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A degeneração do jus puniendi estatal:

populismo penal, sentimento vingativo humano e a volta da vingança privada

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18/04/2014 às 07:31
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O populismo mídiático penal, a produção de um direito penal simbólico e a revolta popular com a insegurança e a violência social corrompem o jus puniendi e formam um direito penal não mais monopolizado pelo Estado, mas pela vontade popular, através de um sentimento de justiça repressivo e voraz.


RESUMOEste trabalho apresenta uma discussão sobre a situação atual do direito penal e as influencias que o populismo penal midiático, a população inconformada com a violência e o sentimento interno de vingança geram na sociedade e no ser humano. Mostra-se os problemas gerados pela mídia, manipuladora de opiniões, e as possíveis deturpações causadas no Jus Puniendi. Conclui-se afirmando que o direito penal moderno está sendo fortemente corrompido pelo sentimento de vingança humano e o populismo midiático, e há um possível risco da aplicação do mesmo de forma a violar seus princípios fundamentais , tais como a proporcionalidade e a individualização da pena.

Palavras-chave: Jus Puniendi; Populismo Penal; Vingança Privada; Sentimento de Vingança.

Sumário: I. Introdução. II. Abordagem histórica. III. Jus Puniendi, populismo penal, vingança privada e o sentimento de vingança. IV. Riscos de excesso na aplicação da pena e o populismo penal.1. Violação dos princípios da proporcionalidade e da individualização da pena. 2. Caso Isabella Nardoni : O estado aplicou uma pena "justa" ou uma vingança? V. Conclusão.


I. INTRODUÇÃO

Nos dias de hoje percebemos que o direito penal passa por um processo de populismo e "midiatização", ou seja, as decisões do juiz na aplicação da pena estão sofrendo fortes influências da mídia e da população. Antes da aplicação da sentença condenatória já encontramos um resultado para os crimes, criado pelo pré julgamento da sociedade. Há uma explícita violação dos princípios constitucionais e penais que garantem os direitos do réu, como o devido processo legal, a dignidade humana , a proporcionalidade, e a individualização da pena. Presenciamos a população com uma mentalidade preenchida de pré-concepções danosas à conservação do estado democrático e do próprio direito. Nosso estado caminha para a construção de um direito penal simbólico, repleto de políticas de implementação de legislações criminais severas, que atingem em média a população menos favorecida, podendo-se citar o caso de políticas de contenção aplicadas nos morros do Rio de Janeiro (UPPs) , onde se presencia a violação de garantias constitucionais dos moradores, como violação de domicílio, abusos de autoridade, etc.

Vivemos numa sociedade rodeada pelo medo, insegurança, criminalidade e violência urbana, fatores estes propícios ao desenvolvimento de um sentimento de vingança disfarçado com um capuz de "justiça". É a vingaça desenvolvida no imaginário popular em razão do descontentamento com a realidade urbana violenta, um sentimento que desperta no cérebro áreas ativadas em atividades prazeirosas, explicando-se o por que da população se animar e querer que "os malvados homicidas", apresentados pela tv, sejam punidos da pior forma possível. Carnelluti (1995, p.22) já afirmava em sua obra a situação que se encontra o direito penal em frente a mídia, formadora de opiniões, e a população, com sede de "justiça" :

A crônica judiciária e a literatura policial servem, do mesmo modo, de diversão para a cinzenta vida cotidiana. Assim a descoberta do delito, de dolorosa necessidade social, se tomou uma espécie de esporte; as pessoas se apaixonam como na caça ao tesouro; jornalistas profissionais, jornalistas diletantes, jornalistas improvisados não tanto colaboram quanto fazem concorrência aos oficiais de policia e aos juizes instrutores; e, o que é pior, ai faz o trabalho deles.

É essa vingança, que ganha o nome de justiça, fator de corrosão do Jus Puniendi estatal moderno. As pessoas acreditam quererem justiça para aquela atrocidade noticiada nos jornais, porém o que sentem internamente é um desejo vingativo, a vontade de fazer o outro sofrer, sentimento contido com elementos de ódio, raiva e vergonha. E repito, é pelo medo, insegurança , violência urbana, e principalmente, pelo processo de "midiatização" da justiça que nos encontramos nessa situação de criação de uma sentença penal não pautada no direito, mas na conviccão popular (senso comum) do que seja justo.

Diante dessa nossa realidade surgem casos e mais casos que vem produzindo a literatura jurídica da nova fase do jus puniendi, caracterizada pelo direito penal simbólico, criador de uma legislação penal hipertrofiante e pouco eficaz, pela midiatização do processo penal, onde o judiciário se torna um ser secundário no julgamento e a vontade repressiva da mídia passa a ter função primária na decisão da sentença condenatória, e pela prevalência da justiça vingativa, embutida de revolta popular devido violência urbana e ineficácia estatal na resolução dos problemas do excesso de criminalidade. Por essa nova tendência que o direito penal segue hoje no Brasil podemos citar diversos casos da moderna forma de punir, como o caso do mensalão , o caso Isabella Nardoni, dentre outros.


II. ABORDAGEM HISTÓRICA

Os pesquisadores costumam dividir a história do direito penal em três fases: fase primitiva (vingaça privada, divina e pública), fase humanitária e fase científica contemporânea.

Nas sociedades primitivas havia um grande relação da punição com a desobediência às divindades, era a chamada vingança divina. Inicialmente punia-se de forma desproporcional com intuito de revidar à agressão sofrida pela coletividade, sem nenhuma intenção de alcançar uma justiça. Nessa época havia um direito penal teocrático, religioso e sacerdotal, de penas cruéis, desumanas e degradantes , com finalidades de intimidação e de purificação da alma. Tais princípios eram adotados no código de Manu e no Código de Hamurábi, por exemplo.

Com o decorrer do tempo evoluiu-se para a vingança privada, onde o direito de aplicar a punição era do ofendido, ou alguém de sua família, tribo ou clã do grupo social. A obrigação de se aplicar a pena e reparar o dano era dos indivíduos daquela sociedade. Contudo, anotou-se nessa época que essa forma de punição acabava dizimando famílias inteiras e até mesmo tribos, mostrando o caráter desproporcional da vingaça. Com a evolução das tribos para sociedades mais organizadas cria-se a lei de talião, determinando a proporcionalidade da ação praticada contra o mal cometido - era o conhecido olho por olho, dente por dente, objetivando-se assim evitar futuros desastres sociais por dizimações, sendo considerado por muitos autores como uma das primeiras tentativas de humanização da sanção criminal. No entanto, apesar da lei de talião reduzir as mortes na sociedade, os crimes continuaram ocorrendo e grande parte da população acabava ficando mutilada pelos castigos, diante desses fatos surge-se o instituto da compositio, que possibilita ao criminoso a substituição da pena corpórea pela pena pecuniária. BITENCOURT (2013, p.74) conceitua a composição em sua obra da seguinte forma:

sistema através do qual o infrator comprava a sua liberdade, livrando-se do castigo. A composição, que foi largamente aceita, na sua época, constitui um dos antecedentes da moderna reparação do Direito Civil e das penas pecuniárias do Direito Penal.

A partir da melhor organização social surge a vingança pública, com a finalidade de garantir a segurança dos monarcas no exercício do poder, mantendo características de crueldade e da severidade, visando à intimidação. Nessa época ainda havia um estrito laço da punição com o caráter divino, e a religião ainda atuava intensamente no estado. Eram acolhedores desse tipo de vingança as civilizações grega e romana.

Diante dessa evolução da vingança percebe-se uma progressão nas penas, buscando de certa forma atingir um caráter mais proporcional e humanitário. Nota-se que a expulsão da comunidade é substituída pela pena de morte, mutilação, banimento temporário ou a perda dos bens. Através dos institutos do talião e da composição a penas passam a possuir um caráter menos cruel do que as aplicadas incialmente na vingança divina. No entanto, (BITENCOURT, p.74) afirma que faltaram muitas mudanças ainda na punição : "Em nenhuma dessas fases de vingança houve a liberação total do caráter místico ou religioso da sanção penal individual, que somente a partir das conquistas do iluminismo passou a integrar os mandamentos mais caros do Direito Penal".

Vale ressaltar também as contribuições do direito penal romano, através da Lei da XII tábuas, sendo o primeiro código escrito, a distinção entre os crimes públicos e privados ius publicum e ius civile, as leis corneliae e juliae, criadoras de uma tipologia criminal e que deram origem ao princípio da reserva legal, o desenvolvimento dos institutos do dolo e culpa, e por último e essencial, o jus puniendi, em que o estado passa agora a ter controle no julgamento dos litígios e ilícitos jurídicos, e assume a titularidade do direito de punir, sendo o único responsável pela aplicação de punição aos criminosos. É através da monopolização do direito de punir nas mãos do estado que aos poucos a vingança pública se extingue, dando lugar a um direito penal baseado na reserva legal.

O direito penal canônico também introduziu uma contribuição considerável na aplicação das penas, pelo surgimento da prisão moderna e a reforma do delinqüente. Do vocábulo "penitência" surgiram as palavras "penitenciário" e "penitenciária". As ideias de fraternidade, redenção e caridade da Igreja foram transferidas ao direito punitivo, procurando a correção e a reabilitação do delinqüente, ideias estas germinadoras dos modernos princípios da humanidade e dignidade da pessoa humana.

Com o advento da fase humanitária passa-se a valorar mais o ser humano e sua dignidade, começando-se agora a pensar na prevenção dos crimes, e diante de leis que inspiravam ideias de crueldade e penas capitais surge um movimento de correntes iluministas e humanitárias que critica esses tipos de excessos, propondo penas com um caráter mais ameno e proporcional ao crime, devendo-se levar em consideração alguns fatores do indivíduo, como suas circunstâncias pessoais, seu grau de malícia, e produzir a impressão de ser eficaz sobre o espírito dos homens (teoria relativa - caráter preventivo dos crimes). Foi no iluminismo que se atingiu o apogeu do movimento, defendendo a proteção da liberdade individual contra o arbítrio judiciário, a abolição da tortura, da pena de morte, o afastamento de exigências penais de caráter puramente morais da igreja e da aplicação de penas com finalidade retribuitiva.

A partir dessas ideias surge o movimento codificador, com o Código de Toscana de Leopoldo II de 1786, o Allgimeines Landrecht de Frederico, o Grande da Prússia 1794, o Código Penal Francês de Bavieira de 1813, os Códigos Penais Franceses de 1791 e 1810. A codificação dava certeza e lógica ao direito, onde sistematizavam-se princípios esparsos, facilitando a pesquisa, interpretação e aplicação da norma jurídica.

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É interessante destacar a importância de um dos marcos do movimento humanitário, o Marquês de Beccaria, sistematizador das principais ideias filosóficas da época, o contratualismo e o utilitarismo. A partir de sua análise constroi-se um sistema criminal que substitui o desumano e abusivo sistema anterior vigente, destroçando muitos costumes e tradições da sociedade do século XVIII. Com sua visão utilitarista prega uma pena de caráter preventivo, proporcional e humano, afastando a vingança do ius puniendi. Em sua filosofia define os seguintes princípios:

1. os cidadãos, por viverem em sociedade cedem apenas uma parcela de sua liberdade e direitos. Por esta razão, não se podem aplicar penas que atinjam direitos não cedidos, como acontecem nos casos da pena de morte e das sanções cruéis. 2. só as leis podem fixar as penas, não se permitindo ao juiz interpretá-las ou aplicar sanções arbitrariamente. 3. as leis devem ser conhecidas pelo povo, redigida com clareza para que possam ser compreendidas e obedecidas por todos os cidadãos. 4. a prisão preventiva só se justifica diante de prova da existência do crime e da sua autoria. 5. devem ser admitidas em juízo todas as provas, inclusive a palavra dos condenados (mortos civis). 6. não se justifica as penas de confisco, que atingem os herdeiros do condenado, e as infamantes, que recaem sobre toda a família do criminoso. 7. não se deve permitir o testemunho secreto, a tortura para interrogatório e aos juízos de Deus, que não levam a descoberta da verdade. 8. a pena deve ser utilizada como profilaxia social, não só para intimidar o cidadão mas também para recuperar o delinqüente.

Outro revolucionário que podemos citar é John Howard, indivíduo que ressaltou a importância de se analisar os problemas penitenciários. E foi pelas suas ideias humanitárias que se criaram debates e questões acerca das penitenciárias e do cumprimento de pena, insistindo na necessidade de se construir estabelecimentos adequados para o cumprimento da pena privativa de liberdade, com assistência alimentícia, higiênica e médica capazes de suprir as necessidades fundamentais do ser humano. Discutia-se também a questão dos regimes especiais, diferenciadores de homens , mulheres, jovens, e de pessoas de menor potencial ofensivo, e ressaltou a necessidade de fiscalização por magistrados da vida carcerária, dando linhas fundamentais para a criação da figura do juiz de execução penal.

Logo após desenvolve-se a fase contemporânea científica, marcada pela escola positivista, caracterizada pelo notável entusiasmo pela ciência, o início da preocupação com o homem que delinquia, as razões pelo qual delinquia, o estudo de sua personalidade, abandonando a visão de um tipo abstrato ("a justiça deve conhecer o homem"), e a abordagem da filosofia determinista, afirmando que sempre haveriam razões para determinar o crime, sendo ele um resultado da vida em sociedade e sujeito às suas variações, em diversos aspectos, influenciando fatores biológicos, físicos e psíquicos. As principais contribuições vieram de Cesare Lombroso - fatores psíquicos e físicos explicam a razão das ações do criminoso (fase antropológica) , Enrico Ferri - o crime passa a ser explicado como um fenômeno social (fase sociológica) e Rafael Garofalo - Dá o suporte legal a aplicação das penas, tendo a prevenção especial como sua finalidade, deixando de lado o caráter reabilitador.(Fase jurídica).

Temos adiante o surgimento da escola crítica , conciliadora das ideias da escola clássica e a positiva; a escola moderna Alemã, tendo Von Liszt como principal representante, pregando a ideia da pena e a medida de segurança como duplo meio de luta contra o delito, e o caráter defensivo da pena (finalística); a escola humanista, pregando a extrema moralidade no direito, considerando que qualquer conduta imoral se torna um crime, e que o caráter da pena deve ser educativo; a escola técnico-jurídica, de caráter positivista , com intuito maior da criação de uma ciência penal "pura", afastada de outras ciências, com objeto e métodos próprios; a escola correlacionista, tendo por fundamento a correção do delinqüente, através de um tratamento adequado. Nessa escola cria-se a ideia de uma pena indeterminada, sem prévia fixação do tempo de sua duração, e a função penal deve ser vista como preventiva e de tutela social; e por último a Defesa Social, de cunho humanista, objetivando a proteção do ser humano e de seus direitos civis. Nessa última escola há a revalorização das ciências humanas, no intuito de se construir uma ciência penal interdisciplinar que tenha uma real efetividade no estudo e combate da criminalidade.

Vimos até aqui a evolução da vingança, de caráter desumano e cruel, para as penas que conhecemos hoje, de caráter ressocializador e preventivo, teoricamente. Entretanto pode-se destacar algo muito interessante em todo o progresso penal: a participação popular nessa evolução. O povo teve consciência que a pena a se aplicar aos crimes não era mais uma vingança e sim uma forma de punição do estado para prevenir delitos? Será que o estado, inicialmente controlado por monarcas e a nobreza, toma o Jus Puniendi para si no intuito de prevenir algo, ressocializar e extinguir a vingança? A resposta é, infelizmente, não. O estado inicialmente visava o interesse dos monarcas, e restringindo a vingança pela Jus Puniendi , torna a aplicação de pena aos crimes um dever re/strito dele, não com a intenção de por fim na vingança privada e o sentimento de vingança humano, mas negar as pessoas a possibilidade de se vingar, através da reserva legal, tornando a punição das agressões aos principais bens da sociedade um dever somente da lei, e a partir disso, criar e realizar a manutenção de condições que favoreçam a vida pacífica em coletividade.

Diante disso compreende-se que o sentimento de vingança nunca foi extinto do direito penal, sendo este uma das suas principais raízes. O que se ocorreu realmente foi o revestimento desse sentimento humano em norma jurídica, assegurada pela legalidade, e a sua possibilidade de aplicação restrita ao estado, desenvolvendo com o decorrer da história um caráter mais humano e proporcional.

Para o estado a vingança acaba se transformando no direito de punir os crimes que violam a sua ordem, através da lei, protetora da liberdade individual, que assegura aos cidadãos a liberdade de se fazer tudo o que nela não se proíba , tipificando a partir dai condutas que violam a integridade das pessoas, de seus bens e da sociedade. Já para o povo a vingança se torna um sentimento oprimido pela poder estatal, negando sua concretização através da lei, proibindo-os de praticá-la, porém não de desejá-la internamente. E é diante dessas duas faces da sociedade (povo/estado) que surge o conflito de punir.

Quando o estado deixa de cumprir seus deveres na aplicação da pena, não ressocializando indivíduos que delinqüem nem ao menos conseguindo obter êxito na prevenção de futuros crimes a sociedade acaba formando seres violentos, e consequentemente, aumenta-se a insegurança e a criminalidade. Diante desse cenário de aparente "falha" estatal, as pessoas instintivamente voltam a ter o desejo de vingança para os delitos onde o a máquina estatal parece não aplicar a "devida" pena, surgindo as conhecidas discussões atuais, como a aplicação da pena de morte, os linchamentos, a revolta popular e o total repúdio pelo delinqüente, o rotulando assim até depois de cumprir sua pena perante a justiça estatal. Com essa degradação do poder punitivo do estado o povo se perde no conceito de justiça e confunde com vingança, desejando um mal desproporcional ao delito, que pode até resolver o problema específico em questão, porém não contribui de forma alguma na redução de crimes na sociedade.


III. JUS PUNIENDI, POPULISMO PENAL, VINGANÇA PRIVADA E O SENTIMENTO DE VINGANÇA.

O movimento penal que observamos em nossa sociedade é de degradação da função estatal de proteção dos bens jurídicos mais relevantes, e de sua competência punitiva, ou seja, seu Jus Puniendi. O estado falhou em suas promessas de zelar pela integridade da sociedade e de seus componentes, deixando a violência,a insegurança,o medo e ódio se espalharem pelas ruas, abalando a integridade física e psicológica das pessoas, que muitas vezes andam temerosas, expostas à criminalidade. Com a falta de eficácia da lei de execução penal, boa parte do caráter ressocializador e preventivo da pena acaba se esvaindo em teorias acadêmicas, deixando de ser posto em prática, e, consequentemente, promovendo a não reintegração dos indivíduos delinquentes e um maior afastamento dessas pessoas de uma vida digna em sociedade. Toda essa exclusão que se promove hoje pelo direito penal gera algumas consequências prejudiciais a vida social como: a formação de criminosos mais perigosos, a revolta popular com o aumento da violência, a descrença na proteção estatal, e o crescimento desenfreado do sentimento de vingança punitiva, com a volta do velho instituto "olho-por-olho, dente-por-dente" na mentalidade popular.

Diante de um novo quadro social de insatisfação com estado, com a insegurança e a violência a população se apega a desejos internos de querer um mal para a pessoa proporcional ao delito praticado. Dessa forma surge o populismo midiático no direito penal, aproveitando-se das emoções (repúdio, ódio) geradas pela demanda do crime, do medo produzido pelo delito, e do senso comum popular para se obter apoio da população para a aprovação de leis que produzam mais repressão e violência penal, no intuito de se resolver o problema da criminalidade e da insegurança gerada na sociedade. Esse "hiperpunitivismo" almejado pela mídia influencia diretamente na opinião do povo, que enxerga o criminoso com uma visão arcaica, como o "pobre mal caráter e bandido",e o "negro violento e ladrão". Luiz Flávio Gomes (2013, p.19) em seu livro sobre o populismo penal midiático conceitua essa nova influencia no direito penal moderno:

No campo penal a expressão populismo vem sendo utilizada para designar uma específica forma de exercício e de expansão do poder punitivo, caracterizada pela instrumentalização ou exploração do senso comum, da vulgaridade e da vontade popular. Populismo penal, portanto, não pode se equiparar simplesmente ao punitivismo, sim, é sinônimo de hiperpunitivismo de uma "economia penal excessiva" ou grotesca, desnecessária, abusiva, que escamoteia a vontade popular passando-lhe a ilusão da solução de um problema extremamente complexo.

Flávio Gomes (2013, p.18) também explica razões internas do ser humano para aceitar de forma branda a explosão de ideias da mídia para a implementação de um direito penal mais rigoroso e desumano:

Trata-se de um discurso político do inconsciente coletivo, que descansa sobre uma criminologia arcaica do homem criminoso, o "outro estranho", como fundamento para a adoção de mais medidas punitivas, facilitadas pelas representações sociais do infrator, ou seja, não é só a lei que estabelece o que é o crime, também as imagens que lhes são atribuídas socialmente.

O detalhe mais danoso a sociedade que se cria com o populismo é a rotulação humana do criminoso. É a volta da escola antropológica na definição do ser infrator, traçando-o pelas suas características físicas. Esse desenfreado exercício de revolta da situação social está sendo movido pela mídia a um determinado grupo de pessoas, as que mais sofrem com mazelas na vida pela falta de políticas efetivas no governo, a população carente. São os negros, mendigos e menores de rua que levam o descrédito popular nessa situação de repúdio a violência. Serão esses indivíduos os protagonistas da novela social da violência, que, muitas vezes, se envolvem na prática de crimes e tem sua imagem exposta à mídia, como possíveis "doenças" que prejudicam uma convivência pacífica na sociedade, seres que acabam sendo excluídos de forma total antes mesmo de serem condenados a uma pena, sendo privados de oportunidades pela criação de uma mentalidade popular preconceituosa.

Com essa exploração do senso comum e da vontade popular pelo populismo midiático observamos a desconstrução do estado de bem estar em diversos aspectos, como o psicológico, o penal, o humano, e o social. Pelo aspecto psicológico vemos o desenvolvimento desenfreado do sentimento interno vingativo na população, caracterizando à volta da vingança privada, revoltada com o excesso de violência, gerando uma vontade de se punir o crime com as próprias mãos (linchamentos), ou que o mesmo seja condenado com a maior pena possível, no desejo de que aquele indivíduo infrator seja excluído da sociedade por um longo tempo, esquecido na escuridão das celas penitenciárias. Pelo lado penal observamos um movimento na sociedade que está impulsionando o legislativo na criação de um direito penal mais repressivo e "eficaz", na mentalidade popular. É o chamado hiperpunitivismo, a aplicação de penas maiores no intuito de que o criminoso cumpra a maior parte da pena numa penitenciária, com a crença de que os problemas da criminalidade serão resolvido pondo boa parte dos infratores na "cadeia", ideia essa ultrapassada há décadas quando se mostrou que a criminalidade não se combate com a prisão, mas com políticas públicas voltadas a inclusão social, que extinguem as diferenças e a miséria (promotoras do crime) pelo fornecimento de uma saúde, educação, moradia, e trabalho de qualidade para quem necessita. Pelo aspecto humano vemos o desrespeito a direitos essências do indivíduo, como sua dignidade, sua intimidade, imagem, integridade física e moral. O criminoso tem suas garantias positivadas na constituição federal, como a integridade psicológica e física. Porém o que observamos é uma extrema violação a direitos mínimos que esse cidadão infrator possui. Podemos citar primeiramente a violação de sua intimidade e imagem no momento de sua apreensão, sendo exibido pela mídia à população como uma das piores mazelas de uma sociedade, um ser inescrupuloso, e desmerecedor de novas oportunidades e piedade. Já sua integridade física e moral são esquecidas no primeiro momento que o mesmo leva a voz de prisão , agredido, humilhado e tratado como um verme, e logo após na penitenciária, tem o resto de sua dignidade usurpada, tendo que conviver em celas superlotadas ao lado de indivíduos que cometeram crimes piores que o seu, expondo ainda mais o seu psicológico a situação de grande perigo. No aspecto social vemos a exclusão, a criação de uma mentalidade popular de preconceitos, e o inchaço do sentimento de medo e insegurança. Primeiramente a exclusão é aumentada, pois aquele indivíduo que delinquiu além de ser taxado com o um potencial risco à ordem social é rotulado pelas pessoas como um eterno infrator, que mesmo apesar de cumprir sua pena, nunca deixará de ser um criminoso, e , devido a isso, não poderá mais ter uma segunda chance para voltar a viver dignamente na sociedade. Logo adiante gera-se os preconceitos, rotulando mais ainda quem pratica o crime , e pior, cria-se analogias para a definição de um criminoso, desenvolvendo um raciocínio da seguinte forma: se um negro, um pobre , ou um mendigo cometem um delito, logo, todo negro, pobre, ou mendigo são potenciais criminosos, merecedores de repúdio ódio. Por último, temos o medo e a insegurança , sentimentos que proporcionam o aumento de todos os outros citados anteriormente. Esse medo e insegurança criam mecanismos de autodefesa no ser humano, com a separação social, o preconceito e a vontade de se realizar a vingança privada, disfarçado no imaginário humano como um tipo de justiça. Podemos observar a segregação social quando vemos aqueles gigantes complexos de moradia, apartamentos rodeados por grandes muros e cercas elétricas, semelhantes a fortalezas medievais. As pessoas que desejam a própria segurança muitas vezes proporcionam uma maior separação, se isolando em seus prédios e se deixando levar pelo medo e a opinião da mídia sobe essa situação de violência. Diante desse inchaço do medo humano e da exploração da vontade popular pelo populismo midiático, visando o apoio da maioria para influenciar o legislativo na implementação de penas mais "duras", reduzimos nossa capacidade de pensar e refletir, desenvolvendo o ódio pelo crime , e o desejo de que se extermine suas raízes, sem critério algum de proporcionalidade. Diante de todo esse quadro social vemos o ressurgimento de um direito penal arcaico na mentalidade popular, a vingança privada.

Toda essa alienação popular impulsiona a aplicação da pena rumo a um direito penal simbólico, ao desenvolvimento do sentimento popular de impunidade, e um maior desejo vingativo no interior humano. O simbolismo no direito penal é caracterizado pela função hipertrofiante do legislador na criação de leis penais, dando ênfase a um aumento excessivo das penas, violando garantias individuais e alterando a finalidade de aplicação de pena pelo estado, a ressocialização. Essa função legislativa violadora da proporcionalidade penal acaba promovendo um direito penal vingativo, remontando os tempos antigos da vingança privada. Quando juntamos a pressão midiática sobre o Jus Puniendi estatal com a vontade popular de leis mais severas para se proporcionar a tão almejada "justiça", e a emanação interna do sentimento de impunidade pela aplicação de penas "injustas" criamos um direito penal de cunho degenerativo, promotor não mais de uma justiça que visa a ressocialização e posterior inclusão daqueles indivíduos infratores na sociedade, mas de um direito vingativo, baseado num sentimento alimentado por uma sociedade amedrontada pela insegurança, criminalidade e violência urbana.

Kant já afirmara a relação existente entre a vingança e o direito, sendo esta um modo de funcionamento das paixões, degeneradora dos ideais de razão e respeito aos direitos do sujeito ofensor.

A vingança manifesta, por sua vez, ser um excelente exemplo do modo de funcionamento das paixões, que abrigam uma terrível mistura entre as obscuridades do desejo e a força da razão, pois tem como fundamento uma Ideia racional, que, porém, o sujeito interpreta de modo egoísta, “tornando o apetite do direito com respeito ao ofensor em uma paixão de retribuição”, cuja veemência não poupa renúncias, custos, excessos, elementos todos que contribuem para produzir a mais completa destruicão do sujeito passional. Essa ideia racional pervertida, que Kant identifica com o ponto focal da noção de vingança, transmite-se até entre os povos, que acreditam no fato de o sangue não vingado clamar por uma compensação, às vezes até ao preço do sacrifício de descendentes que não tem culpa nenhuma nos crimes dos seus antepassados. (MADRID, p.6).

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Sobre o autor
Allify Oliveira Siqueira

Universitário de direito

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SIQUEIRA, Allify Oliveira. A degeneração do jus puniendi estatal:: populismo penal, sentimento vingativo humano e a volta da vingança privada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3943, 18 abr. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27756. Acesso em: 19 mar. 2024.

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