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Corpus Juris Civilis: Justiniano e o Direito brasileiro

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Por ser um direito escrito e sistematizado, o direito romano justinianeu se sobrepôs ao direito costumeiro, haja vista que trazia uma maior segurança jurídica.

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar a influência da vida e obra do imperador bizantino Justiniano I na formação e desenvolvimento do direito brasileiro atual. Assim, a partir de uma retomada dos principais fatos históricos e de uma análise, principalmente, do conteúdo do Corpus Iuris Civilis, é realizada uma comparação dos institutos jurídicos presentes nesta e na atual legislação brasileira, identificando pontos em que são comuns.

Palavras-chave: Justiniano; Corpus Iuris Civilis; comparação; legislação brasileira.


1 INTRODUÇÃO

O Direito não é fruto de um acontecimento histórico pontual, mas resultado de uma constante evolução. Por isso, não é incomum encontrarmos institutos jurídicos contemporâneos em legislações antigas, ainda que em uma versão bastante primitiva.

Dentre os sistemas jurídicos disseminados pelo mundo, pode-se dizer sem sombra de dúvidas que o romano-germânico é o que teve maior influência na formação dos ordenamentos jurídicos nacionais, dada a constatação da grande quantidade de países que adotaram o imperativo da escrita sobre a tradição oral[1]. E mais que isso, muitos institutos jurídicos presentes no direito romano ainda persistem nas legislações nacionais atuais, mesmo que com pequenas alterações ou com nova roupagem.

O caso brasileiro não é diferente. Conforme se verá neste trabalho, diversos institutos jurídicos adotados atualmente nasceram no direito romano, sendo que alguns se mantêm na forma integral, da mesma forma como foram concebidos na Antiguidade.

Parte desta manutenção se deve ao trabalho do imperador bizantino Justiniano I, que teve a preocupação na época de organizar a legislação como um dos meios de efetivar a unificação e expansão do império romano bizantino como pretendia. Manobra até certo ponto bem sucedida, pois o império bizantino perdurou por quase novecentos anos e, irremediavelmente, se tornou na Antiguidade símbolo de prosperidade[2].

Este trabalho busca não só retomar os principais acontecimentos na vida deste importante imperador bizantino, mas também analisar a sua obra frente à legislação brasileira atual, na tentativa de identificar pontos em comum que demonstrem a influência do direito romano na formação do mundo jurídico contemporâneo.


2 A VIDA DE JUSTINIANO

Justiniano (Flávio Pedro Sabácio Justiniano) foi imperador bizantino desde 1º de agosto de 527 até o seu falecimento. Tendo nascido em Constantinopla em 11 de maio de 483 e morrido em 14 de novembro de 565, sucedeu seu tio Justino I no trono, após ter sido nomeado cônsul. Foi casado com Teodora, mulher de vida desregrada e de origem humilde. Era um imperador ambicioso, pois pretendia resgatar o momento de maior esplendor de Roma, ao implementar um projeto de expansão e unificação territorial.

Ficou marcado também pelo seu autoritarismo. Seu governo é caracterizado pela cobrança de altos impostos, fortalecendo bastante a desigualdade entre pobres e ricos, tão marcante no período em que governou. Ademais, é descrito como um governo autocrático e burocrático. A primeira característica advém da superioridade do imperador que ficava no topo tanto político quanto religioso. Já a segunda característica em razão da enorme quantidade de funcionários públicos de que dispunha.

Justiniano tinha a pretensão de unir o Ocidente e o Oriente através da religião (“Um Estado, uma Lei, uma Igreja”). Tentou solidificar a doutrina monofisista, tendo ampla aceitação no Egito e na Síria. Implacável, Justiniano perseguia judeus, pagãos e heréticos, justamente com a intenção de impedir a existência de religiões diversas daquela que considerava correta. Evidências disto é o fechamento da Escola Filosófica de Atenas, símbolo pagão da Academia de Platão e considerar extinto o Talmude (Livro Sagrado dos judeus) das sinagogas.

Seu interesse neste campo era tão grande que chegava a se intrometer em assuntos próprios da Igreja.

[...] sob a influência de Teodora, favorável aos monofisistas, mandou deportar o papa Silvério para a Ásia Menor; submeteu o papa Virgílio, residente em Constantinopla, e impôs à Igreja a autoridade imperial pela pragmática de 554[3].

A grande ambição de Justiniano era o restabelecimento do Império Romano como um só. Para tanto, Justiniano dedicou-se bastante às campanhas de recuperação de território do Império. Uma das primeiras medidas tomadas foi a celebração de um tratado de não-agressão com Cosroes I (“A alma imortal”, vigésimo rei sassânida da Pérsia), em que se comprometeu a pagar anualmente um tributo a este para que não houvesse qualquer invasão ao território bizantino.

Tendo o Oriente assegurado, Justiniano pôde se dedicar à recuperação do Ocidente. Com a ajuda do general Belisário, conquistou a cidade de Cartago, a Sicília, as ilhas Baleares e parte da costa levantina peninsular. Com certa dificuldade devido à resistência ostrogoda, também conseguiu conquistar Roma e Ravenna.

A expansão territorial foi prejudicada, contudo, com a grande peste que assolou as cidades do Mediterrâneo Oriental. Além disso, o resto do território italiano ofereceu muita resistência, liderado pelo rei ostrogodo Totila. Narses, novo general de Justiniano, conseguiu após vinte anos eliminar as forças ostrogodas e, com a conquista da região do sul da Espanha, o território conseguiu alcançar sua maior expansão.

2.1 A importância de Teodora no governo de Justiniano

Grande parte das informações à disposição acerca da história de vida de Teodora antes de seu casamento com Justiniano tem origem na obra “História Secreta” de Procópio de Cesareia, importante historiador bizantino do século VI. No entanto, muitos estudiosos contestam a veracidade das informações contidas nesta obra, haja vista que Procópio era um grande crítico de Justiniano e parece ter exagerado em certos detalhes de sua obra. Ainda assim, os que criticam os fatos apresentados por Procópio em “História Secreta” não apresentam argumentos consistentes o bastante para desacreditá-la.

Teodora, nascida no ano 500 e falecendo no dia 28 de junho de 548, era filha de Acácio, um tratador de ursos do circo, o que evidencia sua origem na mais baixa classe da sociedade bizantina. Surgiu como atriz cômica no teatro burlesco e por certo tempo foi uma cortesã de Hecébolo, o governador de Pentápolis. De acordo com os escritos de Procópio de Cesareia, não era bem quista pela alta sociedade da época, principalmente pela sua falta de vergonha e participação em acontecimentos de cunho pornográfico[4].

Após ser expulsa de Pentápolis por ter brigado com Hecébolo, Teodora retornou à Constantinopla, aonde Justiniano, ainda magister militum praesentalis, se apaixonou perdidamente. Na ânsia de agradar ao máximo que podia sua amada, Justiniano desejava casar-se com ela. Contudo, as leis da época impediam o casamento de indivíduos das classes mais baixas com a nobreza. Por isso, Justiniano convenceu o então imperador Justino I a anular esta lei e editar uma nova, permitindo que qualquer um pudesse se casar com sua cortesã.

Teodora se casou com Justiniano no ano de 523. Com sua ascensão ao trono imperial romano no ano de 527, Justiniano a fez imperatriz consorte, concedendo-lhe atribuições próprias de um governante, como, por exemplo, a responsabilidade de reunir os monofisistas com o partido dos calcedonianos na Igreja.

Quanto a sua religião, há certa controvérsia dentre os historiadores. Alguns acreditam que se tornou adepta do monofisismo – crença de que Cristo mantinha somente a natureza divina, e não dupla como os calcedonianos defendiam – antes mesmo de conhecer Justiniano, enquanto outros defendem que se tornou monofisista pela responsabilidade como governante assim como exemplificada acima.

Não sendo apenas uma mulher que quebrou paradigmas na sociedade da época, Teodora também teve importância na formação do Direito, sobretudo em questões bastante polêmicas. Uma delas, como já dito alhures, foi possibilitar o casamento entre indivíduos de castas sociais diversas, algo impensável até então. Foi Teodora também quem Procópio afirma em sua obra que foi a primeira proponente e praticante do aborto.

Teodora também foi grande defensora dos direitos das mulheres. Foi contrária ao homicídio de mulheres por causa do adultério, devendo na verdade serem socialmente apoiadas. Por outro lado, no caso de estupro, defendeu a pena de morte para o estuprador. Também defendia o apoio a prostitutas e mulheres abandonadas à miséria, numa tentativa de afastá-las da marginalização. Para tanto, defendeu a concessão de residências para ex-prostitutas e garantia às mulheres maiores direitos em casos de divórcio, como a possibilidade das mulheres possuírem propriedades.

2.2 A Revolta de Nika

Durante o reinado de Justiniano, o império bizantino passava por um período de grande miséria, fome e falta de moradia para a população. Além disso, o império insistia em cobrar altos impostos para sua manutenção, sem que os valores fossem devidamente revertidos para o bem da população. Havia, também, altos gastos com as empreitadas militares, algo que desagradava bastante a população.

Nesse mesmo período era comum a prática esportiva de corrida de cavalos, nas quais ficavam evidentes as divergências não somente do esporte, mas sociais, políticas e religiosas das equipes que participavam. Dentre elas, duas se destacavam: os Azuis, representados pelos grandes proprietários rurais e membros da Igreja ortodoxa, e os Verdes, altos funcionários nativos das províncias orientais, comerciantes, artesãos e adeptos da doutrina monofisista.

A prática comum dos imperadores à época era apoiar uma das equipes em detrimento de outra, com o fito de balancear os poderes políticos entre os grupos. Justiniano adotou postura diversa, resolvendo não apoiar nenhuma delas como forma de diminuir o atrito político já existente entre elas. A medida, no entanto, não agradou ninguém, fazendo com que os Azuis e os Verdes se aliassem e formassem uma rebelião para destituir Justiniano do poder.

No ano de 532, em Constantinopla, houve uma corrida no hipódromo da cidade em que o cavalo Nika era o favorito da população para ser o vencedor. Embora tenha efetivamente ganho a corrida, Justiniano declarou que o vencedor da corrida tinha sido outro cavalo, seu favorito. Tal atitude causou a revolta dos presentes, inclusive tendo como fato marcante uma discussão entre as diferentes classes sociais, algo inadmissível e impensado à época. Dentro desse contexto, os revoltosos massacraram a guarda real, dominando quase toda a cidade e proclamando novo imperador.

Justiniano já estava convencido de abandonar o trono, quando sua esposa Teodora o convenceu de se manter no poder com o seguinte discurso:

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Ainda mesmo que a fuga seja a única salvação, não fugirei, pois aqueles que usam a coroa não devem sobreviver à sua perda. Se quiseres fugir, César, foge. Tens dinheiro, teus navios estão prontos e o mar aberto. Eu, porém, fico. Gosto desta velha máxima: a púrpura é uma bela mortalha.

Concordando com sua esposa, Justiniano então encarregou seu general Belisário com a missão de aniquilar os revoltosos, na qual obteve sucesso. Assim, sem oposição, pôde governar livremente, como um autocrata e conquistando o povo ao utilizar os impostos para pagar a reconstrução de igrejas.


3 A OBRA DE JUSTINIANO

Justiniano, com seu projeto de unificação e expansão do império bizantino, via a necessidade de criar uma legislação congruente e capaz de atender às demandas e litígios vivenciados à época. Para isso, redigiu, compilou e explicou inúmeras normas e (hoje chamada de) jurisprudência em obra que foi designada como Corpus Iuris Civilis pelo romanista francês Dionísio Godofredo em 1583.

A obra está dividida em quatro partes: Digesto (também chamado de Pandectas, seu nome grego), Institutas, Novelas e Código. É uma revolução no âmbito jurídico, pois organizou de forma sistemática a legislação e a jurisprudência romana da época, sendo uma das estruturas para o Direito Civil moderno. Vejamos cada uma delas separadamente.

3.1 Código de Justiniano

Dada a desorganização da legislação vigente à época e a necessidade de preservar as normas de direito romano, Justiniano convoca uma comissão de dez membros[5] para compilar as constituições imperiais vigentes. O trabalho foi encerrado em dois anos, com a publicação do Nouus Iustinianus Codex (Novo Código de Justiniano) com a constituição Summa rei publicae em 7 de abril de 529.

Mesmo com todo o trabalho, este Código teve vida curta, pois com a publicação do Digesto, muitas contradições surgiram e as normas tiveram que ser revisadas. Por isso, já no ano de 534, foi editado Código Novo, a ser comentado mais adiante.

3.2 Digesto (ou Pandectas)

Digesto, do latim digere, significa “pôr em ordem”. Trata-se de compilação e organização dos jurisconsultos clássicos que não só eram inúmeros como também sofriam de contradições e dificuldades de localização. Justiniano, percebendo esses problemas, decidiu dar a missão à Triboniano de reunir uma comissão de dezesseis membros para organizar toda a jurisprudência no prazo de dez anos. Como membros foram selecionados Constantino, Teófilo e Crátino de Constantinopla, Doroteu e Isidoro da Universidade de Berito e mais onze advogados que trabalhavam junto à alta magistratura.

Após árduo trabalho de compilação, leitura e análise de textos, a comissão conseguiu terminar o trabalho em apenas três anos, sendo chamado informalmente de Codex enucleati iuris. O Digesto foi promulgado em 15 de dezembro de 533, entrando em vigor após quinze dias. Extenso, o Digesto é composto por 50 livros, subdivididos em aproximadamente 1.500 títulos organizados por assunto.

Os assuntos tratados no Digesto podem ser divididos em sete partes. Do livro 1 ao 4, há a regulamentação dos princípios gerais sobre o direito e a jurisdição. Do livro 5 ao 11, a doutrina geral sobre as ações de proteção judicial da propriedade e os demais direitos reais. Do livro 12 ao 19, de rebus, obrigações e contratos. Do livro 20 ao 27, umbilicus, obrigações e família. Do livro 28 ao 36, do testamento, herança, legados e fideicomissos. Do livro 37 ao 44, da herança pretoriana e matérias referentes a direitos reais, possessão e obrigações. Por fim, do livro 45 ao 50, stipulatio, direito penal, apelação e direito municipal.

Conforme dito anteriormente, a elaboração do Digesto não se resumia a compilar os jurisconsultos clássicos, mas também organizá-los, de forma que adquirissem uma coerência lógica. Por isso, Justiniano autorizou a comissão a alterar a redação original dos fragmentos analisados, podendo fazer substituições, supressões ou acréscimos, harmonizando-os com o sistema em construção. Essas mudanças foram chamadas de emblemata Triboniani, tribonianismos (referência ao organizador da comissão Triboniano) ou interpolações.

As interpolações em grande parte são de difícil identificação, haja vista que muito da literatura jurídica do período clássico foi perdida e, portanto, é difícil distinguir a redação primitiva dos jurisconsultos clássicos das adições feitas no Digesto pela comissão. Existem, todavia, alguns métodos que auxiliam na identificação das interpolações: textual, histórico, lógico e filológico.

O método textual consiste na comparação entre o texto clássico original – se não foi perdido, obviamente – e o presente no Digesto. O método histórico, por sua vez, consiste na verificação da existência de institutos e conceitos no texto clássico que só se desenvolverão futuramente, revelando um anacronismo. O método lógico é a simples verificação de incongruência no texto do Digesto. Por fim, o método filológico verifica estilos de linguagem e escrita diversos daquele dos jurisconsultos clássicos.

3.3 Comparação entre o Digesto e a legislação civil e processual civil brasileira atual

Neste tópico serão apresentadas algumas semelhanças entre as normas jurídicas previstas no Digesto e a legislação brasileira atual, demonstrando a grande herança romana na formação do direito contemporâneo. Claro que não é possível esgotar o assunto em tão breve trabalho científico, mas serve para se ter uma breve noção da influência romana na formação da ciência jurídica brasileira.

3.3.1 Leis gerais e especiais (Papiniano)

Em mandamento atribuído a Papiniano, está previsto no Digesto (D. 50.17.80; 33 quaestionum) o seguinte: “In toto iure generi per speciem derogatur et illud potissimum habetur, quod ad speciem derectum est”. Por uma tradução bastante sintética, trata-se da regra geral de direito que o específico derroga o genérico. Significa, pois, que “não é toda a lei antiga que deixa de prevalecer, mas somente aquilo que se mostra incompatível com a lei nova[6]”.

A regra prevalece até os dias atuais na legislação brasileira, vide o artigo 2º, §2º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-lei nº 4.657/42):

Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

[...]

§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

Dessa maneira, assim como já concluído pelos romanos, a disposição especial disciplinará casos especiais, sem que colida com a norma geral, podendo harmonicamente e de forma simultânea vigorar. Caberá ao intérprete verificar no caso concreto qual delas será aplicada, isto é, se ele se depara com um dos casos especiais ou geral.

3.3.2 Critérios de satisfação do débito (Gaio e Ulpiano)

Quanto à satisfação do débito, já lecionava Gaio (Digesto, 27, 10, 5):

Curator ex senatus consulto constituitur, cum clara persona, veluti senatoris vel uxoris eius, in ea causa sit, ut eius bona venire debeant: nam ut honestius ex bonis eius quantum potest creditoribus solveretur, curator constituitur distrahendorum bonorum gratia vel a praetore vel in provinciis a praeside.

A regra traz a ideia de que só deverão ser vendidos os bens do executado que se mostrarem suficientes para a satisfação dos seus débitos. É o princípio da satisfatividade, informativo da tutela jurisdicional executiva previsto no artigo 659 do Código de Processo Civil:

Art. 659.  A penhora deverá incidir em tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, juros, custas e honorários advocatícios.

Outro critério presente no Digesto acerca de critérios para satisfação do débito é a ordem na venda de bens penhorados, em enunciado atribuído à Ulpiano no livro 42, 1, 15, 2. Em síntese, estabelece que sejam vendidas em primeiro lugar as coisas móveis e os animais. Se não bastarem para a satisfação do débito, serão vendidos os bens imóveis e, por fim, os direitos.

Trata-se de ordem bastante semelhante à existente hoje no artigo 655 do Código de Processo Civil, verbis:

Art. 655.  A penhora observará, preferencialmente, a seguinte ordem:

I - dinheiro, em espécie ou em depósito ou aplicação em instituição financeira;

II - veículos de via terrestre;

III - bens móveis em geral;

IV - bens imóveis;

V - navios e aeronaves;

VI - ações e quotas de sociedades empresárias;

VII - percentual do faturamento de empresa devedora;

VIII - pedras e metais preciosos;

IX - títulos da dívida pública da União, Estados e Distrito Federal com cotação em mercado;

X - títulos e valores mobiliários com cotação em mercado;

XI - outros direitos.

Verifica-se que a preocupação com uma ordem menos gravosa para o devedor e que satisfaça devidamente os interesses do credor existia desde a época dos romanos, não sendo, pois, novidade do mundo jurídico contemporâneo.

3.3.3 Litispendência e Coisa julgada (Ulpiano)

Os institutos da litispendência e da coisa julgada também derivam do direito romano. No Digesto, em seu livro 50, há dois enunciados originários de Ulpiano que comprovam a preocupação dos romanos com as ações repetidas, estejam elas em andamento ou findas. No caso da litispendência: “1. Quotiens concurrunt plures actiones eiusdem rei nomine, una quis experiri debet[7]” (D. 50, 17, 43). Já no caso da coisa julgada: “Res iudicata pro veritate accipitur[8]” (D. 50, 17, 207).

Os institutos se mantêm íntegros na legislação brasileira atual, conforme se nota pela redação do artigo 301, §§ 1º, 2º e 3º do Código de Processo Civil:

Art. 301, § 1o Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada, quando se reproduz ação anteriormente ajuizada.

§ 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido.

§ 3o Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por sentença, de que não caiba recurso.

3.3.4 Citação e domicílio (Paulo e Gaio)

O doutrinador Luis Carlos de Azevedo identifica nas passagens do Digesto questões acerca da citação e do domicílio do réu:

Do mesmo modo, quanto ao direito à intimidade, ao resguardo do domicílio: Gaio já acentuara, “ninguém pode ser citado dentro de sua própria casa, porque esta é o mais seguro refúgio e asilo de cada um: e aquele que nela penetra, para citar, estará violando-a” (D. 2, 4, 18, ad. leg. XII, Tab.).

O texto de Paulo reafirma a prerrogativa: poderá ser citado, se vier até a soleira da porta e se com a convocação eventualmente consentir: mas, na casa, ninguém poderá entrar e tirá-lo de lá, à força: “tamen de domo sua memo extrahi debet” (D. 2, 4, 21; 1, ad. edictum e 50, 17, 103)[9].

Entendimento semelhante está presente pela leitura sistemática do artigo 5º, XI da Constituição Federal e dos artigos 227 e 228 do Código de Processo Civil:

Art. 5º, XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Art. 227. Quando, por três vezes, o oficial de justiça houver procurado o réu em seu domicílio ou residência, sem o encontrar, deverá, havendo suspeita de ocultação, intimar a qualquer pessoa da família, ou em sua falta a qualquer vizinho, que, no dia imediato, voltará, a fim de efetuar a citação, na hora que designar.

Art. 228. No dia e hora designados, o oficial de justiça, independentemente de novo despacho, comparecerá ao domicílio ou residência do citando, a fim de realizar a diligência.

§ 1o Se o citando não estiver presente, o oficial de justiça procurará informar-se das razões da ausência, dando por feita a citação, ainda que o citando se tenha ocultado em outra comarca.

3.4 Institutas

Justiniano, após a elaboração do Digesto, selecionou os compiladores Triboniano, Doroteu e Teófilo para organizar um manual introdutório às normas inclusas no Digesto. As Institutas foram publicadas um mês antes do Digesto, em 21 de novembro de 533, para que fosse possível o estudo prévio das normas que em breve entrariam em vigor. Entrou em vigor no mesmo dia do Digesto, ou seja, 30 de dezembro de 533.

Sendo destinada ao ensino, as Institutas têm como característica o ponto de vista teórico, expondo noções gerais, definições e classificações dos dispositivos presentes no Digesto.

3.5 Comparação entre as Institutas e a legislação civil brasileira atual

Da mesma forma como foi procedido no subitem 3.3, neste tópico serão apresentadas algumas semelhanças entre as normas jurídicas previstas nas Institutas – ainda que se trate, como explicado alhures, de mero manual introdutório ao Digesto – e a legislação brasileira atual, demonstrando a grande herança romana na formação do direito contemporâneo, sem a pretensão de esgotar o assunto.

3.5.1 Herança da filha e da esposa

Na legislação civil atual, a filha, independentemente de já ter se casado ou não, e a esposa são sucessoras legítimas de seu pai e marido respectivamente (artigo 1.829, I e II do Código Civil). No entanto, no direito romano a regra não era a mesma, como se depreende destes excertos da obra de Fustel de Coulanges:

Gaio e as Institutas de Justiniano relatam o fato de a filha só ser considerada como herdeira de seu pai se lhe estivesse subordinada na ocasião da morte; mas se casasse segundo os ritos religiosos, já não estaria mais sob a autoridade do pai.

[...]

As Institutas de Justiniano recordam o velho princípio então caído em desuso, mas não esquecido, que prescrevia que a herança passasse apenas de um varão a outro. Sem dúvida, só em respeito a essa regra é que a mulher, em direito civil, não podia jamais ser instituída herdeira[10].

Nota-se que mesmo com o ativismo da imperatriz Teodora pelo reconhecimento de direitos das mulheres em pé de igualdade com os homens[11], ainda assim a mulher não gozava de tais direitos quando se tratava da questão hereditária.

3.6 Reforma no Código de Justiniano

Como já dito anteriormente, com a publicação do Digesto, muitas contradições surgiram e as normas tiveram que ser revisadas. Por isso, já no ano de 534, foi editada uma segunda versão do Código (Codex repetitae praelectionis). Uma comissão de cinco membros ficou incumbida da tarefa de sistematizar e adequar o Código de Justiniano à nova realidade do Digesto.

O novo Código é dividido em 12 livros, com subdivisões em títulos. Assim como no Digesto, estão presentes as interpolações. Evidenciando a preocupação de Justiniano com a religião como meio de uniformização do império, há logo no início uma invocação de Cristo, seguindo-se para os livros que, em linhas gerais, dividem-se em matérias. O Livro I trata das fontes do direito, ao direito de asilo e às funções dos diversos agentes imperiais. O Livro II trata do processo. Os Livros III e VIII tratam basicamente de regras de direito privado. O Livro IX de normas de Direito Penal. Os Livros X a XII de regras de direito administrativo e fiscal.

3.7 Comparação entre o Código de Justiniano e a legislação civil brasileira atual

Novamente, sem a pretensão de esgotar o assunto, serão apresentadas algumas semelhanças entre as normas jurídicas do Codex e a legislação brasileira atual.

3.7.1 A boa-fé e a cobrança indevida de dívida

O instituto da boa-fé já era previsto no direito romano, como assim já asseverava Gaio em enunciado incluído no Digesto[12] e repetido no Codex. Assim, aquele que violava este preceito, era punido com severidade caso exigisse quantia superior à devida, perdendo o credor de má-fé tanto o excesso exigido como todo o crédito (C. 3, 10, 3).

Referidos conceitos são bastante semelhantes aos existentes nos artigos 422 e 940 do Código Civil:

Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.

E no artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor:

Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.

Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.

3.8 Novelas (ou Autênticas, Plácida, Novellae)

Após o término das compilações, ou seja, da elaboração do Codex, do Digesto e das Institutas, houve a reserva para que Justiniano pudesse editar novas leis. Utilizando-se dessa faculdade, Justiniano realizou diversas modificações na legislação, as quais não foram diretamente incorporadas ao Corpus Iuris Civilis, pois o governante veio a falecer antes que fosse possível realizá-la.

Assim, particulares resolveram realizar este objetivo, reunindo toda a legislação editada por Justiniano após a elaboração do Codex, do Digesto e das Institutas e transformá-la num quarto volume, as Novelas. Tem-se notícia de três grandes compilações feitas por particulares: o Epítome do professor Juliano, o Authenticum e outra do tempo de Tibério II. Estas são, portanto, constituídas de constituições imperiais, que apresentam prefácio, capítulos e epílogo.

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Sobre o autor
José Eduardo Figueiredo de Andrade Martins

Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Cursou "Law and Economics" na Universidade de Chicago. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Professor dos cursos de graduação e pós graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINS, José Eduardo Figueiredo Andrade. Corpus Juris Civilis: Justiniano e o Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 17, n. 3417, 8 nov. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/22969. Acesso em: 18 mar. 2024.

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