a sustação não mais deve ser regra, e sim exceção, nos casos em que o parlamento, por suas próprias razões, entender que a medida deve ser aplicada. Por isso, entendemos que se trata de decisão de cunho estritamente político, mas que, em homenagem ao Estado de Direito, não pode ser tida como regra, sob pena de se criar privilégios ao invés de prerrogativas.

Um quarto ponto diz respeito ao prazo para a deliberação. A Constituição fala em improrrogáveis 45 dias do recebimento pela Mesa Diretora. Ora, não se olvide que as pautas carregadíssimas das Casas legislativas brasileiras cada vez mais têm tornado dificultoso o atendimento a qualquer prazo, por mais largo que pareça ser.

E, considerando a decisão política que envolve a autonomia do próprio Legislativo, não seria correto supor que, após tal prazo, não mais pudesse a Casa resolver sobre a questão. Também não se esconda que, a seguir tal entendimento, o “engavetamento” intencional poderia levar o prazo à fruição, impedindo a possibilidade de suspensão do processo. Ao depois, a Casa pode entender que um momento posterior é politicamente mais indicado para a pretensão de sustação.

Assim, somos pela posição de que não há prazo para tal deliberação, embora o ideal seja de no máximo 45 dias após recebimento do pedido pela Mesa, mas, obviamente, desde que não tenha sido iniciado o julgamento, aplicando-se aqui a mesma lógica que envolve a questão da renúncia, a fim de não frustrar a perspectiva constitucional.

Por fim, quanto ao concurso de agentes, em havendo sustação, entende o STF que deve haver desmembramento do processo, já que a garantia é direcionada ao parlamentar e não ao terceiro[38].

1.3 AS IMUNIDADES E O ESTADO DE EXCEÇÃO

O Estado de exceção não deve servir como subterfúgio para que o Executivo se sobreponha ao Legislativo, como já assistimos na realidade histórica brasileira. Atento a isso, o constituinte, embora prevesse que situações caóticas pudessem exigir tratamento delicado, tratou de manter íntegra a autonomia do Legislativo até para decidir quanto à manutenção das próprias imunidades.

Nessa toada, o artigo 53, §8º, esclarece que “as imunidades de Deputados ou Senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida”.

De plano, algumas observações são cabíveis. Em nenhuma hipótese as imunidades dos membros do Congresso poderão ser suspensas em relação aos atos praticados dentro da Casa legislativa[39]. E mesmo em relação aos atos praticados fora do Congresso Nacional, a restrição apenas pode alcançar atos que sejam incompatíveis com a execução das medidas relativas ao estado de sítio.

Ao depois, a Constituição estabelece que apenas a própria Casa poderá decidir sobre as restrições a ela impostas, o que coaduna perfeitamente com o interesse público, impedindo qualquer interferência indevida do Executivo. Assim, não se nega que a situação possa exigir restrição, mas apenas o próprio Congresso pode dela tratar, atendendo ao interesse público que for exigido naquele caso.

Finalizando, insta salientar que a Constituição estabeleceu um quórum especialíssimo de aprovação das medidas restritivas: dois terços dos membros – e não dos presentes -, de forma a dificultar, tornando hipótese realmente excepcionalíssima, qualquer restrição às imunidades parlamentares.

Basta lembrar que todo esse círculo de proteção se firmou após 21 anos de experiência autoritária, em que, por diversas vezes, o Congresso Nacional fora subjugado pelo Executivo. Não seria de se estranhar que o constituinte de 1986/1988 fosse realmente avesso às ingerências do Executivo e tivesse o cuidado de tornar praticamente inviável qualquer restrição às imunidades das funções legislativas.

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Sobre o autor
Emerson Ademir Borges de Oliveira

Advogado da Petrobras. Aluno especial da Pós Stricto Sensu na Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Emerson Ademir Borges. Notas críticas acerca da responsabilidade e do estatuto do parlamentar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3302, 16 jul. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22218. Acesso em: 29 mar. 2024.

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