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Uma análise crítica acerca da medida de segurança

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4 A MEDIDA DE SEGURANÇA E O DIREITO PENAL

A medida de segurança é um instituto que, desde o seu surgimento, traz consigo uma série de controvérsias e polêmicas em virtude da natureza peculiar que ostenta. Partindo deste fato incontestável, há de se inquirir: é pertinente que o sujeito, apurada a sua enfermidade mental, sofra qualquer espécie de medida penal? A resposta a tal questionamento, por certo, pressupõe uma breve análise acerca das principais finalidades do Direito Penal e da sua compatibilidade ou não com os objetivos da medida de segurança.

Consiste o Direito Penal no ramo do Direito responsável pela definição de ilícitos penais, crimes ou contravenções, bem como das providências correspondentes à sua prática, penas ou medidas de segurança, com vistas à repressão da criminalidade e à proteção da sociedade.

Além da função retributiva para o exercício da qual foi criado, o Direito Penal apresenta hoje outras três funções de cunho preventivo, caracterizadas pelos objetivos de: restabelecer a confiança no Estado, fortalecendo os valores veiculados pela norma – prevenção geral positiva; intimidar a prática delitiva – prevenção geral negativa; e, por fim, emendar o delinqüente, coibindo-o de perpetrar novos ilícitos – prevenção especial[31].

É possível afirmar que as duas primeiras funções mencionadas não atingem de qualquer maneira os enfermos mentais, dada a incapacidade destes de compreender o conteúdo amoral das condutas praticadas, bem como de eventuais repressões. A partir desta análise, permite-se asseverar que a medida de segurança apenas se conforma com a última das funções apresentadas – emendar o delinqüente –, uma vez que criada com o fito não de punir, mas de tratar os inimputáveis e semi-imputáveis, neutralizando o suposto perigo destes, para o posterior retorno ao meio social.

Já da época da construção de providências alternativas às penas, defendiam os doutrinadores da Escola Penal Clássica que os portadores de anomalias psíquicas não deveriam ser objeto de quaisquer medidas de natureza penal, as quais, já em sua nomenclatura, traziam, sempre, uma forte carga de punição, castigo. Venceram, todavia, os partidários da Escola Penal Positiva, segundo a qual o Direito Penal deveria ultrapassar os limites do crime e da pena para proteger a sociedade também pela via da prevenção, oferecendo tratamento aos sujeitos considerados periculosos[32].  

Sucede, contudo, que a prática evidenciou o fracasso do Direito Penal no que tange ao cumprimento de um papel terapêutico, havendo mais uma vez se restringido a repreender, independentemente da ausência de imputabilidade plena de seu alvo. Como se vê, nenhuma das funções penais apresentadas pode ser vislumbrada na medida de segurança. Impera agora, pois, a necessidade de que os ensinamentos deixados pela Escola Clássica sejam retomados para confirmar o descabimento da aplicação de providências penais àqueles que não possam compreender a reprovabilidade de suas condutas ou de determinar-se conforme a própria vontade.

Definitivamente, na esteira do que já sustentavam a seu tempo os classicistas, o Direito Penal não pode ser utilizado em face do sujeito que, por faltar-lhe o elemento essencial da culpabilidade, não pratica sequer crime, mas apenas fato previsto como crime, sob pena de, em paráfrase ao que dizia Foucault, olvidarem-se os juízes dos crimes para julgar a alma de quem os cometeu[33] ou, indo mais longe, para julgar a enfermidade de quem os cometeu, tendo em conta ser esta a grande causadora do suposto perigo.

A medida de segurança, pautada pela periculosidade e pela prevenção de um possível ilícito futuro, demonstra-se absolutamente incompatível com o Direito Penal tradicional, erigido sobre as bases sólidas da culpabilidade e do fato perpetrado no passado. Aproxima-se tal instituto, em verdade, das concepções sustentadas pelos precursores do Direito Penal do inimigo, duramente rechaçado, ao menos em tese, no Brasil[34]

Apurada, pois, a enfermidade mental de um sujeito, sensato evidenciar-se-ia que o Estado, no exercício do seu poder tutelar, retirasse-o da esfera penal, submetendo-o a cuidados de natureza estritamente sanitária.

Com efeito, o Direito Penal, como a face mais violenta do Estado, somente utilizado quando insuficiente a adoção de providências diversas, não deveria continuar a intervir sobre a liberdade dos portadores de anomalias psíquicas, para os quais devem ser destinadas políticas públicas de atenção à saúde mental, estas sim realmente aptas a promover assistência terapêutica eficaz e, por conseguinte, o controle de possíveis atos ilícitos. Respeitar-se-ia, destarte, a um só tempo, o mandamento político de subsidiariedade da intervenção penal e os direitos e necessidades dos doentes mentais. 


5 CONCLUSÕES

A medida de segurança, criada com o objetivo de promover a profilaxia dos loucos infratores, considerados periculosos, e, assim, possibilitar o seu retorno ao convívio social, ao longo da história, revelou-se muito mais aflitiva do que libertadora.

Concretizando os princípios trazidos pela Escola Positiva do Direito Penal, o instituto penal, executado, infelizmente, ainda hoje sobretudo no interior dos HCTP, levou ou loucos infratores ao limbo: a eles não são aplicadas as garantias penais asseguradas aos ditos normais, nem tampouco a proteção conquistada no âmbito dos direitos humanos e do direito à saúde aos portadores de transtornos mentais.

Diante deste cenário, desponta a necessidade de se repensar, no âmbito jurídico, qual a pertinência do Direito Penal para tratar de sujeitos que, desprovidos de sua capacidade de discernimento e autodeterminação, nem sequer praticam crime, cuja acepção deve ser o mais restritiva possível.

Impende reconhecer a dignidade dos enfermos mentais autores de ilícitos-típicos e, com isso, deferir-lhes um tratamento respeitoso, cidadão, condizente, enfim, com a situação especial em que vivem.


6 REFERÊNCIAS

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QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 13. ed.. São Paulo: Saraiva, 2010.


Notas

[1] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 5. ed.. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1980, v. 1, t.1, p. 81. 

[2] RAMOS, Maria Regina Rocha; COHEN, Cláudio. Considerações acerca da semi-imputabilidade e inimputabilidade penais resultantes de transtornos mentais e de comportamento. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 10, n. 39, jul./dez. 2002, p. 216-221.

[3] QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 21-33.

[4] FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p. 16.

[5]  BRUNO, Aníbal. Medidas de Segurança. 1940. 204 f. Dissertação de concurso para a cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito do Recife. Recife, 1940, p. 12.

[6] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 5. ed.. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1980, v. 1, t.1, p. 85. 

[7] QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito Penal: legitimação versus deslegitimação do sistema penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 52-56.

[8] CORREIA, Ludmila Cerqueira. Avanços e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delitos. 2007. 174 f.. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007, p. 57. Disponível em: <http://www.aatr.org.br>. Acesso em: 05 set. de 2010. 

[9] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 5. ed.. São Paulo: Editora Max Limonad Ltda., 1980, v. 1, t.1, p. 90.

[10] FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.17.

[11] BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo III: Pena e Medida de Segurança. 5. ed. rev. e at.. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 182-183.

[12] BRUNO, Aníbal. Medidas de Segurança. 1940. 204 f. Dissertação de concurso para a cadeira de Direito Penal da Faculdade de Direito do Recife. Recife, 1940, p. 19.

[13] RAMOS, Maria Regina RochaCOHEN, Cláudio  Considerações acerca da semi-imputabilidade e inimputabilidade penais resultantes de transtornos mentais e de comportamento. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 10, n. 39, jul./dez. 2002, p. 219-221.

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[14] HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1951, v. 3, p. 22-23.

[15] Responsáveis, parcialmente responsáveis e irresponsáveis, com a reforma do Código Penal em 1984, passaram a ser denominados, respectivamente, de imputáveis, semi-imputáveis e inimputáveis.

[16] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 7. ed.. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, t. 2, p. 236-238.

[17] FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.37.

[18] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 7. ed.. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 699-700.

[19] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 13. ed.. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 504-505.

[20] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 7. ed.. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 700.

[21] GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. 7. ed.. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, t. 2, p. 249.

[22] GOMES, Luiz Flávio. Medidas de segurança e seus limites. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, ano 1, n. 2,  abr./jun. 1993, p. 64.

[23] BRASIL, Supremo Tribunal Federal (Primeira Turma). MEDIDA DE SEGURANÇA – PROJEÇÃO NO TEMPO – LIMITE. A interpretação sistemática e teleológica dos artigos 75, 97 e 183, os dois primeiros do Código Penal e o último da Lei de Execuções Penais, deve fazer-se considerada a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. A medida de segurança fica jungida ao período máximo de trinta anos. Habeas Corpus n.º 84.219-4 – São Paulo. Paciente: Maria de Lourde Figueiredo. Impetrante: PGE – São Paulo – Waldir Francisco Honorato Júnior. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Relator: Ministro Marco Aurélio. 16 de agosto de 2005. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=79519>>. Acesso em: 10 out. 2010.

[24] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: parte geral. 7. ed.. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 705.

[25] JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito Penal da Loucura. Brasília: ESPMU, 2008, p. 88.

[26] COSTA, Álvaro Mayrink. Medidas de Segurança. Revista da EMERJ, Rio de Janeiro, v.10, n.37, 2007, p. 27.

[27] MARCHEWKA, Tânia Maria Nava. As contradições das medidas de segurança no contexto do direito penal e da reforma psiquiátrica no Brasil. Revista da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, ano 1, n. 00, 2004, p. 186-187.

[28] MATTOS, Virgílio de. Crime e Psiquiatria: uma saída: preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 130-131.

[29] Ibid., p. 50.

[30] CORREIA, Ludmila Cerqueira. Avanços e impasses na garantia dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais autoras de delitos. 2007. 174 f.. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2007, p. 70. Disponível em: <http://www.aatr.org.br>. Acesso em: 05 set. de 2010. 

[31] FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de Segurança e Direito Penal no Estado Democrático de Direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001, p.47-59.

[32] BRUNO, Aníbal. Direito Penal, Parte Geral, Tomo III: Pena e Medida de Segurança. 5. ed. rev. e at.. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 199-201.

[33] FOUCAULT, 1999 apud JACOBINA. Direito Penal da Loucura. Brasília: ESPMU, 2008, p. 129.

[34] MATTOS, Virgílio de. Crime e Psiquiatria: uma saída: preliminares para a desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 156. 

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Sobre a autora
Carla Graziela Costantino de Araújo

Graduada pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito do Estado. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ARAÚJO, Carla Graziela Costantino. Uma análise crítica acerca da medida de segurança. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3577, 17 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24192. Acesso em: 19 abr. 2024.

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