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A síndrome do bebê sacudido e o silêncio dos inocentes

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10/09/2013 às 08:20
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Incomodado pelo choro da criança, o pai sacode violentamente o bebê, pensando que, com isso, fará o choro cessar. Na verdade, acaba causando o mal conhecido como síndrome do bebê sacudido. Analisam-se aqui as diversas consequências jurídicas do fato.

1. Introdução

Ao longo da minha vida acadêmica, percebo que, algumas vezes, eu me lanço a buscar instigantes temas de pesquisa, empreitada esta que nem sempre é fácil, exigindo esforço intelectual e uma boa dose de paciência.

Mas, outras tantas vezes, determinados assuntos simplesmente chegam a mim, como uma pequenina folha é trazida pelo vento de outono.

E eu ainda sinto esta brisa outonal colocando no colo da minha reflexão acadêmica um dos assuntos mais complexos e trágicos com que já me deparei.

Complexo, por exigir do jurista que saia dos limites do Direito, para ingressar, com a humilde cautela do viajante em terras estrangeiras, na Medicina.

Trágico, pois, após constatar a morte de inocentes, camuflada pelo manto do silêncio, concluir haver uma perigosa omissão de enfrentamento específico do tema, aliada à falta de estudos jurídicos especializados.

E, aqui, confesso a minha própria ignorância.

Desconhecia por completo o significado, as repercussões e os efeitos da Síndrome do Bebê Sacudido, até o dia em que o Professor JOSÉ ROBERTO TUDE MELO (MD, PhD), referência nacional em Neurocirurgia Pediátrica, pediu o meu auxílio em uma vasta pesquisa que ele empreenderia, inclusive em nível internacional, a respeito do assunto.

Na medida em que ele discorria a respeito desta grave forma de abuso infantil, eu me quedava paralisado, por perceber que centenas de crianças brasileiras morreriam anualmente e outro número muito maior de pequenos carregariam, por toda a vida, gravíssimas sequelas como uma paralisia cerebral ou um severo retardo mental.

E, talvez, a verdade escondida por trás desta tragédia jamais viesse à tona, porquanto os protagonistas do mal, em geral, seriam os seus próprios pais.


2. A Síndrome do Bebê Sacudido (Shaken Baby Syndrome)

O Professor TUDE MELO descreve os passos dados pela Medicina, no Brasil e no mundo, até o reconhecimento da Síndrome do Bebê Sacudido, espécie de Trauma de Crânio Não-Acidental (TCNA)[1]:

Em 1946, o pediatra americano John Caffey foi o primeiro a descrever seis casos de crianças com fraturas em ossos longos associadas a hematomas subdurais (HSD), sem sinais externos de trauma, porém sem conseguir relacionar estes fatos a uma agressão física intencional contra a criança. Em 1962, Henry Kempe descreveu a síndrome da criança espancada (“batteredchildsyndrome”), sendo este o primeiro artigo a discursar sobre o tema. Posteriormente em 1971, o neurocirurgião britânico Norman Guthkelchdescreveu prováveis lesões intracranianas em bebês que, curiosamente, não apresentavam sinais externos de trauma, mas ainda sem caracterizar como agressão física intencional.

Com o avançar das buscas por este duvidoso e cruel mecanismo de trauma, a primeira descrição clássica da síndrome da criança sacudida foi feita em 1972 pelo mesmo John Caffey. No Brasil, ainda no ano de 1995, a síndrome do bebê sacudido era referida em publicações médicas como casos isolados (relatos de caso), mostrando a dificuldade em catalogar os casos no País e consequentemente criar protocolos para diagnóstico e tratamento destas crianças. O traumatismo craniano não acidental (TCNA) é considerado como um desafio para a toda a equipe de saúde, desde a definição do diagnóstico, escolha do tratamento, abordagem do assunto com os pais e decisão quanto à comunicação ao conselho tutelar.[2]

Incomodado pelo choro da criança, o pai sacode violentamente o bebê, pensando que, com isso, fará o choro cessar.

Infelizmente, ele nem imagina que este choro poderá calar para sempre.

A Síndrome do Bebê Sacudido (Shaken ou ShakingBaby Syndrome) – cujas vítimas são, principalmente, crianças até dois anos de idade - é causada pela aceleração, desaceleração e rotação bruscas do crânio, ou seja, pela violenta movimentação da criança, resultando em lesões intracranianas, combinadas ou não àshemorragias subaracnóideas e contusões cerebrais, além de hemorragias retinianas[3].

Impressiona, neste, ponto, as conclusões do Professor TUDE MELO, no que tange ao grau de letalidade do trauma, e, ainda, aos seus principais responsáveis:

Nos casos mais graves de maus tratos, o trauma craniano pode estar presente em até 80% das vezes, sendo o principal determinante de óbito nestas vítimas.

(...)

O TCNA ocorre geralmente em crianças menores de 02 anos de idade, predominando no primeiro ano de vida, no sexo masculino, em alguns casos relacionado a bebês prematuros ou de baixo peso, gemelaresou com comprometimento e atrasos do desenvolvimento neurológico. Quanto aos agressores, destaca-se a idade materna associada ao estado civil (mães ou pais muito jovens, sobretudo mães solteiras), baixo nível educacional (baixa escolaridade e baixo nível sócio-econômico-cultural), instabilidade familiar, gravidezes múltiplas e família com muitos integrantes morando na mesma casa. Outros dados que parecem estar relacionados são história gestacional de procura tardia ao acompanhamento pré-natal (provavelmente relacionado à negligencia), assim como tabagismo durante a gestação, alcoolismo e uso de drogas ou seja, fatores desestabilizadores do equilíbrio familiar.

O TCNA é reconhecido como um trauma domiciliar, cuja suspeita quanto ao agressor, em ordem decrescente de probabilidade, revolve entre o pai da criança ou o namorado da mãe (ou outra figura paternal, geralmente quando esta mãe é solteira), babás (geralmente do sexo feminino), às próprias mães destas crianças e pessoas de fora do ambiente residencial. Desconhece-se as características epidemiológicas do TCNA em nosso País, considerando tanto a busca em literatura médica quanto jurídica.

Aproximadamente 50% dos sobreviventes desta modalidade de trauma (em algumas casuísticas são descritos valores superiores) permanecem com sequelas neurológicas ou visuais permanentes, por vezes incapacitantes, incluindoos distúrbios de aprendizado e déficits cognitivos. As taxas de óbito variam entre 15-35%.

Nota-se, portanto, que se trata de um mal doméstico.

Perpetrado, em geral, por aqueles que integram o próprio núcleo de afeto da vítima (pais, padrasto, madrasta, babá), o que torna ainda mais sensível a ferida do dano.


3. Plano Administrativo de Enfrentamento da Síndrome

A par de haver envidado intensos esforços, não logrei êxito em encontrar, até a conclusão da pesquisa que embasou este artigo, um programa federal específico para a prevenção e combate à Síndrome do Bebê Sacudido[4].

Creio não haver.

E se houver, a divulgação é insuficiente.

O Ministério da Saúde, segundo restou apurado, possui uma orientação geral dirigida a gestores e profissionais de saúde, intitulada Linha de Cuidado para Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violências[5], a qual trata do tema ao lado de outras formas de abuso, como a Síndrome de Munchausen por Procuração[6].

Vale dizer, a par da importância desta orientação geral, não se trata de uma abordagem com enfrentamento específico.[7]


4. Plano Jurídico de Enfrentamento da Síndrome

O plano jurídico comporta a seguinte divisão metodológica:

a) PerspectivaCível

b) PerspectivaCriminal

4.1. Perspectiva Cível[8]

4.1.1. Perda do Poder Familiar

Como já dito, o sujeito ativo da Síndrome pode ser membro da própria família da vítima ou não.

Ainda que não haja, no Brasil, um controle estatístico oficial a respeito desta grave forma de abuso, a experiência médica aponta que, em grande parte dos casos, os próprios pais são os protagonistas do mal.

E, quando assim ocorre, a repercussão jurídico-civil do ato ganha contornos mais graves e profundos, na medida em que o ilícito é perpetrado por aqueles que exercem o “poder familiar” sobre os menores.

Em outras palavras, todo pai e mãe exercem, em face dos seus filhos – até que completem a maioridade civil (aos 18 anos) ou se emancipem – um conjunto de poderes, direitos e deveres, com o propósito de educá-los e conduzir a sua formação moral, psíquica e social.

Ora, o cometimento de atos que caracterizem o abuso decorrente da Síndrome estudada, poderá subverter, por completo, a lógica do sistema, transformando os supremos protetores destes menores em delinquentes passíveis de punição.

E, nesse contexto, é forçoso convir que, no plano civil, uma das consequências do abuso é, exatamente, a destituição do próprio poder familiar.

Explico.

O Código Civil de 1916dispunha, em seu art. 379, que os filhos legítimos, ou legitimados, os legalmente reconhecidos e os adotivos estariam sujeitos ao pátrio poder, enquanto menores.

O Código de 2002, aperfeiçoando a matéria, rompeu com a tradição machista arraigada na dicção anterior, para consagrar a expressão poder familiar.

Claro está, todavia, que de nada adiantaria um aprimoramento terminológico desacompanhado da necessária evolução cultural.

Por isso, mais importante do que o aperfeiçoamento linguístico, é a real percepção, imposta aos pais e mães deste País, no sentido da importância jurídica, moral e espiritual que a sua autoridade parental ostenta, em face dos seus filhos, enquanto menores.

Em conclusão, o poder familiar consisteno plexo de direitos e obrigações reconhecidos aos pais, em razão e nos limites da autoridade parental que exercem em face dos seus filhos, enquanto menores e incapazes.

Note-se, desde já, que esta profunda forma de autoridade familiar somente é exercida enquanto os filhos ainda forem menores e não atingirem a plena capacidade civil[9].

Durante o casamento e a união estável, a teor do que dispõe o caput do art. 1631, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.

Por óbvio, em outras formas de arranjo familiar, havendo filhos, o poder familiar também se fará presente, nessa mesma linha de intelecção.

Vale ainda observar, na perspectiva constitucional do princípio da isonomia, não haver superioridade ou prevalência do homem, em detrimento da mulher, não importando também, o estado civil de quem exerce a autoridade parental.[10]

E, segundo o mesmo dispositivo, divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo, à luz da regra maior da inafastabilidade da jurisdição.

Neste ponto, anoto que o Código Civil cuidou de disciplinar o conteúdo dos poderes conferidos aos pais, no exercício desta autoridade parental, conforme se verifica do seu art. 1.634:

Art. 1.634. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

I - dirigir-lhes a criação e educação;

II - tê-los em sua companhia e guarda;

III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;

IV - nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;

V - representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;

VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;

VII - exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.

Os seis primeiros incisos são de fácil intelecção e reforçam a linha de entendimento segundo a qual, posto o poder familiar traduza uma prerrogativa dos pais, a sua existência somente é justificada sob a ótica de proteção do interesse existencial do próprio menor.

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No que tange, outrossim, ao inc. VII, pondera, com o equilíbrio de sempre, PAULO LÔBO:

Tenho por incompatível com a Constituição, principalmente em relação ao princípio da dignidade da pessoa humana (arts. 1.º, III, e 227), a exploração da vulnerabilidade dos filhos menores para submetê-los a "serviços próprios de sua idade e condição", além de consistir em abuso (art. 227, § 4.º). Essa regra surgiu em contexto histórico diferente, no qual a família era considerada, também, unidade produtiva e era tolerada pela sociedade a utilização dos filhos menores em trabalhos não remunerados, com fins econômicos. A interpretação em conformidade com a Constituição apenas autoriza aplicá-la em situações de colaboração nos serviços domésticos, sem fins econômicos, e desde que não prejudique a formação e educação dos filhos.[11]

Observe-se que a Síndrome do Bebê Sacudido, como forma peculiar e grave de maustratos, viola, frontalmente, o inciso I do referido dispositivo, na medida em que o “ato de criar e educar”, cujo pressuposto básico é o afeto, encontra-se em polo diametralmente oposto ao da situação covarde de abuso.

E, aqui, um importante aspecto deve ser considerado.

Obviamente, a nefasta Síndrome repercutirá no âmbito do poder familiar, resultando em sua perda.

Vale dizer, pais que pratiquem esta modalidade de abuso poderão perder a autoridade sobre os filhos, ou, em linguagem mais simples e direta, o próprio poder familiar e a condição de pais.

Mas, neste ponto, à luz das normas em vigor, precisamos destacar a diferença existente entre “extinção” e “destituição” do poder familiar, ambas modalidades de “perda”.

A extinção do poder familiar pode se dar por causa não imputável (voluntariamente) a qualquer dos pais, à luz do art. 1.635:

a) pela morte dos pais ou do filho;

b) pela emancipação, nos termos do art. 5º, parágrafo único;

c) pela maioridade;

d) pela adoção.

Verificada qualquer dessas hipóteses, o poder familiar sobre o filho deixa de existir, não havendo, pois, nenhum caráter punitivo ou sancionatório.

No entanto, pode ocorrer que, em virtude de comportamentos graves, o juiz, por decisão fundamentada, no bojo de procedimento em que se garanta o contraditório[12], determine a destituição do poder familiar (art. 1.638).

Perderá, pois, por ato judicial, o poder familiar, o pai ou a mãe que:

a) castigar imoderadamente o filho;

b) deixar o filho em abandono;

c) praticar atos contrários à moral e aos bons costumes;

d) incidir, reiteradamente, em faltas autorizadoras da suspensão do poder familiar.

Trata-se, em tais casos, de uma verdadeira sanção civil, grave e de consequências profundas.

E, não é difícil concluir que, no caso da Síndrome do Bebê Sacudido, a destituição do poder familiar encontra amparo logo no inc. I do referido artigo, que prevê a punição em caso de pais que castiguem imoderadamente o filho.

É digno de nota, aliás, que esta sanção poderá ainda resultar de uma sentença penal condenatória, caso o fato haja sido objeto de processo criminal, nos termos do art. 92, II, do Código Penal Brasileiro.

Por fim, vale consignar que a destituição do poder familiar, nas hipóteses acima descritas, em se constatando a Síndrome do Bebê Sacudido, é medida excepcional, e que pressupõe o respeito à garantia do devido processo legal e da ampla defesa.

4.1.2. Responsabilidade Civil

A perpetração do ato abusivo também poderá resultar na imposição, ao infrator, do dever de indenizar, no âmbito da responsabilidade civil.

A responsabilidade civil, em linhas gerais,deriva da transgressão de uma norma jurídica preexistente, impondo, ao causador do dano, a consequente obrigação de indenizar.

São seus elementos:

a. conduta humana: que pode ser comissiva ou omissiva (positiva ou negativa);

b. dano: a violação a um interesse juridicamente tutelado, seja de natureza patrimonial ou extrapatrimonial;

c. nexo de causalidade: o necessário liame entre a conduta humana e o dano.

Além destes três elementos básicos, que são obrigatórios para a caracterização da responsabilidade civil em qualquer de suas modalidades, há de se lembrar do elemento anímico, a culpa, de caráter eventual, compreendida como a violação a um dever jurídico preexistente, notadamente de cuidado.

A culpa é compreendida, em nosso sentir, como um elemento “acidental ou eventual” da responsabilidade civil, em virtude de existir, também, a denominada “responsabilidade civil objetiva”, que dispensa a culpa para a sua caracterização (especialmente por ser baseada no risco da atividade, conforme o art. 927 do CC).

Nas relações de família, outrossim, considerando-se que os sujeitos envolvidos não estão exercendo qualquer atividade que implique, pela sua própria essência, risco a direito de outrem (no sentido do referido art. 927), a esmagadora maioria das situações fáticas demandará a prova do elemento “culpa”, a teor da regra geral definidora do ato ilícito, constante no art. 186 do CC.

E,também no caso do dano decorrente da Síndrome do Bebê Sacudido, pensamos que, além dos requisitos gerais acima mencionados – conduta humana, dano e nexo de causalidade -, também a culpa do infrator deverá restar demonstrada, para efeito de aferição da sua responsabilidade civil.

Trata-se, pois, de uma responsabilidade subjetiva, baseada na culpa ou no dolo do agente causador do dano.

E um importante aspecto deve ser considerado.

Note-se que nem sempre o agente terá agido dolosamente, ou seja, com a intenção de agredir.

Aliás, não é improvável que, por desconhecimento ou ignorância, um dos pais ou parente imagine estar “educando” um bebê ao sacudi-lo violentamente.

Em tal situação, posto o dolo (intenção) possa não estar configurado, é inequívoca a configuração da culpa, pela violação manifesta a um dever de cuidado e atenção, o que poderá, em tese, conduzir ao pagamento de uma indenização, no âmbito da responsabilidade civil, pelo dano sofrido, sem prejuízo de outras eventuais sanções civis ou, até mesmo, criminais.

Esta demanda poderá ser proposta pela própria vítima, após alcançar a maioridade civil, caso ainda não haja transcorrido o lapso prescricional; todavia, se, em razão do abuso ou por qualquer outra causa, for incapaz, o seu representante poderá ajuizar a demanda, desde que também seja respeitado o respectivo prazo prescricional para a formulação da pretensão indenizatória em juízo.

Este prazo prescricional (para se deduzir a pretensão indenizatória em juízo) contra o agressor é de três anos, a teor do art. 206, § 3º, V, do CC, e o seu início somente ocorrerá, tomando-se como referência caso análogo de indenização no âmbito da relação familiar, quando atingida a maioridade[13].

No caso do maior incapaz, o seu representante também deverá respeitar este prazo, sob pena de se criar uma possível e indesejada situação de imprescritibilidade[14].

Entendemos, vale acrescentar, por fim, que a competência para o processamento deste tipo de demanda, por estar inserida no âmbito das relações familiares, deve ser da respectiva Vara de Família.

Isso porque o que se vai discutir, muitas vezes, pressupõe o conhecimento – diríamos mais, a vivência – das complexidades inerentes aos conflitos familiares, sensibilidade esta que, normalmente, acaba sendo desenvolvida, pela especialização, nos magistrados atuantes neste tipo de Juízo.

Ademais, tecnicamente, trata-se de um aspecto da responsabilidade civil especificamente voltado à preservação do núcleo familiar e à integridade dos seus componentes, não justificando a sua inserção no âmbito de análise de uma Vara Cível.

4.2. Perspectiva Criminal[15]

Especialmente no âmbito penal, a Síndrome do Bebê Sacudido resulta em repercussões nítidas e de alto significado jurídico.

A par de não existir um enquadramento penal específico, segundo o Professor ANTÔNIO VIEIRA, a análise da tipicidade penal, na ausência de norma própria, será direcionada sempre por uma avaliação que permeará o desvalor da ação e, sobretudo, o desvalor do resultado, sem perder de vista o elemento subjetivo da conduta (intencionalidade da ação do autor do fato).

Em visão didática e objetiva, pois, no âmbito penal, teríamos o seguinte, seguindo as lições do criminalista citado, colaborador nesta pesquisa:

1. Se a ação for decorrente de abuso dos meios de correção ou disciplina e for praticada por quem tenha a criança sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino ou tratamento:

1.1.    não decorrendo dessa conduta nenhum resultado material mais danoso, mas mera exposição da vida ou da saúde a perigo, o fato se ajusta ao tipo penal descrito no art. 136, caput, do Código Penal (maus-tratos);

1.2.    Se dessa ação resultar lesão corporal grave, incide a causa especial de aumento prevista no §1º do art. 136 do CP;

1.3.    Se resultar morte, incide a causa especial de aumento prevista no §2º do art. 136 do CP;

2. Se o agente, pela característica de sua conduta, assume o risco de machucar ou tiver deliberada intenção de agredir e disso resultar lesão corporal, poderá se configurar:

2.1. lesão corporal leve, prevista no art. 129, caput, do CP;

2.2. lesão corporal grave, prevista no art. 129, §1º, do CP, caso resulte - incapacidade para as atividades habituais, por   mais de trinta dias, perigo de vida ou mesmo debilidade permanente da visão;

2.3. lesão corporal gravíssima, prevista no art. 129, §2º, do CP, caso resulte incapacidade permanente, doença incurável, perda da visão etc.

3. Se a intenção for a de machucar e, “preterintencionalmente”, sobrevier o resultado morte, a conduta poderá se   enquadrar no crime previsto no §3º do art. 129 do CP (há dolo no antecedente e culpa no consequente). 

4. Se o agente, pela característica de sua conduta, assume o risco de causar a  morte ou tiver deliberada intenção de  matar, a sua conduta ajustar-se-á ao tipo penal previsto no art. 121 do CP, podendo restar caracterizado o homicídio simples ou qualificado, sempre com a incidência da causa especial de aumento prevista na parte final do seu §4º. Se a  conduta se caracterizar pela assunção do risco do resultado morte e o óbito não ocorrer por circunstâncias alheias à vontade do agente, pode restar caracterizada a hipótese de crime tentado (art. 14, II, do CP).[16]

Para que reste caracterizada a hipótese de tortura (art. 1º da Lei 9.455/97), finalmente, a lei não exige propriamente a continuidade delitiva, mas devem estar caracterizadas as elementares do tipo “emprego de violência” e “intenso sofrimento físico”.

É dizer: toda a ação pode ter sido desenvolvida numa única oportunidade, mas se ocorreu de tal forma que causou o intenso sofrimento físico, o enquadramento jurídico-penal poderá ser o do crime de tortura.

Tudo dependerá da análise do julgador, que poderá, inclusive, caso não se convença acerca da concorrência dos elementos do dolo direto ou eventual, enquadrar, subsidiariamente, a conduta do agente em um eventual tipo culposo.

O fato é que a Síndrome não poderá ficar sem a resposta do Direito Penal.

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Sobre o autor
Pablo Stolze Gagliano

Juiz de Direito. Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Professor da Universidade Federal da Bahia. Co-autor do Manual de Direito Civil e do Novo Curso de Direito Civil (Ed. Saraiva).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GAGLIANO, Pablo Stolze. A síndrome do bebê sacudido e o silêncio dos inocentes. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3723, 10 set. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25251. Acesso em: 28 mar. 2024.

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