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O sentimento jurídico e a prudência como expressões de uma práxis valorativa de implementação dos direitos fundamentais.

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03/05/2013 às 15:36
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O Sentimento Jurídico e a Prudência são elementos inexpugnáveis ante a atividade interpretativa do magistrado, fugir desses âmbitos já foi caminho tomado pelos positivistas, mas nossos tempos são outros.

INTRODUÇÃO

A importância da positivação dos Direitos Fundamentais está cercada por uma amalgama histórica da evolução do pensamento jurídico sobre o conteúdo do texto legal e das decisões judiciais.

A importância da evolução da doutrina da interpretação do Direito tem papel importantíssimo na possibilidade de afirmação de um espaço de construção operada pelo intérprete sobre os textos legais. E, como o Direito é objeto cultural, chegam à ele valores irrenunciáveis.

Entre a lei e a norma há um sujeito, intérprete, que, apenas por sua condição humana já possui em si uma inarredável característica da subjetividade, afinal: “Ser homem já significa filosofar.”[1]. Com isto as teses que queiram fixar programas de esvaziamento do ato de interpretação e aplicação do Direito restarão em ocaso, quanto mais quando o objeto de interpretação do jurista residir em enunciados com cunho valorativo.

Os Direitos Fundamentais surgem como expressão do fim da antinomia e separação absoluta entre o mundo valorativo e o normativo. Isto porque seu teor revolucionário trouxe normas de caráter universalista e conteúdo axiomático para o âmbito constitucional.

O aprofundamento das crises e choques entre direitos leva a resposta meramente normativa ao ermo. Immanuel Kant chega exemplificar esses tensões entre aplicação de normas e as variâncias da vida:

É permitido antecipar pelo suicídio a sentença de morte injusta do governante – mesmo se o governante o permitir (como fez Nero com Sêneca)? Pode um grande rei recentemente morto ser acusado de uma intenção criminosa por carregar consigo um veneno de ação rápida, presumivelmente para o caso de, se capturado quando conduzisse suas tropas ao campo de batalha, pudesse não ser forçado a assentir às condições de resgate prejudiciais ao seu Estado?[2]

Vê-se pelos exemplos kantianos que a previsão normativa às vezes cede à multiplicidade da vida. Nesses momentos de crise entre direitos (também chamado “conflito aparente de normas”) é então necessária a questão da sensibilidade, do “Sentimento Jurídico”, muito mais do que o pensamento lógico-jurídico.

Ao deparar-se com os conflitos entre Direitos Fundamentais vem a Teoria do Sopesamento, ou, também,a chamada aplicação do Princípio da Proporcionalidade, que carrega em si feições normativas e axiológicas muito ligadas a maneira como a Prudência orienta nos momentos críticos da decisão.

Como entender o papel do Sentimento Jurídico e da Prudência no âmbito de realização dos Direitos Fundamentais: é essa a fonte e anseio deste artigo.

A afirmação de que há diferença entre texto e norma levou à impossibilidade de retenção da atividade criativa do magistrado. O “Sentimento Jurídico” é então admitido como um resultado do processo de concepção do intérprete e a norma jurídica como ato de criação.


1 O PAPEL DO JUIZ NO ATO DE INTERPRETAÇÃO.

A visão que antes defendia uma coincidência entre texto legislativo e norma levava em conta as formas de pensamento lógico da matemática, esquecendo o amplo espectro que a linguagem humana possui. Esta tese pode ser denominada de “Literalismo”:

Essa visão tradicional, a qual será aqui denominada de ‘literalismo’, não levava em consideração a linguagem humana tal qual utilizada nas interações sociais cotidianas, pois tomavam como exemplo paradigmático de ‘linguagem’, o formalismo das lógicas e das matemáticas.[3]

A virada lingüística da teorização do Direito deu-se com a influência da Filosofia da Linguagem de Ludwig Wittgenstein em 1930, também chamado esse período de “Contextualismo”[4]. A significação dos textos legais passaram a ter uma concepção dicotômica: norma e texto. Seguindo a orientação de Wittgenstein: “O significado de uma palavra é seu uso na linguagem. E o significado de um nome se explica, muitas vezes, ao se apontar para o seu portador.”[5].Significado e portador interagiriam produzindo atos que se relacionariam mutuamente. John L. Austin também foi propagador desse Contextualismo: “[....] não há nenhum simples e útil acessório de uma palavra chamado ‘significado de (da palavra) ‘x’.”[6].

Nesse sentido, a lei lato sensu, chamada de “enunciados jurídicos” não comporta uma pré-determinação do seu conteúdo, ela passa por um processo de construção interpretativa: “Conceitos jurídicos não tem significado e os enunciados não têm sentido como se fosse algo hermeticamente predeterminado.”[7].

A experiência com a norma não traz toda realidade, assim como previsto pala Filosofia da linguagem: “Nomes designam somente o que é elemento da realidade. [....] O que vemos são componentes de algo composto [....].”[8]. Não há identidade entre norma e um significado hígido, ou seja, a norma não traduz o enunciado legislativo:

[....] embora o principal veículo através dos quais as normas jurídicas são criadas ou postas seja o proferimento de expressões lingüísticas – os textos legislativos – por autoridades componentes, ponto este sobre o qual não há nenhuma controvérsia, já não mais se admite estabelecer uma simples e ingênua confusão entre as normas e os textos legislativos. Sem dúvida as normas são o resultado de uma interpretação de textos jurídicos [....].[9]

A afirmação de Martin Heidegger sobre compreensão e pré-compreensão termina por corroborar que a norma resultado da interpretação está encharcada dos fatores inerentes da dialética entre o intérprete e o objeto interpretado:

A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é a apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que uma opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete.[10]

Ao relacionar a atividade do juiz à produção de uma norma individualizada é interessante para afirmar que, por vezes, é inexistente a necessidade de um dispositivo legal para que se proceda a afirmação de uma norma. Humberto Ávila afirma a independência quanto a existência entre Norma e Enunciado, sendo possível que uma exista sem a outra:

Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática dos textos normativos. [....] Em alguns casos há norma mas não há dispositivo. [....] Em outras hipóteses há apenas um dispositivo, a partir do qual se constrói a norma.”[11].

J. J. Gomes Canotilho também afirma distinção entre norma e texto da lei: “o texto da norma é o ‘sinal linguístico’; a norma é o que se revela ou designa.”[12].

Contudo, a tese formalista criada por Hans Kelsen, ante a inexistência de identidade única entre a norma aplicada e o texto legislativo, afirmava a impossibilidade de uma aplicação justa. Para este autor o ato de interpretação fixa uma moldura dentro da qual o juiz cria a norma que lhe parece mais corretae não garante a justeza de sua decisão:

Não há absolutamente qualquer método – capaz de ser classificado como de Direito Positivo – segundo o qual, das várias significações verbais de uma norma, apenas uma possa ser destacada como ‘correta’[....].[13]

Essa posição relativista chega a afirmar que a Interpretação Autêntica é realizada mais precisamente pelo Tribunal Constitucional, o qual está livre no ato decisório:

[....] a produção do ato jurídico dentro da moldura da norma jurídica aplicanda é livre, isto é, realiza-se segundo a livre apreciação do órgão chamado a produzir o ato. [....] isto é, criadora de Direito é a interpretação feita através de um órgão aplicador do Direito ainda quando cria Direito apenas para um caso concreto, [....] quer dizer, da interpretação de uma norma pelo órgão jurídico que a tem de aplicar, não somente se realiza uma das possibilidades reveladas pela interpretação cognoscitiva da mesma norma, como também se pode produzir uma norma que se situe completamente fora da moldura que a norma a aplicar representa.[14]

A crise desse posicionamento positivista se deu com a deflagração de duas grandes guerras mundiais e o anúncio de que o Direito aplicado ao caso concreto deveria receber uma moldura valorativa para sua aceitação. Foi o início da era dos princípios: “Sob o prisma histórico, a primazia do valor da dignidade da pessoa humana é a resposta à profunda crise sofrida pelo positivismo jurídico, associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha.”[15].

Na era dos princípios não basta a afirmação de que uma decisão é um ato livre, ou que é um resultado de um processo que não deve ser valorado. Segundo a moderna doutrina: “A norma é um “intermediário” entre um imperativo de ser e de um juízo o sollen.”[16]. E este processo dialético de exame e reexame do resultado último da ação judicial não levaria à redução ao infinito, nem a postulação de uma Lei Fundamental de conteúdo variável e relativizável.

Willis Santiago Guerra Filho cria uma “Curva” de avaliação da aplicação das normas: “[....] o que se pensa é que no encadeamento do processo de validação há de se dar uma ‘curva’, que permitiria a validação da mais geral e abstrata das normas por sua aplicação a casos concretos e particulares.”[17].

Nesse mesmo sentido, J. J. Gomes Canotilho:

A norma de decisão, que representa a medida de ordenação imediata e concretamente aplicável a um problema, não é uma ‘grandeza autônoma’, independente da norma jurídica, nem uma ‘decisão voluntarista’ do sujeito de concretização; deve, sim, reconduzir-se sempre à norma jurídica geral.[18]

Esta “curva” ou “retorno à norma jurídica geral” garante a possibilidade de uma Justiça materialmente buscada. A prudência auxiliará nesse retorno aos valores jurídicos e morais que regem a aplicação jurídica.Mas, antes disto, deve ser asseverada a importância do “Sentimento Jurídico”, da produção da norma como ato de criação.

1.1 A Interpretação jurídica como ato de criação

Se a interpretação é um ato de concepção a identidade entre texto e norma está ligada pela subjetividade do intérprete. Este liame não pode ser considerado como inexistente e, muito menos, pode ser tido como cláusula de indiscutibilidade sobre a melhor decisão. Afinal, não se pode neutralizar a subjetividade humana, mas pode ser refeita em seu olhar, tornada como nas palavras de Ronald Dworkin, uma atividade criativa como a observação de um quadro:

A forma de interpretação que estamos estudando – a interpretação de uma prática social – é semelhante à interpretação artística no seguinte sentido: ambas pretendem interpretar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas, e não o que as pessoas dizem, como na interpretação da conversação, ou fatos  não criados pelas pessoas, como no caso da interpretação científica.[19]Grifo Nosso.

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Não se está em busca do sentido do legislador, ou da lei, mas de uma atividade interpretativa que considere as melhores técnicas para a produção de uma norma sustentável eticamente.

Konrad Hesse defende a “Interpretação Construtiva”, esta criação judicial não é apenas um alongamento de uma subjetividade judicial, mas um procedimento de realização da “Força Normativa da Constituição”:

Finalmente, a interpretação tem significado decisivo para a consolidação e preservação da força normativa da Constituição. A interpretação constitucional está submetida ao princípio da ótima concretização da norma (Gebot optimaler Verwirklichung der Norm). [....] A interpretação adequada é aquela que consegue concretizar, de forma excelente, o sentido (Sinn) da proposição normativa dentro das condições reais dominantes numa determinada situação.[20] Grifo Nosso.

O que se defenderá aqui tem como meta esta “interpretação adequada” com motivação ética. O uso da Prudência não requer uma formação de enunciados universais, mas, dentro das condições reais que foram prolatadas as decisões, tenha sido a melhor. Esse processo de ir em busca de um método de decisão que concretize o Princípio da Prudência para a atividade judicial pode passar por diversas fases.

Ronald Dworkin propõe três etapas para o processo interpretativo: Etapa Pré-interpretativa ([....] na qual são identificados as regras e os padrões que se consideram fornecer conteúdo experimental da prática.”[21]); Interpretativa (“[....] em que o intérprete se concentre numa justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na etapa pré-interpretativa.”[22].) e Pós-interpretativa ou Reformuladora (“[....] ou reformuladora à qual ele ajuste  sua ideia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa.”[23]).

Todo esse caminho deve ser feito pelo simples fato de as palavras terem sentidos quase sempre não unívocos e a subjetividade humana não significar subjetivismo, mas um ato irrefreável do ato interpretativo, da concepção e e percepção dos inúmeros fios da “corda interpretativa”: “[....] dos quais nenhum corre ao longo de todo o seu comprimento nem a abarca em toda a sua largura.”[24].


2 SENTIMENTO JURÍDICO: aproximação ENTRENORMA e  valor com A POSITIVAÇÃO dos Direitos Humanos.

Após a afirmação de que o ato interpretativo cria normas que não significam univocamente o sentido dos textos legais, foi atribuída mais força à positivação dos Direitos Humanos como Direitos Fundamentais, pois sua maior contestação era a textura aberta de suas previsões normativas.

É interessante saber que o Direito, como objeto da cultura, nem sempre foi dissociado dos valores culturais, na Idade Antiga ele era uma expressão da arte, mas: “Com a separação dos domínios culturais, o direito e a arte distanciam-se cada vez mais, chegando até mesmo a se oporem hostilmente.”[25]. Essa distanciação; contudo, levou a uma concepção fria do Direito, como se o mesmo fosse formado por um arcabouço de regras estáticas e lógicas de resultados previsíveis.

Mas os dramas jurídicos, as tensões decisórias de casos de difícil resolução levaram o Direito a um retorno à prática estética na práxis jurisprudencial e não só estética, mas à um comprometimento com os valores:

A interpretação correta das leis não é uma simples teoria da arte, uma espécie de técnica de lógica da subsunção sob parágrafos, mas uma concreção prática da ideia de direito. A arte dos juristas é também o cultivo do direito.[26]

Esse salto para uma nova forma de conceber o Direito é chamada por Gustav Radbruch de “Sentimento Jurídico”, o qual une os dois âmbitos que envolvem a interpretação do Direito - a lei e a sensibilidade:

Se a linguagem jurídica é um estilo frio e lapidar, em contraste, a linguagem da luta pelo direito, do sentimento jurídico combativo, é a retórica ardorosa. O sentimento jurídico une em si dois momentos aparentemente contraditórios: a sensibilidade, que costuma ser aplicada apenas ao intuitivo-concreto, com a generalidade abstrata do preceito jurídico.[27]Grifo Nosso.

A Discussão sobre a possibilidade ou não da reutilização de valores ligados à Moral não apenas na práxis judicial, mas nos próprios textos legislativos anunciou a crise do dualismo clássico entre as escolas positivistas e jusnaturalistas. As bandeiras do Jusnaturalismo e Juspositivismo, como assevera Dworkin, desgastaram-se com o tempo: “São bandeiras  - desgastadas pelo uso – das cruzadas da ciência do direito.”[28].

A codificação dos Direitos Humanos antes tidos como metajurídicos, com forte expressão jusnaturalista, ganha força constitucional e adere ao conceito de fundamentalidade constitucional, ou seja, são chamados “Direitos Fundamentais”. Paulo Bonavides combate o uso indiscriminado dos termos Direitos Humanos e Fundamentais como tem sido perpetrado pela doutrina, no que ele chama de “[....] uso promiscuo de tais denominações[....].”[29]. A distinção quanto aos Direito Fundamentais e os Humanos se opera pela codificação daqueles: “[....] direitos fundamentais são aqueles direitos que o direito vigente qualifica como tais.”[30]

O caráter indiviso de norma e valor no âmbito dos Direitos Fundamentais, é admitido por toda doutrina moderna: “O fato de que por meio das disposições de Direito Fundamental, sejam estatuídas duas espécies de normas – as regras e os princípios – é o fundamento do caráter duplo das disposições de Direitos Fundamentais.”[31]. A esfera dos princípios em sua abertura axiológica trouxe a discussão pela aproximação entre as esferas do sein e do sollen.

Busca-se cada vez mais a aproximação dos abismos do ser e do dever ser, da realidade normativa e fática. E as normas constitucionais, principalmente de Direitos Fundamentais, trazem forte abertura textual ao processo de valoração e relocalização da discussão jurídica para o âmbito dos valores. Konrad Hesse chega a afirmar a importância de uma ressignificação do liame entre norma e realidade: “[....] A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade.”[32].


3 Prudência como Norma VALORATIVA DE AUXÍLIO NO SOPESAMENTO dOS DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Conceituar o que seja Prudência, ainda mais em vias da aplicação de Direitos é tarefa árdua, mas absolutamente necessária. A própria Prudência nos remete ao cuidado na atividade de conceituar:“[....]uma regra de prudência muito importante, não se arriscar imediatamente a definir e não pretender ou tentar a perfeição ou a precisão na determinação do conceito[....].”[33].

Portanto, para busca do que seja “Prudência” não nos arriscaremos definindo o que esta significa, mas os significados já estudados pela história da filosofia prática.

Em André Comte-Sponville, o conceito de Prudência mescla-se com a virtude no caso concreto de saber bem escolher:

[....]a prudência é a disposição que permite deliberar corretamente sobre o que é bom ou mau para o homem (não em si, mas no mundo tal como é, não em geral, mas em determinada situação) e agir em conseqüência, como convier. É o que poderíamos chamar de bom senso, mas que estaria a serviço de uma boa vontade. Ou de inteligência, mas que seria virtuosa.[34]

Já para Immanuel Kant a Prudência é uma lei pragmática que visa a felicidade e é distinta da Moral propriamente dita, pois essa seria a lei dos costumes e não da prudência:

Designo por lei pragmática (regra de prudência) a lei prática que tem por motivo a felicidade; e por moral (ou lei dos costumes), se existe alguma, a lei que não tem outro móbil que não seja indicar-nos como podemos tornar-nos dignos da felicidade. A primeira funda-se em princípios empíricos; pois, a não ser pela experiência, não posso saber quais são as inclinações que querem ser satisfeitas, nem quais são as causas naturais que podem operar essa satisfação. A segunda faz abstração de inclinações e meios naturais de as satisfazer e considera apenas a liberdade de um ser racional em geral e as condições necessárias pelas quais somente essa liberdade concorda, segundo princípios, com a distribuição da felicidade e, por conseqüência, pode pelo menos repousar em simples idéias da razão pura e ser conhecida a priori.[35]

A afirmação da interpretação como ato de criação, mas não de qualquer criação. Um ato de esforço pela melhor produção judicial dentro dos limites da realidade do caso concreto, faz-se retornar à “Curva” de avaliação do direito aplicado pelo juiz:da norma individual aos valores que incidem sobre ela.

Essa é a forma de admitir uma auto-reflexão judicial sobre um prisma não exclusivamente jurídico como era defendido no formalismo de Hans Kelsen, mas ético jurídico, trazendo à tona a aceitação de valores que devem ser reconhecidos pelo intérprete. Immanuel Kant defende a existência de “Categorias Universais” e a aceitação da tese axiológica do agir judicial deveria, segundo ele, ser norteada por esses valores:

Tratar a tese axiológica do agir judicial é trazer à tona a discussão de valores universalmente válidos de forma categórica. A busca de atos que sejam buscados no esforço máximo de responder a esta máxima: “Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com a uma lei universal.[36]

Este pensar a prática judicial como orientada por valores de cunho universalista não escapa do próprio espírito revolucionário que permeou a mais importante das revoluções burguesas: a francesa, culminando com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de dezembro de 1948. Para Paulo Bonavides este último manifesto foi uma “[....] carta de alforria para os povos que a subscreveram, após a guerra de extermínio dos anos 30 e 40 [....].”[37].

A partir deste momento ressurge o discurso sobre valores universais, sobre normas de convivência humanitária e democráticas devidas pelo Estado aos cidadãos.

O Princípio da Proporcionalidade, de aceitação quase universal, é uma prova de tudo que vem sendo afirmado até aqui. Uma norma que independe de texto legal prevendo-a. Uma norma valorativa, de “textura aberta”. Uma norma de auxílio para momentos de tensão em que o Direito é submetido à zonas de incertezas sobre como tomar a melhor decisão.

Willis Santiago bem explica a importância deste princípio para abertura do Direito não apenas à lógica:

Não há princípio do qual se possa pretender seja acatado de forma absoluta [....] e o Princípio da Proporcionalidade corrobora isto: Daí se dizer que há uma necessidade lógica e, até, axiológica, de postular um ‘princípio da proporcionalidade’ para que se possa respeitar normas, como os princípios[....].[38] Grifo Nosso.

Essa necessidade lógica e axiológica reclama do jurista não apenas conhecimentos legais, mas axiomáticos. Para estes momentos de tensão os doutrinadores também denominam o Princípio da Proporcionalidade como Lei de Sopesamento (Robert Alexy) ou até como Princípio da Concordância Prática (Konrad Hesse): “Nesse sentido, o modelo de sopesamento aqui defendido é equivalente ao assim chamado princípio da concordância prática.”[39].

Em casos em que se está diante de ausência de leis ou em conflitos de princípios ou regras opostos, a crise pede mais que normas, reclama mais que os medos de assumir compromisso com os valores, pede Prudência e esta não pode confundir-se com medo ou covardia:

Tanto no medo quanto na prudência existe uma evitação. Na prudência,a evitação pode assumir a forma de cuidado, enquanto pretende criar ou ter controle da situação, à medida que, no medo, a evitação é uma sinalização da impotência do sujeito diante de um obstáculo real. Na prudência, imagina-se que o risco está sob controle; no medo, não. Com freqüência, a prudência é a sublimação do medo. É mais nobre ser prudente que medroso.[40]

Não se está considerando a utilização da Prudência como resposta para uma decisão perfeita, já que o homem também não o é, mas para uma reorientação da discussão a partir das pré-compreensões da intérprete:

Aceito esse ponto de partida, de que o ser do intérprete – como o de todo homem - , é o seu existir ou o seu modo de estar no mundo, um dado de realidade que limita a nossa cosmovisão, tornando-a necessariamente parcial, porque restrita à nossa perspectiva no momento da compreensão, se isso for verdadeiro, e parece que o seja em linha de princípio, acreditamos que uma análise realista do processo de interpretação e aplicação do direito – como, de resto, do processo cognitivo em geral – exige uma reflexão sobre os elementos ou fatores constitutivos da personalidade e do modo de pensar dos sujeitos de interpretação, que são pessoas de carne e osso, historicamente situadas e datadas, cuja realidade radical, que tudo condiciona, é a sua própria vida, tal como é concretamente vivida em qualquer lugar e em cada hora.[41] Grifo Nosso.

Uma doutrina lúcida deve perceber na subjetividade da aplicação dos Direitos Fundamentais não um problema em si, mas um fato que deve ser trabalhado com vistas ao máximo esmero:

Devido as imperfeições do ser humano não há como alcançar uma decisão perfeita, mas o caminho da exigência, da prudência e reflexão apurada do agir judicial pode levar ao progresso das decisões: “É dever do ser humano lutar por essa perfeição, mas não a alcançar (nesta vida), e sua conformação a esse dever pode, por conseguinte, consistir apenas no progresso contínuo.[42]

Alguns chamam esta concepção do Direito que afirma a necessária  ligação entre Direito e Valor como “Normativista da Moral”:

[....] hoje o Direito não é visto tão só como ciência, mas, fundamentalmente, como prudência, como arte prudencial que está inter-relacionada [....] com as demais instâncias componentes do todo social, notadamente da Ética. [....] A Concepção normativista da moral que impera na modernidade está ligada à concepção normativista do direito como um conjunto de regras. A concepção clássica da moral, fundada na prudência onde a regra não ocupa o papel central.[43]

O certo é que esta concepção auxilia na normatividade e cogência de uma interpretação que considere a importância de uma conservação de um mínimo ético irrenunciável não apenas nas leis, mas nas normas (produtos da atividade judicial). E o elo mais evidente desta ligação entre norma e valor está na positivação dos Direitos Humanos:

Os direitos humanos, por sua vez, têm um denominador comum: a dignidade humana. A dignidade humana é um elemento nuclear da ética e do Direito.[44]

Seja a Dignidade da Pessoa Humana, O Princípio da Proporcionalidade ou outros Direitos Fundamentais de carga axiológica aberta, a vida do Direito pede sensibilidade e o ato decisório, principalmente quando em jogo Direitos Fundamentais reclamamais que uma justificação legalista, ela requer Prudência, “Sentimento Jurídico”.

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Sobre a autora
Ileide Sampaio de Sousa

Mestra em Ordem Jurídico Constitucional pela Universidade federal do Ceará - UFC; <br>Pós graduada em Direito Processual pela Fa7 - bolsista integral;<br>Professora Universitária (Direito Constitucional; Filosofia do Direito; Hermenêutica Jurídica; Ciência Política e Teoria do Estado); e <br>Advogada.<br>e-mail: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Ileide Sampaio. O sentimento jurídico e a prudência como expressões de uma práxis valorativa de implementação dos direitos fundamentais.. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3593, 3 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24360. Acesso em: 28 mar. 2024.

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