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Colisão de direitos fundamentais nas relações de família

12/10/2013 às 16:16
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No direito de família, três situações podem ser consideradas exemplares de colisão de direitos fundamentais, dentre os casos julgados pelo STF e pelo STJ: o do exame forçado de DNA, o da penhorabilidade do bem de família do fiador e os da filiação socioafetiva.

Sumário: 1. Direitos fundamentais e família; 2. Viragem para os princípios e a mudança social; 3. Aplicabilidade direta dos direitos fundamentais e dos princípios jurídicos entre particulares; 4. Colisão e os problemas decorrentes; 5. Superando a colisão; 6. Colisão com deveres fundamentais; 7. Casos exemplares; 8. Prevenindo a colisão: o papel do legislador

1. DIREITOS FUNDAMENTAIS E FAMÍLIA

            Os direitos fundamentais, entendidos como direitos humanos positivados nas constituições dos países, ou nos tratados e convenções internacionais que os países se obrigaram a respeitar, tiveram longa história de afirmação, principalmente durante o tumultuado século XX. Sua finalidade essencial era a garantia de um conjunto básico de direitos dos cidadãos que podiam e podem opô-los ao poder político, que tem o dever de não violá-los (dever de abstenção, ou dever negativo). Sua evolução fez despontar novas dimensões, que não foram cogitadas em sua configuração tradicional, notadamente os deveres positivos de prestação, imputáveis ao poder político e, para o objeto desta exposição, sua oponibilidade às pessoas exclusivamente privadas entre si, ou aplicabilidade nas relações privadas.

            A aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações meramente privadas desafia a argúcia dos juristas, pois, na maioria dos casos, provoca a colisão dos direitos fundamentais das pessoas em conflito. Esse problema não existia na formulação tradicional dos direitos fundamentais, porque apenas o cidadão é titular deles e o Estado não, figurando apenas como devedor de prestação negativa. Entre o titular de direitos fundamentais e o Estado não pode haver, em princípio, colisão. Entre titulares de direitos fundamentais, todavia, a colisão é inevitável, tornando exigentes os critérios de solução, diferentes dos anteriormente pensados e praticados, máxime em razão do uso de princípios normativos.

            No âmbito das relações de família, pautadas pela diretriz constitucional da igualdade entre cônjuges, companheiros, filhos e entidades familiares, não se pode pensar a simetria entre cidadão e poder político – referida por muitos doutrinadores -, e entre titular de direitos fundamentais hipossuficiente ou vulnerável e titular de direitos fundamentais portador de poder privado. Tendo desaparecido o poder marital e o pátrio poder, em nosso direito, não se pode mais identificar integrantes das entidades familiares como portadores de poderes privados, tutelados juridicamente. O poder familiar, que substituiu o pátrio poder, é muito mais serviço no melhor interesse dos filhos, do que propriamente poder; sua natureza é de autoridade reconhecida e legitimada, que existe em razão dos destinatários, porque não há mais relação de sujeição dos filhos em face dos pais. Tanto pais quanto filhos são sujeitos recíprocos de direitos e deveres, que ocorre, por exemplo, com o direito/dever à convivência, inclusive quando os pais se separam.

2. VIRAGEM PARA OS PRINCÍPIOS E A MUDANÇA SOCIAL

            A compreensão da força normativa própria dos princípios jurídicos, da sua superioridade hierárquica em relação às demais normas jurídicas e da sua peculiar estrutura, como modelo normativo aberto, têm constituído a contribuição relevante do direito brasileiro nessa matéria, tanto na doutrina quanto na corrente jurisprudência de nossos magistrados e tribunais, notadamente a partir do advento da Constituição de 1988. A viragem para os princípios resulta do comprometimento da aplicação do direito com a mudança social.

O significado mais importante dessa viragem é a aplicação direta e imediata dos princípios e demais normas constitucionais, quaisquer que sejam as relações privadas, particularmente de duas formas: a) quando inexistir norma infraconstitucional, o juiz extrairá da norma constitucional todo o conteúdo necessário para a resolução do conflito; b) quando a matéria for objeto de norma infraconstitucional, esta deverá ser interpretada em conformidade com as normas constitucionais aplicáveis. Portanto, as normas constitucionais sempre serão aplicadas em qualquer relação jurídica privada, seja integralmente, seja pela conformação das normas infraconstitucionais.

Os civilistas brasileiros, promotores do direito civil constitucional, nunca tiveram dúvidas sobre a força normativa da Constituição e dos princípios. Não faz sentido, na contemporaneidade, a discussão sobre se as normas constitucionais, principalmente de conteúdo indeterminado, como os princípios, dependem da interposição do legislador infraconstitucional para que possam produzir seus efeitos jurídicos. A fase das normas constitucionais meramente programáticas ficou para trás.

Ainda que não seja este o espaço para se discorrer sobre esses temas, amplamente discutidos no âmbito do direito constitucional e da teoria do direito, perfilhamos o entendimento de que as normas constitucionais, todas com força normativa própria, classificam-se em princípios e regras, distinguindo-se por seu conteúdo semântico e, consequentemente, pelo modo de incidência e aplicação. A regra indica suporte fático hipotético (ou hipótese de incidência) mais determinado e fechado, cuja concretização na realidade da vida leva à sua incidência, confirmando-a o intérprete mediante o meio tradicional da subsunção (exemplo na Constituição, art. 226, § 4º: “Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”; ou seja, toda vez que uma pessoa passar a conviver com um filho, seja ele biológico ou não biológico, ainda que sem a companhia de cônjuge ou companheiro, a regra incidirá para assegurar a constituição de uma entidade familiar; em outras palavras, a norma constitucional incidirá sobre esse suporte fático concreto e o converterá no fato jurídico por ela previsto, que passará a produzir os efeitos jurídicos por ela tutelados).

O princípio, por seu turno, indica suporte fático hipotético necessariamente indeterminado e aberto, dependendo a incidência dele da mediação concretizadora do intérprete, por sua vez orientado pela regra instrumental da equidade, entendida segunda formulação grega clássica, sempre atual, de justiça do caso concreto. Tome-se o exemplo do princípio da dignidade da pessoa humana, referido expressamente no § 7º do art. 226 da Constituição: o casal é livre para escolher seu planejamento familiar, mas deve fazê-lo em obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana, cuja observância confirmará o intérprete apenas em cada situação concreta, de acordo com a equidade, que leva em conta a ponderação dos interesses legítimos e valores adotados pela comunidade em geral. Outro exemplo é o princípio da igualdade entre cônjuges e entre filhos de qualquer origem, estabelecido nos arts. 226 e 227 da CF, que representou verdadeira revolução no direito de família, consequentemente revogando a legislação civil anterior. Essa orientação restou dominante na jurisprudência dos tribunais, de 1988 até 2003, quando entrou em vigor o novo Código Civil. Se prevalecesse a tese tradicional da conservação da legislação anterior até que a norma constitucional fosse regulamentada por nova legislação infraconstitucional, então não se teria emprestado força normativa real à Constituição, que restaria com efeito meramente simbólico, permanecendo as desigualdades jurídicas, nesse período.

Notou-se que as forças vivas da sociedade influíram efetivamente nas opções do constituinte de 1988, muito mais que na elaboração de códigos, cuja natureza técnica inibe a participação até mesmo dos parlamentares. Por essa razão, a Constituição, além de ser a norma hierarquicamente superior a todas as outras, determinante do sentido do ordenamento jurídico, absorveu de fato os valores que a sociedade conseguiu veicular, para servir de fundamento ou base à organização social. Esses valores foram vertidos em princípios ou regras que colorem o direito como um todo.

Como se vê, os princípios não oferecem solução única, segundo o modelo das regras. Sua força radica nessa aparente fragilidade, pois, sem mudança ou revogação de normas jurídicas, permitem adaptação do direito à evolução dos valores da sociedade. Com efeito, o mesmo princípio, observando-se o catálogo das decisões nos casos concretos, em cada momento histórico, vai tendo seu conteúdo amoldado, em permanente processo de adaptação e transformação. A estabilidade jurídica não sai comprometida, uma vez que esse processo de adaptação contínua evita a obsolescência tão frequente das regras jurídicas, ante o advento de novos valores sociais.

Os princípios constitucionais são expressos ou implícitos. Estes últimos podem derivar da interpretação do sistema constitucional adotado ou podem brotar da interpretação harmonizadora de normas constitucionais específicas (por exemplo, o princípio da afetividade). No Capítulo VII do Título VIII da Constituição há ambas as espécies, particularmente pela especificação dos princípios mais gerais às peculiaridades das relações de família.

O conceito de princípio constitucional não se confunde com o de “princípio geral de direito” empregado pela Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. O art. 4º dessa lei, como sabemos, estabelece a regra de non liquet, proibindo o juiz de não julgar quando a lei for omissa, determinando que, se não houver costumes, devem ser aplicados os princípios gerais de direito. Estes teriam, consequentemente, função supletiva, ou seja, primeiro a lei, depois os costumes, e por fim os princípios, como normas de clausura ou de completude do sistema jurídico. Ao contrário, os princípios constitucionais explícitos ou implícitos não são supletivos. São inícios, pontos de partida, fundamentos que informam e conformam a lei. A operação hermenêutica que estava invertida foi devidamente reposicionada: em primeiro lugar o princípio constitucional, depois a lei fundamentada nele.

A opção do Código Civil de 2002 pelos princípios realimentou os argumentos contrários dos tradicionalistas, principalmente quanto ao receio do chamado “ativismo judicial” dos magistrados. Esses receios e riscos são injustificáveis, pois os juízes brasileiros estão lidando razoavelmente com os modelos abertos de interpretação, que incluem não apenas os princípios, mas as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados. São, por outro lado, ponderável preço a pagar pela constante adaptação do direito às mudanças sociais, que a ductilidade dos princípios permite alcançar com mais eficiência, em virtude, exatamente, do que é considerado problemático pelos críticos, ou seja, a indeterminação de seus conteúdos.

3. APLICABILIDADE DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E DOS PRINCÍPIOS JURÍDICOS ENTRE PARTICULARES

Na Alemanha, durante a segunda metade do século XX, indagou-se sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, se estes seriam oponíveis por um particular diretamente a outro particular (teoria da Drittwirkung, correspondente a “eficácia em relação a terceiros”). A tradição dos direitos fundamentais reduziu-os à oponibilidade de um particular ao Estado, tendo-os como destinatário direto apenas o Estado e não outro particular, dentro da concepção das liberdades públicas. Várias correntes se formaram, entendendo: a) que não seria possível estender a eficácia dos direitos fundamentais a terceiros particulares, restringindo-se sua oponibilidade ao Estado; b) que a eficácia seria sempre mediata e indireta, tese que terminou por prevalecer na Alemanha; c) que seria possível a extensão, com a eficácia imediata, mas indireta, devendo a pretensão ser deduzida contra o Estado, em virtude dos deveres deste de proteção dos direitos fundamentais do particular, em face da violação por outro particular; c) que seria possível a pretensão de um particular contra outro, de modo direto e imediato, sem a mediação ou interposição do Estado.

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No Brasil, não há dúvida da aplicabilidade imediata e direta dos direitos fundamentais, em virtude, principalmente, da ocorrência de norma expressa — inexistente na Constituição alemã — na Constituição de 1988, assim disposta (art. 5º, § 1º): “As normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais abrange não apenas as liberdades públicas em face do Estado, mas igualmente as relações jurídicas entretecidas entre os particulares, pois a Constituição não faz qualquer restrição. O sentido de aplicação imediata inclui a aplicação direta, razão por que não depende de interposição do Estado, que não é necessariamente parte, quando a violação de direito fundamental for imputada a particular contra particular.

Respeitando as instigantes discussões havidas no direito europeu, temos de concluir que as soluções alvitradas não servem para o direito brasileiro. A doutrina brasileira do direito civil constitucional construiu caminho próprio, no rumo da aplicabilidade direta e imediata das normas constitucionais, nas duas modalidades acima indicadas, sem se impressionar com as interferências políticas, ideológicas e econômicas do refluxo do Estado de bem-estar social na Europa, nos países em que as demandas sociais encontram-se razoavelmente satisfeitas e que foram beneficiários diretos da globalização econômica.

Em razão da abrangência da norma constitucional brasileira, não vemos como aproveitável a discussão, alimentada na doutrina, em torno da denominada eficácia externa dos direitos fundamentais, oriunda principalmente do enunciado do art. 1º, 3, da Constituição alemã, o qual prevê que os direitos fundamentais “vinculam, como direito diretamente aplicável, os poderes legislativo, executivo e judicial”, parecendo limitar ou impedir sua aplicabilidade direta entre os particulares. Daí a tendência, entre os juristas alemães, de entender que entre os particulares a eficácia dos direitos fundamentais é indireta, dependente da interposição do Estado. As correntes que propugnam a aplicabilidade indireta, ou seja, que os destinatários diretos dos direitos fundamentais são apenas os poderes públicos, são fortemente influenciadas pelo ideário liberal de que a função da Constituição é controlar o Estado e não as relações privadas, o que nega a própria natureza do Estado social.

A aplicabilidade direta dos princípios e dos direitos fundamentais nas relações privadas é uma experiência bem-sucedida na jurisprudência dos tribunais brasileiros, desde o advento da CF de 1988. A rica casuística consolidou esse entendimento. Os tribunais superiores, notadamente o STJ, também têm reunido um conjunto de decisões que permitem entrever a franca adoção da aplicabilidade direta e imediata, com destaque para o princípio da dignidade da pessoa humana.

A nossa Corte Constitucional (STF) não faltou ao enfrentamento do tema, em algumas decisões paradigmáticas, ainda que não fundamentadas explicitamente na doutrina da aplicabilidade direta dos direitos fundamentais. Curiosamente, algumas estão contidas em processos criminais — habeas corpus —, como a relativa à garantia ao cidadão de não se submeter, contra sua vontade, a exame de DNA (HC 71373). Nesse caso, julgado em 1994, oriundo de ação de investigação de paternidade, apreciou-se decisão judicial de se levar “debaixo de varas” o réu ao laboratório, para dele se extrair forçadamente material genético.

Mas, a primeira decisão do STF em que a doutrina da aplicabilidade direta aflorou de modo explícito e serviu para fundamentá-la foi o julgamento do RE 201819, em 2005, no caso de exclusão de associado da União Brasileira dos Compositores, vinculada ao ECAD, tendo a maioria do tribunal entendido que a liberdade da associação — o estatuto previa a hipótese de exclusão — deve respeitar as garantias constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa. A minoria entendia que a matéria não tinha repercussão constitucional e deveria ser resolvida a partir das regras do estatuto social e da legislação civil em vigor. Decidiu o Tribunal que “as violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados na Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à prestação dos particulares em face dos poderes privados” e que os princípios constitucionais são limites à autonomia privada. 

4. COLISÃO E OS PROBLEMAS DECORRENTES

            A colisão dos direitos fundamentais, nas relações privadas, se dá de vários modos, mas elegemos três problemas como mais relevantes:

1º problema: A aplicabilidade direta dos princípios e direitos fundamentais pode ocorrer quando não houver desigualdade de poderes entre os particulares, ou apenas quando despontar um poder privado hegemônico (familiar, social, econômico, cultural)? Esse tema tem sido constantemente debatido na doutrina nacional e estrangeira. Entendemos que não se pode adotar uma restrição que a CF não faz. Essa é a correta orientação do STF, como se observa no caso do DNA referido. Em confronto estavam duas supostas filhas biológicas, em investigação de paternidade, e um suposto pai, portanto partes com poderes sociais presumivelmente iguais. Como salientamos, nas entidades familiares atuais, a relação jurídica de poder/sujeição entre seus integrantes não tem acolhida na Constituição e no direito infraconstitucional; os poderes de fato são repelidos pelo direito, inclusive com imposição de penas civis e penais.

2º problema: Quais os critérios para afastar a incidência dos princípios? Não há padrão satisfatório, o que leva à crítica do eventual componente arbitrário do julgador. No RE 215984, o STF entendeu que a publicação não consentida de fotografia de uma conhecida artista de televisão viola os princípios constitucionais de garantia da intimidade e da imagem, facultando a indenização por dano moral. Mas, no AI-AgR 220459-RJ, o STF não viu ofensa aos princípios da intimidade, da vida privada, da honra, da vedação de tratamento degradante, na revista pessoal das operárias em indústria de roupas íntimas, porque seria feita por amostragem.

3º problema: Há hierarquia entre princípios, de modo a se estabelecer prima facie qual o que prevalece na hipótese de colisão? O entendimento dominante na doutrina brasileira é de que não há hierarquia normativa entre os princípios, inclusive quando o confronto se der com os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Sustenta-se, todavia, que subsiste uma espécie de hierarquia axiológica, que se extrai do caso concreto. Sabe-se que o conteúdo do princípio apenas emerge de cada caso, dando-se nova configuração à velha lição dos antigos greco-romanos da submissão do intérprete à equidade, entendida como justiça do caso concreto. Assim, não há, prima facie, prevalência de qualquer princípio sobre outro.

Os princípios podem estar em aparente colisão dentro da própria legislação. Na Constituição — que é fruto de composição de ideologias conflitantes — ocorre colisão de princípios ou entre princípios e regras, a exemplo do princípio da igualdade entre as entidades familiares, no caput do art. 226 e a parte final do § 3º desse artigo, que estabelece dever o legislador facilitar a conversão da união estável em casamento (regra da facilitação), acrescentado por forças conservadoras na Constituinte, que pretenderam privilegiar o casamento. A regra do § 3º do artigo 226 da Constituição não impõe requisito para que se considere existente união estável ou que subordine sua validade ou eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para que remova os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem casar-se, se quiserem, a exemplo da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros, apresenta-se como norma de indução. Contudo, para os que desejarem permanecer em união estável, a tutela constitucional é completa, segundo o princípio de igualdade que se conferiu a todas as entidades familiares. Não pode o legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a união estável, pois facilitar uma situação não significa dificultar outra.

Nessa hipótese, é tarefa do intérprete a superação da antinomia, harmonizando-os em enunciado conjunto. No exemplo dado, a interpretação harmônica entre princípio e regra que se impõe é: o casamento e a união estável são entidades familiares diferentes porém iguais em direitos e deveres entre cônjuges e companheiros, tendo estes a liberdade de converter sua união em casamento, para o que o legislador deve facilitar o exercício desse direito. Se há solução, então a antinomia é aparente, ou seja, não há antinomia, porque os princípios ou o princípio e a regra hão de ser interpretados e aplicados de forma harmônica e integrada.

5. SUPERANDO A COLISÃO

Em qualquer situação de colisão de direitos fundamentais entre os particulares, o intérprete ou aplicador valer-se-á da ponderação entre os princípios concorrentes, definindo-se por aquele que, na situação concreta e ante as circunstâncias que a cercam, deve ter um peso maior, o que fundamentará a decisão, longe de qualquer escolha proveniente de prévio juízo de valor subjetivo.

A “lei da ponderação”, segundo Robert Alexy, se enuncia assim: “quanto mais alto é o grau do não cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro”. A ponderação é realizada em três passos: o primeiro é a comprovação do grau de não cumprimento ou de prejuízo de um princípio; o segundo é a comprovação do cumprimento do princípio em sentido contrário; o terceiro é a comprovação de que o cumprimento do princípio em sentido contrário justifica o prejuízo ou não cumprimento do outro princípio.

Situação recorrente da necessidade de ponderação é a colisão entre direito à informação e direito à intimidade e à honra, que provocam reflexos nas pessoas ofendidas e em seus familiares. Nas ocasiões em que tem sido provocado a decidir, o STF tem conferido maior peso à informação, ainda que a intimidade e a honra fiquem comprometidas. Texto jornalístico reproduziu trecho de afirmação gravada que acusava presidente de tribunal de mau uso de verbas públicas, nepotismo e tráfico de influência. A decisão recorrida condenou o órgão de imprensa em danos morais, com fundamento na inviolabilidade da honra, da intimidade e da imagem (art. 5º, X, da CF). Todavia, o STF (RE 208685-1) reformou a decisão por entender que, no caso, a notícia reproduziu denúncia encaminhada ao tribunal superior, e que “a colisão será solucionada levando-se em conta o peso ou a importância relativa de cada um. A solução, portanto, não pode deixar de lado os conhecidos princípios da razoabilidade e da ponderação dos bens envolvidos. Na espécie, o dano moral pretendido pelo recorrido somente se justificaria se positivado o abuso do direito de informar”.

O que importa é que nenhum direito fundamental é maior que o outro, quando seus titulares se encontram em situação de colisão. Nem o direito fundamental, nem o princípio que o tutela. Daí a dificuldade da solução do conflito. No modelo tradicional de subsunção, verifica-se simplesmente se a situação concreta corresponde à hipótese normativa; em se verificando a correspondência, a norma, a única norma, incide e lhe imprime as consequências previstas. Duas normas jurídicas, pelo modelo da subsunção, não podem colidir: é uma ou outra. A única norma é ou não a matriz da subsunção da situação concreta: é o tudo ou nada.

Os direitos fundamentais têm seu destino vinculado, na quase totalidade das hipóteses, aos princípios, para os quais o modelo da subsunção é inadequado. São poucas as regras jurídicas constitucionais – por sua natureza, são dotadas de conteúdo determinado – que tutelam diretamente os direitos fundamentais. Veja-se o exemplo do art. 226 da Constituição. O caput encerra o princípio implícito da igualdade de direitos e deveres das entidades familiares. O § 5º consolida o princípio explícito da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges. O § 6º, com a redação dada pela EC-66/2010, é regra que assegura o direito fundamental dos cônjuges de se divorciarem sem requisitos objetivos ou subjetivos prévios.

Ocorre que os direitos fundamentais dificilmente encerram-se em regras. Estas se abrem em interlocuções com os princípios, que lhe dão densidade e delimitam seu alcance. No exemplo do § 6º do art. 226 da Constituição, o breve enunciado da regra estabelece que os cônjuges são livres para desconstituírem o casamento (princípio da liberdade ou da autodeterminação), o que afasta a consequência que havia no direito anterior de responsabilidade pela culpa dessa desconstituição. Apenas se lhe pode atribuir a consequência pela extinção do casamento e de seus consectários, como os deveres que a lei determina aos cônjuges, de modo paritário. Nessa hipótese – divórcio – a colisão de direitos fundamentais é aparente, pois o direito de constituir família pelo casamento (também abrigado pelo princípio da liberdade) não pode impedir o exercício do direito de desconstituí-la pelo divórcio.

A necessidade de superação da colisão apenas se impõe quando o confronto de direitos fundamentais é real e não aparente. No exemplo citado da submissão forçada ao exame de DNA, evidencia-se a colisão de direitos fundamentais: o direito ao conhecimento da origem genética e o direito à intangibilidade do corpo humano. Ambos são direitos da personalidade, inerentes à pessoa humana, que despontam como espécies do gênero direitos fundamentais. A maioria do STF, que rejeitou a submissão forçada ao exame, buscou fundamento em princípios constitucionais como os da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da integridade física e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer. A minoria do STF, igualmente, valeu-se do princípio da dignidade da pessoa humana, não enxergando violação da intangibilidade do corpo. A concepção prevalecente da maioria foi a de que a intangibilidade do corpo não pode sofrer qualquer violação, inclusive quando determinada por agente estatal (o juiz); a concepção da minoria é que seria irrelevante a tangibilidade pela obtenção de pequenas porções de material genético, ou seja, o sacrifício seria pequeno (um dos votos chega a denominá-lo de risível), em prol do resultado pretendido. Independentemente do apoio a uma ou outra orientação, o que interessa para o fim desta exposição é que o voto majoritário conferiu mais peso à dignidade da pessoa humana do réu do que às das autoras, ante o caso concreto.

Vê-se, pois, que não há, na aplicação dos princípios e da colisão dos direitos fundamentais, uma única resposta para a decisão judicial, porque esta é determinada pelas circunstâncias que cercam o caso concreto. Um direito fundamental não é mais nem menos superior ao outro. São iguais. Quando colidem, a situação concreta permite identificar qual deve prevalecer, pela ponderação dos valores e interesses. De certa forma, a força atual dos princípios e a perplexidade da colisão de direitos fundamentais entre particulares, recuperam a sabedoria dos antigos, seja da prudência tópica dos romanos, seja da justiça pela equidade dos gregos.

Assim, não há, prima facie, prevalência de qualquer princípio sobre outro, ou de um direito fundamental sobre outro. A operação hermenêutica dos princípios, na hipótese de colisão é muito mais exigente da aplicação da ponderação ou do balanceamento dos valores ou interesses emergentes da situação concreta. A decisão apenas diz respeito à situação concreta, que é entendida como singular e irrepetível. Por isso, a decisão, no que respeita à sua configuração material, não pode servir de precedente valioso para outra situação fática, que pode ter solução completamente diferente. O que servem como precedentes são os fundamentos e argumentos utilizados para a incidência do princípio, desconsiderando-se as circunstâncias que envolveram a situação concreta. 

6. COLISÃO COM DEVERES FUNDAMENTAIS

            Vivemos ainda a era da afirmação dos direitos fundamentais, notadamente pelas múltiplas dimensões que vêm apresentando desde quando foram recepcionados pelas constituições dos países democráticos. Cogita-se, além dos clássicos direitos fundamentais individuais (liberdades públicas), de direitos fundamentais sociais (direitos de solidariedade) e de direitos fundamentais transindividuais, que superam a pertinência ao titular individual (como os direitos ao meio ambiente). Essas novas dimensões dos direitos fundamentais, diferentemente da clássica, puseram no mesmo patamar os deveres fundamentais correspondentes. Antes, o único devedor era o Estado. Agora, todos nós somos devedores reciprocamente, não apenas como indivíduos, mas como integrante de grupos determinados ou indeterminados.

A Constituição, no art. 225, estabelece que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas todos são responsáveis por sua proteção, incluindo o Estado e a coletividade. As atuais gerações são devedoras dessa proteção em face dos titulares dos direitos, que são as futuras gerações, ou seja, grupo indeterminado de pessoas que ainda não existem. São titulares pessoas não existentes, o que converte as pessoas existentes em titulares, cada uma em face da outra, e devedoras recíprocas, umas em relação às outras, além de devedoras em relação às não existentes. A concepção de sujeito futuro, mas já titular de direito, é uma revolução copernicana.

A Constituição, no que respeita às relações estritamente familiares, também imputa deveres fundamentais ao Estado, à sociedade e à família. Para o direito atual, o Estado é pessoa jurídica, a sociedade é coletividade indeterminada e a família é entidade não personificada. Os três são grupos sociais integrados por pessoas. O integrante da família, em virtude dessa específica circunstância, é titular de direitos fundamentais oponíveis a qualquer um desses grupos, inclusive à própria família, que surgem com devedores. Não são pessoas determinadas que são devedoras, mas o Estado, a sociedade e a família, enquanto tais. Os grupos não são titulares de direitos fundamentais, mas apenas de deveres fundamentais. Cogita-se de dimensão objetiva dos direitos fundamentais em virtude da responsabilidade comunitária dos indivíduos.

O conceito de família, como sujeito de deveres fundamentais, é expandido para além da família nuclear, principalmente quando o titular dos direitos fundamentais é qualificado como pessoa vulnerável. O art. 227 da Constituição estabelece que é dever da família assegurar à criança e ao adolescente os direitos fundamentais que elenca, considerados necessários à sua formação e à garantia de sua dignidade. O art. 230, por seu turno, estabelece que é dever da família amparar as pessoas idosas, defender suas dignidades e garantir-lhes o direito à vida. Os direitos dessas pessoas vulneráveis não dependem da existência real de convivência familiar, bastando a relação de parentesco. Os parentes não podem opor seus próprios direitos fundamentais, pois, nessas circunstâncias, prevalecem os deveres fundamentais.

7. CASOS EXEMPLARES

            No âmbito do direito de família, três situações podem ser consideradas exemplares de colisão de direitos fundamentais, dentre os casos julgados pelo STF e pelo STJ: o do exame forçado de DNA, já comentado, o da penhorabilidade do bem de família do fiador e os da filiação socioafetiva.

            No RE 407688, a maioria do STF decidiu que não há impedimento para a penhora do bem de família de fiadores nos contratos de locação, por não lhe parecer sólida a alegação, sustentada pela minoria, de violação do direito constitucional à moradia (art. 6º da Constituição) e do princípio da dignidade da pessoa humana, que não se sujeitam à lógica do mercado. Prevaleceu o princípio da autonomia privada do fiador e de que o direito à moradia não é direito subjetivo oponível diretamente, mas “direito a prestações”, dependente de atividade mediadora dos poderes públicos, pouco importando que o fiador e sua família sejam desalojado de sua moradia, para satisfação do direito do crédito. Alegou-se, ainda, como razão de decidir, evitar-se o prejuízo que adviria para a oferta de imóveis para locação. Nesse caso, o princípio da razoabilidade, reconhecidamente admitido pelo STF como implícito na Constituição, não foi mencionado, o que poderia fortalecer a orientação da minoria, pois, além da fiança, a lei brasileira admite outras garantias do crédito do locador, ou seja, o seguro de fiança locatícia, a cessão fiduciária de fundos de investimento e a caução de bens móveis, de bens imóveis ou de dinheiro depositada em caderneta de poupança vinculada. A crítica da ponderação feita pelo STF não desmerece, contudo, a importância e a excelência desse método para a superação da colisão de direitos fundamentais.

            Em diversas decisões, o STJ foi sistematizando os requisitos para a primazia da socioafetividade nas relações de família, notadamente na filiação, em situações em que a origem genética era posta como fundamento para desconstituir paternidades ou maternidades já consolidadas. O tribunal acolheu a doutrina familiarista que se desenvolveu nos últimos anos, que realça o papel fundamental da afetividade e a natureza cultural do parentesco. Nesses pleitos, subjaz o interesse eminentemente patrimonial, máxime em relação à sucessão hereditária do pretendido genitor biológico, às expensas das histórias de vida das pessoas envolvidas e dos estados de filiação consolidados no tempo. Nos REsp 932692, 1067438, 1088157 os critérios utilizados pelo tribunal correspondem aos que se encontram difundidos pela doutrina especializada brasileira: em primeiro lugar, abandona-se a exclusividade da fundamentação biológica da filiação; em segundo lugar, a verdade socioafetiva tem tanta importância quanto a verdade biológica; em terceiro lugar, não se pode destruir o estado de filiação, constituído na convivência familiar duradoura, em prol da origem biológica; em quarto lugar, não há vício de consentimento em quem registra conscientemente uma pessoa como seu filho, até porque a lei não exige a origem biológica para fins de registro. Nos casos concretos, esses critérios puderam ser utilizados como essenciais para a ponderação e decisão, ante a colisão de direitos fundamentais, tanto dos que pretendiam a desconstituição das relações de filiação hauridas da convivência familiar duradoura quanto dos que pugnaram por sua preservação. Às vezes, todavia, a consideração do caso concreto forja outra ponderação, apontando-se para o prevalecimento da origem biológica, notadamente quando não se prova que houve convivência familiar duradoura, apesar da paternidade ou maternidade contidas no registro civil.

8. PREVENINDO A COLISÃO: O PAPEL DO LEGISLADOR

            A colisão de direitos fundamentais nas relações familiares pode ser evitada quando o legislador antecipa-se ao conflito e estabelece modelos de regulação que correspondam aos valores da sociedade, o que simplifica a delicada operação hermenêutica da ponderação.

            A atuação preventiva do legislador configura-se na definição mais clara dos elementos de exercício dos direitos fundamentais. Não compete ao legislador infraconstitucional criar novos direitos fundamentais, mas torná-los exequíveis, estabelecendo os deveres fundamentais correspondentes. Essa atuação não evita a eventual colisão, porque os direitos fundamentais constitucionalmente implícitos ou explícitos são plasmados em cada momento histórico e de acordo com os valores sociais. Mas, certamente, a lei contribui para maior determinação de seu conteúdo, reduzindo o potencial de conflito, que sua natural textura indeterminada provoca. Alguns exemplos de adequação ou inadequação da legislação brasileira sobre direito de família são esclarecedores:

a) A Lei 12.398, de 2011, assegurou aos avós o direito fundamental de convivência com seus netos, quando negado pelos pais ou por um deles, que detenha a guarda. Havia decisões judiciais que inauguraram essa possibilidade, mas a incerteza era constante. A tormentosa evolução do direito de visita para o direito de convivência esgotava-se na relação entre pais e filhos, reduzindo-se à família nuclear. A convivência dos netos com os avós era tida como concessão dos pais, mas não como legítimo direito dos avós. Os direitos à convivência entre avós e netos consistem em direitos fundamentais de ambos, que não podem ser suprimidos pelos iguais direitos dos pais. As decisões dos tribunais e do legislador foram iluminadas pela afirmação crescente do princípio do melhor interesse da criança.

b) A Lei 12.344, de 2010, elevou para setenta anos a idade máxima do nubente para escolher livremente o regime de bens matrimonais. A partir dessa idade a lei impõe o regime de separação de bens. A elevação da idade, todavia, não afastou a inconstitucionalidade da norma do Código Civil reformada pela lei, porque persiste o defeito de origem de redução do direito do idoso, que colide com a dignidade da pessoa humana e com a liberdade de escolha de pessoa capaz. A lei mitigou a violação a esses princípios constitucionais, mas a manteve, obstando o exercício dos direitos fundamentais consequentes.

c) O art. 1.595 do Código Civil estabelece que o parentesco por afinidade na linha reta não se extingue com a dissolução do casamento ou da união estável. O parentesco por afinidade que se instaura entre o padrasto ou a madrasta com seus enteados é inextinguível, a demonstrar que os direitos de convivência entre eles hão de se assegurar em harmonia com os mesmos direitos dos pais separados. Não pode haver colisão, mas compartilhamento do direito à convivência, no melhor interesse da criança ou adolescente.

d) O art. 1.634, VII, do Código Civil estabelece que, no exercício do poder familiar, os pais podem exigir dos filhos os “serviços próprios de sua idade e condição”. Para que não haja colisão dessa regra com o princípio da dignidade da pessoa humana dos filhos, impõe-se interpretação conforme, admitindo-se apenas situações de colaboração nos serviços domésticos, sem fins econômicos, e desde que não prejudique a formação e educação dos filhos, mas nunca para transformá-los em trabalhadores precoces.

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Sobre o autor
Paulo Lôbo

Doutor em Direito Civil pela USP. Advogado. Professor Emérito da UFAL. Vice-Presidente do IBDCIVIL. Ex-Conselheiro do Conselho Nacional de Justiça

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LÔBO, Paulo. Colisão de direitos fundamentais nas relações de família. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3755, 12 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25362. Acesso em: 29 mar. 2024.

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