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Breves considerações sobre a tortura

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10/03/2013 às 16:17
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Existem sérias deformidades na formação de agentes cumpridores da lei no Brasil. Além de equívocos cometidos pela legislação em vigor e o estabelecimento de “torturáveis” e “não-torturáveis”, o meio utilizado para diminuir a incidência de tal delito não deve ser somente a lei penal.

Resumo: Trata o presente artigo sobre a tortura como resultado de um processo social e cultural complexo. A partir da concepção de que existem sérias deformidades na formação de agentes cumpridores da lei no Brasil, indica-se que, além de equívocos cometidos pela legislação em vigor e o estabelecimento de “torturáveis” e “não-torturáveis”, o meio utilizado para diminuir a incidência de tal delito não deve ser somente a lei penal. Desse modo, possibilita-se a oportunidade de reflexão sobre a questão pelas origens dos problemas relativos à tortura policial, sendo um deles a formação de policiais ainda impregnada por regras vigentes nos períodos totalitários pelos quais o Brasil passou.

Palavras-chaves: abuso de autoridade; tortura; formação policial;


I - INTRODUÇÃO

A compreensão do que pode ser entendido como tortura em prestação de serviços policiais não é tão simples como parece. Ao se pensar sobre tal termo, logo vem à mente imagens de pessoas amarradas em ambientes escuros, levando choques elétricos ou sendo afogadas em tonéis para confessarem algo ou para fornecerem informações a seus algozes.

No entanto, e conforme será exposto no presente artigo, é necessário fazer distinção entre as definições que envolvem práticas de atrocidades pelo Estado para que se possa entender que o problema é muito mais complexo.

Analisando obras sobre o tema, será demonstrado que os limites entre truculência policial, carência na formação profissional e o cometimento do crime de tortura podem se tornar tênues se for considerada a definição histórica e observado o conceito legal sobre o delito em tela.

Assim, o assassinato de vítimas de grupos de extermínio precedido por sessões de espancamento faria parte do conceito? Assassinos e torturadores fazem parte de grupos diferentes? Pressões psicológicas em interrogatórios policiais podem ser definidas como atos de tortura? Ao manter algemado preso por flagrante de cometimento de delito de menor potencial ofensivo tornaria o policial em torturador? Essas e outras diversas questões devem ser abordadas mediante a análise dos conceitos e levando-se em conta, principalmente, a evolução histórica da Polícia como parte do sistema de repressão do Estado Brasileiro.

Para tanto, na primeira parte deste artigo serão observadas definições legais e decisões judiciais sobre tortura e abuso de autoridade, o que servirá de fundamento para delimitar a análise da evolução do conceito.

Na segunda parte, serão analisadas definições sobre atrocidades cometidas pelo Estado a partir do ambiente de Justiça de Transição, haja vista a certeza de que, no Brasil e em diversos países que passaram por regimes de exceção, as práticas policiais seguem com marcas relevantes dos costumes ditatoriais.

Por fim, serão comparados os conceitos atuais e as definições históricas, com o que serão apresentadas considerações finais sobre o tema em questão.


I – TORTURA E ABUSO DE AUTORIDADE

O uso de práticas de tortura e a violência policial em atividades rotineiras muitas vezes são aceitos como forma de demonstração de poder e autoridade. Ocorre que há muito mais a ser dito em relação ao uso de atrocidades como “forma de trabalho” pelas forças policiais do que cabe no presente artigo.

A tortura tem diversas formas de ser definida e praticada, dependendo do modo como encarado o uso da força pela polícia para investigar delitos, para cumprir ordens judiciais ou para controle de distúrbios, por exemplo.

Nos termos do que foi apontado por JESUS[i]: “A tortura, mesmo não estando diretamente como método de enfrentamento ao crime, acaba sendo utilizada de forma extralegal e aceita socialmente. A despeito das leis e das garantias de direitos, a tortura é uma prática clandestina e que passa a ser minimizada e relativizada diante do aumento da criminalidade. O medo e a insegurança são cada mais instigados e o desejo de segurança por parte da população corre o risco  de resultar “no desejo de segurança a qualquer custo inclusive a violação dos direitos humanos” (Oliveira, 2008, p.267). “.

O que é tortura pela definição da legislação brasileira? Segundo o artigo 1º da Lei nº. 9.455/97, torturar não é ato privativo de servidores públicos, podendo ser cometido o crime por particulares (sujeito ativo comum) quando preenchidos os tipos penais descritos na referida legislação.  Ainda, considera-se importante definir que é repudiado tanto em sua forma de coação física, como nas modalidades que causem sofrimento físico (castigo) e mental, o que inclui, de certo, a omissão em casos específicos.

Observa-se, portanto, que as regras para aplicação do dispositivo legal são amplas, isso em consideração ao que está prescrito na Convenção da Organização das Nações Unidas sobre Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada em 1984.

Conforme definição de tal convenção, tortura é: "Qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou uma terceira pessoa tenha cometido, ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, por sua instigação, ou com seu consentimento ou aquiescência". 

Dessa forma, não só afligir dor ou sofrimento às vítimas para obter informações ou confissões significa tortura, mas, também, comete o delito quem age dessa maneira como forma de castigá-la, de discriminá-la[ii][iii]. Embora possa haver o cometimento do delito em tela entre particulares, este trabalho tem por objeto somente abordar as práticas delituosas cometidas por agentes do Estado.

Assim, interessa determinar que as definições deste tipo penal requerem pronta diferenciação do que é previsto na Lei nº 4.898/65, Lei contra Abuso de Autoridade, a qual define práticas semelhantes em relação a servidores públicos, sendo também necessário observar o período em que foi aprovada para a correta aplicação dos conceitos.

Pelo que se depreende da referida lei, ao punir as práticas de abuso por parte de seus funcionários, a preocupação do Estado centra-se em manter a “imagem” pela prestação dos serviços que lhe é inerente e, não, com as práticas em si, as quais foram até mesmo definidas em outros dispositivos legais.

Por isso, considera-se que são atividades diferentes, embora ambas sejam dolosas. Assim, entrar na residência alheia sem o devido mandado judicial ou fora das previsões constitucionais constitui crime de abuso de autoridade, assim como manter pessoa temporariamente presa por prazo além do que foi previsto pela decisão judicial.

No entanto, o que dizer de manutenção de pessoa algemada horas a fio sem que seja ouvida ou informada sobre seus direitos?  E acerca de diversas condutas, omissões ou privações que podem resultar em imputação de crime de tortura? A divisão entre abuso de autoridade e crime de tortura é tênue e pode ensejar graves consequências.

Conforme CABETTE[iv], haveria dificuldades extremas em serem preenchidas todas as hipóteses causadoras de alterações físicas ou psíquicas que resultem em sofrimento para vítimas de tortura. Tal autor afirma que “não constituiria uma tarefa tão difícil descrever uma boa gama de práticas consistentes em tortura, abarcando expressamente a grande maioria dos casos e servindo de norte à tipificação por interpretação analógica. Tanto que em parte já o fez o Médico Legista Carlos Delmonte, relacionando as seguintes práticas mais freqüentes de tortura: "1) pancadas, socos e golpes com objetos e sacos de areia, na cabeça, no dorso e genitais; 2) ameaças e humilhação; 3) aplicação de eletricidade em boca, orelhas, dorso, dedos, genitais, ânus e períneo; 4) venda nos olhos; 5) execução simulada; 6) testemunhar torturas; 7) asfixia por submersão ("submarino"); 8) isolamento por mais de 48 horas (confinamento); 9) restrição alimentar por mais de 48 horas; 10) restrição e impedimento de sono; 11) suspensão pelas mãos e pés em grandes dispositivos tipo roda ("bandeira") ou em paus-de-arara; 12) estupro e outras violências sexuais, incluindo mutilação genital; 13) suspensão ("crucificação"); 14) queimaduras com cigarros, óleos e objetos quentes e ácidos e similares; 15) pancadas nas solas dos pés com varas ou similares ("falanga"); 16) contenção com cordas ou similares; 17) golpes simultâneos nas orelhas ("telefone"); 18) posição ou atitude forçada por horas ou dias; 19) arremesso de fezes ou urina; 20) administração forçada de drogas ou fármacos; 21) tração nos cabelos; 22) aplicação subungueal de agulhas; 23) privação de água e oferecimento de água suja, com sal ou sabão; 24) extração forçada de dentes; 25) impedimentos ou embaraços à evacuação de fezes e de urina; 26) impedimentos de cuidados médicos; 27) espancamentos diversos.”.

Dessa forma, não há que se confundir a aplicação dos tipos penais em tela quando da análise de situações envolvendo atividades de policiais na prática de atrocidades, haja vista que, geralmente, o agressor incide primeiramente no crime de abuso para, em seguida, praticar atos que podem ser definidos como tortura pela lei.

Conforme FREITAS[v], em obra sobre o tema: “Age com abuso de autoridade, consistente na violação de domicílio, o funcionário público que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, entra ou permanece em casa alheia ou em suas dependências, contra a vontade de quem nela habita.”.

Dessa forma, como exemplo, após ingressarem em domicílio alheio sem a devida ordem judicial, policiais agridem os moradores como forma de castigo por encontrarem produtos ilícitos. Assim, configuram-se delitos diferentes, o que acarreta a necessidade de aplicação de concurso material de crimes (abuso de autoridade e tortura).

Esse também é o entendimento de FREITAS[vi], quando aponta que “outrossim, ocorrerá concurso material entre o crime de tortura e o de abuso de autoridade descrito no art. 3.º, letra a, da Lei  4.898, de 09.12.1965, quando, por exemplo, o agente, após efetuar a prisão ilegal da vítima, a submete a tortura.”.

Interessante também ser citado que é possível infligir sofrimento e danos às vítimas dos crimes em tela pela omissão, não se exigindo somente que o autor do crime pratique algum ato atentatório ou violador. Também pratica o delito quem permite que haja tortura, ou, ainda, quem sabendo do ocorrido nada faz para cessá-lo, como é o caso do chefe de equipe que não repreende seus subordinados em tais práticas.

Por isso, é de se concluir sobre a necessidade da análise de cada caso em concreto de forma bastante acurada, haja vista as consequências da imputação de tal crime. Embora se tenha absoluta certeza de que há disseminado uso de tortura como forma de castigo ou para obtenção de informações no âmbito das práticas policiais, é forçoso afirmar que também ocorrem excessos no ato de diferenciar atos criminosos de atividades inerentes às funções policiais.

 É o que aduz ARAÚJO[vii], quando diz que: “Há vários agentes do Estado (especialmente os policiais), no exercício das suas cotidianas funções, são obrigados a desenvolver atos violentos para assegurar a ordem, efetuar prisões e conter tumultos. Assim, a tênue linha entre uma violência legal e um excesso, configurador de abuso de autoridade, muitas vezes concentra-se na vontade do agente. Um preso pode padecer de um mal físico qualquer e a autoridade, de propósito, se omitir com o intuito de agravar essa situação (abuso de autoridade), como pode deixar de solucionar rapidamente o caso por falta de recurso disponível (ato penalmente irrelevante, embora possa ser o Estado responsabilizado na esfera cível). Tudo depende da verificação do elemento subjetivo específico.”.

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Indica-se, desta forma, que o limiar das definições sobre o assunto ainda pende de entendimento por parte dos próprios policiais sobre a gravidade dos fatos envolvendo falta de discernimento sobre emprego imoderado de força em suas atividades.  Analise-se, por exemplo, o que foi apontado por DIAS[viii], Bacharel em Direito, Graduado em História, Diretor Jurídico do Centro Social de Cabos e Soldados da PM e BM de Minas Gerais, quando aborda sobre o tratamento dispensado a policiais acusados e condenados por tortura: “O texto da Lei de Tortura parece injusto e pouco comedido, ao prever a perda da graduação e da função pública ao servidor que se enquadrar no respectivo crime. Tal afirmativa se dá em virtude da ação policial versus o Crime de Tortura, qual seja, o policial geralmente não tem nem noção que está praticando o Crime de Tortura ao prender um agente de assalto, por exemplo, e diante da resistência, ter de algemá-lo, ou dominá-lo, e em virtude dessa ação causar uma lesão no indivíduo suspeito. Para complicar um pouco a situação, muitos casos, que seriam lesão corporal, abuso de autoridade, constrangimento ilegal, ou mesmo, objeto de Sindicância ou Procedimento Administrativo, são levados a Justiça e ocorre o Oferecimento e Recebimento da Denúncia no Crime de Tortura. (Aí, está o perigo e a analogia que se faz da lei com um monstro). Nos quartéis e delegacias os policiais estão temerosos em trabalhar, e no exercício de suas funções, ter a infelicidade de ser indiciado no Crime de Tortura. Para que se perceba os aspectos da Lei do Crime de Tortura, observa-se: se o policial matar alguém em ação legítima, em tese, não perde a função e a Graduação ou Posto, posto que o Código Penal no artigo 121, não prevê perda da função pública no texto normativo.Tal também deveria ocorrer com a Lei de Tortura, uma vez que o exercício da função policial é muito delicado e diferente de todas as outras competências do Estado. É o policial que coloca em risco a própria vida para proteger a sociedade, que enfrenta o bandido “de frente”, e muitas das vezes é ferido e morre em ações policiais. Outrossim, uma coisa é a sentença judicial aplicada ao policial que incorre no Crime de Tortura, outra coisa é a profissão que exerce, e que tem como fonte de sustento da família. Vem a tona ainda a questão do bis in idem, que pune severamente, no caso do servidor público, mais de duas vezes pelo mesmo fato, quais sejam, o policial recebe uma condenação por Crime de Tortura, quando na realidade o que ocorreu, na maioria das vezes, é um crime de Lesão Corporal, perde a função pública, e no caso dos policiais militares, ainda perdem a Graduação e o Posto que ocupam nas Corporações Militares.”

Visualiza-se que há confusão, exposta no recorte acima, entre normalidade nas funções policiais e cometimento de delitos por parte de agentes públicos, com o que se pretende, inclusive, que condenados por práticas de tortura mantenham suas funções públicas.

E não se trata de opinião isolada. Observe-se o que diz CABETTE[ix], Delegado de Polícia em Guaratinguetá/SP: “Exemplificando: submeter uma pessoa a uma sessão de "pau de arara" com choques elétricos para obter uma confissão, certamente teria abrigo na moldura do art. 1º., I, "a", da Lei 9455/97. Quem negaria que isso é uma forma de tortura? Há constrangimento, emprego de violência e sofrimento físico, bem como a satisfação do elemento subjetivo consistente no desejo do agente de obter uma confissão da vítima. Por outro lado, quando um Policial Militar desfere um tapa no rosto da vítima a fim de obter informação sobre seus dados qualificativos, os quais se negou a fornecer durante o registro de uma ocorrência. A conduta também apresenta adequação ao tipo penal, tanto quanto a primeira. Apresenta todos os elementos necessários: há o constrangimento, o emprego de violência, sofrimento físico (afinal de contas é somente nos versos da canção popular que "um tapinha não dói" (sic)) e até o elemento subjetivo de obter uma informação da vítima. Há adequação típica à figura do art. 1º., I, "a", da Lei 9455/97. Mas há mesmo o crime de tortura? Ou seria mais adequado o reconhecimento de um mero Abuso de Autoridade, previsto pela Lei 4898/65 em seus artigos 3º., "i" e 4º., "b"? Distinguir entre uma suposta adequação formal e outra material à lei não elide o fato de que a norma simplesmente não é capaz de individualizar ou determinar com segurança as condutas por ela abarcadas. Como já se disse alhures, a dicção da norma é correta, mas não possibilita ao intérprete um conhecimento seguro daquilo que pretende retratar.”

Bom ser indicado que o autor pretende apontar que há insegurança por parte dos intérpretes da legislação sobre tortura, haja vista que tapa no rosto de um suspeito para que forneça seus dados qualificativos não representaria crime tão grave, mas “mero Abuso de Autoridade”. A partir de que momento o abuso de autoridade se transforma em tortura?

No entanto, e conforme aponta MORAES[x], justamente por estar ciente da recorrência de práticas inaceitáveis, porém há muito utilizadas pelo sistema repressivo penal, seja na coleta de provas, seja no tratamento carcerário, o legislador previu expressamente a perda e interdição do cargo, função ou emprego público, bem como aumentou de um sexto até um terço a pena se o crime é cometido por agente público.

Este não parece ser o entendimento de grande parte dos entrevistados em recente pesquisa realizada no Brasil. Segundo divulgado pela Revista Eletrônica Consultor Jurídico[xi] em 06.06.2012, mais da metade dos entrevistados aceita práticas de tortura contra acusados.

Ademais, conforme CHEVIGNY[xii]: “O público no Brasil frequentemente parece não se preocupar muito se as mortes da polícia podem ser legalmente justificadas. Quando a Polícia Militar matou 111 prisioneiros (a maioria dos quais eram detentos aguardando julgamento) na Casa de Detenção de São Paulo, em resposta a uma rebelião em 1992, uma grande porcentagem da população disse que aprovava a polícia, e quando uma equipe de TV filmou a própria execução de um suspeito no pátio de um shopping no Rio em 1995, a maioria dos pesquisados aprovou o crime.”.

Em relação aos tribunais, estes vêm decidindo de forma a deixar bem claro que, embora ainda existente como prática policial, o crime de tortura não será tolerado em hipótese alguma, taxando-se, ainda, como ilícitas as provas obtidas a partir de tais atividades delituosas. Sendo assim, nem mesmo a obtenção de provas ou informações por meio de cometimento de atrocidades será proveitosa.

Mesmo quando intensamente provocado pela vítima, a policial algum é permitido personalizar o cargo que exerce a ponto de se sentir no direito de agredir injustamente pessoas sob sua custódia. É o que se depreende do julgado a seguir colacionado:

“TORTURA. PRESO. LESÕES GRAVES. A vítima encontrava-se detida sob responsabilidade de agentes estatais (delegacia da polícia civil) por ter ameaçado a vida de um terceiro. Contudo, lá apresentou comportamento violento e incontido: debatia-se contra as grades, agredia outros detentos e dirigia impropérios contra os policiais. Após, os outros detentos foram retirados da cela e a vítima foi algemada, momento em que passou a provocar e ofender o policial que a guardava, que, em seguida, adentrou a cela e lhe desferiu vários golpes de cassetete, o que lhe causou graves lesões (constatadas por laudo pericial), agressão que somente cessou após a intervenção de outro policial. Então, é inegável que a vítima, enquanto estava detida, foi submetida a intenso sofrimento físico por ato que não estava previsto em lei, nem resultava de medida legal, o que configurou a tortura prevista no art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.455/1997. Essa modalidade de tortura, ao contrário das demais, não exige especial fim de agir por parte do agente para configurar-se, bastando o dolo de praticar a conduta descrita no tipo objetivo. Já o Estado democrático de direito repudia o tratamento cruel dispensado por seus agentes a qualquer pessoa, inclusive presos. Conforme o art. 5º, XLIX, da CF/1988, os presos mantêm o direito à intangibilidade de sua integridade física e moral. Desse modo, é inaceitável impor castigos corporais aos detentos em qualquer circunstância, sob pena de censurável violação dos direitos fundamentais da pessoa humana. Anote-se, por último, que a revaloração de prova ou de dados explicitamente admitidos e delineados no decisório recorrido, quando suficientes para a decisão da questão, tal como se deu na hipótese, não implica reexame da matéria probatória vedada na via especial (Súm. n. 7-STJ). No especial, não se pode examinar mera quaestio facti ou error facti in iudicando, contudo não há óbice ao exame do error iuris in iudicando (tal qual o equívoco na valoração de provas) e o error in procedendo. Com esse entendimento, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, deu provimento ao especial. Precedente citado: REsp 184.156-SP, DJ 9/11/1998. STJ. REsp 856.706-AC, Rel. originária Min. Laurita Vaz, Rel. para acórdão Min. Felix Fischer, julgado em 6/5/2010.”

Observe-se que foi reforçada a tese de que o Estado Brasileiro deve repudiar a medida de agressões físicas e sofrimento mental a quem quer que seja, inclusive a presos, os quais deveriam estar sob a proteção estatal. Ou seja, não poderia o próprio Estado provocar tais danos a quem deveria resguardar.

Interessa, ainda, perquirir sobre o papel diferenciado dos que praticam os atos de violência física e/ou psíquica contra as vítimas daqueles que determinam, facilitam, auxiliam e, ao fim e ao cabo, omitem-se para que o delito seja cometido.

Conforme HUGGINS[xiii], estes são os chamados facilitadores. Segundo tais autores, embora o treinamento policial, o ambiente em que convivam e as práticas profissionais sedimentadas acabem por apontar aqueles que se envolvem diretamente nas atrocidades como torturadores e assassinos estatais, há responsabilidade para os “que, indiretamente, promoveram, alimentaram, protegeram e mantiveram ocultas as perversidades dos perpetradores.”.

É o caso a seguir exposto em julgado recente do Superior Tribunal de Justiça: “CRIME. TORTURA. PERDA. CARGO. O paciente, na condição de policial militar, teria sido omisso ao não impedir que os outros milicianos praticassem, nas dependências do batalhão policial, tortura contra duas pessoas, sendo que uma delas veio a falecer em razões das agressões sofridas. Foi condenado como incurso nas penas do art. 1º, § 2º, da Lei n. 9.455/1997. Sustenta a defesa que o paciente não teve conhecimento do fato delituoso, não estando sequer presente quando das agressões, ficando clara a equivalência ou paridade entre a situação dos acusados absolvidos e a dele. Mas o Min. Og Fernandes, Relator, entende que a pretensão não merece guarida uma vez que a imputação recaída sobre o paciente – de ter-se omitido em face do cometimento de prática de tortura – encontra amparo no decidido pelas instâncias ordinárias, que se lastreiam no conjunto probatório. Também porque, na condição de policial militar, o paciente tinha o dever legal de evitar a prática de crime ocorrido nas dependências do estabelecimento em que trabalhava. Há de se acrescer ainda o relato das testemunhas, segundo as quais os pedidos de socorro eram ouvidos de suas casas. Assim, fica afastada a alegação de que, por estar junto ao portão de entrada do prédio, não haveria meios de ter ciência das violências perpetradas. Finalmente, o pedido demanda revolvimento do conjunto fático probatório, providência incompatível com a via eleita. Quanto à pretensão de afastar as penas acessórias da perda do cargo e impedimento de exercer outra função pública pelo período de dois anos, destacou o Min. Relator que a jurisprudência consolidada neste Superior Tribunal é que, nos crimes de tortura, a perda do cargo é efeito automático e obrigatório da condenação. Assim, não haveria sequer a necessidade de fundamentar a medida. Dessa forma, a Turma, ao prosseguir o julgamento, por maioria, denegou a ordem, vencidos os Ministros Celso Limongi e Nilson Naves, que a concediam. Precedentes citados do STF: HC 92.181-MG, DJe 1º/8/2008; do STJ: HC 40.861-MG, DJ 2/5/2005; HC 97.195-SP, DJe 19/10/2009; HC 95.335-DF, DJe 4/8/2008; HC 106.995-MS, DJe 23/3/2009; REsp 799.468-AP, DJ 9/4/2007, e  HC 92.247-DF, DJ 7/2/2008. HC 47.846-MG, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 11/12/2009.”

Conforme consta, um dos policiais militares não interveio para evitar que duas pessoas fossem brutalmente torturadas nas dependências de um batalhão policial militar, o que acarretou sua condenação como incurso no delito do parágrafo 2º do artigo 1º da Lei nº 9.455/97. Todavia, ao se observar a reprimenda prevista para tal crime (§ 2º Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evitá-las ou apurá-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.), observa-se que não foi intenção do legislador a punição cabal de tais facilitadores.

Novamente, importa citar CHEVIGNY[xiv] sobre o assunto. Conforme tal autor: “Quando os abusos policiais são levados aos tribunais ou outras corporações públicas, a polícia tem uma miríade de maneiras de interferir nas investigações. Em São Paulo, quando a Polícia Militar mata um suspeito, a fim de remover a maioria das evidências forenses, ela normalmente leva a vítima para o hospital como se ele ou ela ainda estivesse viva. Num esforço para comprovar a história de que a vítima morreu num confronto armado, ela planta uma arma na mão dele ou dela (...).“

Ainda, segundo o mesmo autor[xv], “Frequentemente, os oficiais superiores demonstrarão, ajudando a encobrir, que eles não desaprovam a violência.”

Ora, são exatamente os facilitadores quem fomentam as atividades ilícitas, muitas vezes propiciando que equipes policiais inteiras sejam afetas a tais atividades como forma de investigação e abordagem a cidadãos ou demais vítimas. Afinal, são os superiores hierárquicos quem desejam que os casos sejam solucionados cada vez mais rápido, que haja resultados em delitos de maior clamor social e pressão midiática, sendo estes os maiores responsáveis pela cultura de atrocidades que vige em determinadas equipes policiais Brasil a fora.

Dessa maneira, a responsabilidade maior deveria recair sobre os que determinaram a prática, foram coniventes com ela ou, ainda, omitiram-se ao perceber que havia ocorrido tortura por parte de seus subordinados em ações oficiais ou não de repressão a delitos.

No termos do que foi apontado na pesquisa feita por HUGGINS[xvi]: ”(...) há ampla evidência de que os policiais facilitadores foram (pelo menos) participantes tácitos das atrocidades – entregando vítimas aos torturadores, assistindo a torturas ou assassinatos, tomando conta de prisioneiros e ficando quietos enquanto as atrocidades ocorriam.”

Desta forma, acredita-se que a pena do parágrafo 2º, acima citado, é bastante tímida para quem, na verdade, promoveu a barbárie e assegurou a impunidade dos demais, os quais, se punidos, podem chegar a levar 08 (oito) anos de reclusão, sem os aumentos de pena previstos pela Lei nº 9.455/97.

Assim, ao citar HUGGINS, a autora MARIA GORETE MARQUES DE JESUS[xvii] aduz que: ”Com relação à punição, Huggins acredita que não se deve apenas punir o torturador, visto que ele faz parte do sistema, mas responsabilizar todos os que fazem parte da tortura: médico, psiquiatra, os funcionários, o delegado, o coronel etc. A impunidade claramente estimula a prática da tortura, porque significa que ninguém vai responder penalmente pelo crime.”

Portanto, o caminho para a modificação do sistema quanto a tais crimes repousa, sem dúvidas, na ampliação do espectro da legislação para que passe a abarcar os que facilitam as atrocidades, permitindo que ocorram ou pondo-se ao largo de suas responsabilidades no ato de puni-las ou denunciá-las.

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Sobre o autor
Rafael Francisco França

Delegado de Polícia Federal - Departamento de Polícia Federal, lotado na Delegacia Regional Executiva da Superintendência em Porto Alegre/RS. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Penal e Processual Penal, e em Segurança Pública. Mestrando em Ciências Criminais pela PUC/RS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Rafael Francisco. Breves considerações sobre a tortura. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3539, 10 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23855. Acesso em: 29 mar. 2024.

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