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Psicologia jurídica: encontros e desencontros em sua prática

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06/06/2014 às 12:22
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O espaço construído entre a realidade jurídica e psicologia jurídica como área de atuação é confuso. Apesar da expansão da psicologia jurídica no Brasil e no mundo, as ações concretas desenvolvidas pelos psicólogos podem colocar em risco sua atuação na prática jurídica.

Resumo: A partir de pesquisa empírica, o presente artigo busca discutir a prática da psicologia jurídica aplicada no judiciário, compreendendo a diferença entre a intervenção psicológica e a intervenção judicial. Através do estudo de leis e doutrinas, procura-se esclarecer a lógica das provas e da perícia, observando o contexto, os princípios jurídicos e as teorias psicológicas.  A psicologia jurídica, na atualidade, é considerada como prática da profissão de psicologia para questões legais. O estudo descreve a realidade jurídica e psicossocial, a partir da perspectiva pessoal dos magistrados e dos psicólogos inseridos no judiciário. Tem como objetivo orientar a atuação do Psicólogo para a prática profissional da psicologia jurídica, confrontando as posições dos magistrados e dos psicólogos diante da realidade probatória e investigativa do sistema judiciário, compreendendo a demanda do psicólogo perito e os elementos subjetivos da investigação. Os participantes foram selecionados por conveniência: 12 juízes e 12 psicólogos, em exercício no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios-TJDFT. A partir da elaboração de um questionário único e uniforme, utilizando princípios psicojurídicos. O estudo se caracteriza como exploratório e o método de abordagem foi o hipotético-dedutivo. Através da comparação foi possível deduzir elementos gerais e abstratos, e verificar as semelhanças e divergências entre os participantes. Os resultados obtidos demostram a existência de distorção conceitual e interpretativa da prática da psicologia jurídica por ambos, psicólogos e magistrados.

Palavras-chave: Psicologia jurídica. Prática. Perícia. Prova. Distorção.


1. INTRODUÇÃO

No Brasil e no mundo, observa-se uma efetiva participação do profissional da psicologia no contexto do judiciário. Este profissional é reconhecido como Psicólogo Jurídico. Diferenciando-se na categoria não só pelo contexto em que está inserido, mas pela sua técnica especializada, a qual exige capacitação e conhecimento da ciência jurídica, conquista profissional que o qualifica e o restringe. A questão é como atua, na prática, esse profissional? 

Afinal, o encontro prático das ciências humanas e jurídicas pode constituir um grande problema. No âmbito do judiciário e diante da ótica de cada ciência, os conflitos humanos são uma realidade que produz enormes e diferentes questionamentos. Onde a visão do todo pode ficar comprometida, se camuflando por um discurso social e uma incompreensão semântica, em que a verdade dos fatos, juridicamente relevantes, se perde.  E assim, falando línguas diferentes, erros inferenciais podem ser produzidos e a informação distorcida, acarretando falhas interpretativas da qual ninguém se dá conta, a não ser, claro, a vítima, o autor e o grupo social em que se inserem.

Para tanto é necessário discutir as questões entre o Direito e a Psicologia, compreendendo que essas questões estão em seus fundamentos, princípios e matrizes teóricas, e para sua aplicação prática é necessário compreender as diferenças. Um breve estudo axiológico permite demonstrar a diferença do Direito finalista e da Psicologia causalista, um pertencendo ao mundo do dever ser (mundo ideal), e a outra do ser (realidade social). Mundos aparentemente estranhos, em que o homem é o ator principal.

Primeiramente, há de se considerar que a intervenção psicológica e a intervenção judicial são diferenciadas. Ao se inserir em um contexto jurídico, não terapêutico, o psicólogo pode enfrentar um problema de identidade, tornando sua atuação inadequada. Observa-se, por outro lado, que o Direito não opera com conjecturas, não pode o juiz proferir decisão por mera presunção. A certeza da autoria dos fatos e da culpabilidade do agente é necessária, tanto na área cível como na criminal as responsabilidades dependem de provas, as quais precisam ser firmes e seguras a ponto de ensejar a decisão. O problema então é: o que são provas, para a Psicologia e para o Direito? E, como o profissional da psicologia pode auferir valor a prova jurídica? Qual o espaço ocupado por esse profissional e como considerar sua participação no sistema jurídico, considerando que a psicologia jurídica só existe a partir de um sistema jurídico?

 Diante do dilema, o propósito do presente artigo é intercambiar princípios jurídicos e teorias psicológicas. Abordar leis e doutrinas, esclarecendo a lógica das provas, o significado dos indícios e vestígios como verdade real. A pesquisa, portanto, tem como objetivo geral orientar a atuação do Psicólogo Jurídico na busca da prova como verdade objetiva. Compreendendo o que é verdade para o Direito e tendo a conduta humana como ponto de referência das investigações. Em decorrência, como objetivo específico pretendeu-se esclarecer a atuação do psicólogo no contexto judiciário; descrever a realidade jurídica através do olhar psicossocial; descrever a realidade psicossocial através do olhar jurídico; e então comparar a visão dos Juízes e dos Psicólogos e, por último, compreender na prova objetiva os elementos subjetivos da investigação.

A pesquisa empírica realizou-se a partir da elaboração de um questionário unificado e harmônico, construído sobre parâmetros psicojurídicos (TRINDADE, 2009), no qual, combinando perguntas abertas, fechadas e de múltipla escolha, foi aplicado em uma amostra selecionada por conveniência, juízes e psicólogos jurídicos, em exercício no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Possibilitando comparar a Psicologia e o Direito na perspectiva pessoal desses profissionais. Por fim, procedeu-se à análise e discussão dos resultados, bem como as conclusões e recomendações para futuros estudos, salientando as limitações do trabalho realizado, que se caracteriza como estudo exploratório.


2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Psicologias aplicadas e psicologia jurídica

A psicologia, como ciência e profissão, vem trabalhando a questão da subjetividade e da complexidade. Entretanto, pouco tem produzido sobre a questão da subjetividade dos próprios psicólogos e os processos que envolvem as identidades sociais dos mesmos. Fatores sociais vêm contribuindo para isso, e a psicologia vem se apresentando como uma ciência fragmentada que possui linhas de conhecimento diferentes e divergentes (NASCIMENTO, MANZINI e BOCCO,2006).

 Trindade (2009) sustenta que a Psicologia tem um longo passado e uma curta história. Afirma que é muito jovem e que fala muitas línguas. Thá (2006) traduz o drama contemporâneo dos profissionais da psicologia, que se inicia na academia quando se questionam sobre as diversas teorias apresentadas. Como se identificar? Qual das teorias corresponde à descrição da realidade profissional? Afinal, o que se espera é aprender uma profissão, exercê-la e, com esta, se sustentar.

No Brasil, a profissão de Psicólogo foi regulamentada somente em 1962, pela lei 4.119.  Diferentemente do que era quando surgiu como ciência independente (final do século XIX), o foco atual é compreender o sujeito biopsicossocial e sua rede complexa que envolve áreas diferentes, transdisciplinares. Observa-se, então, o surgimento de “projetos que tomam a própria prática do psicólogo como questão” (NASCIMENTO, MANZINI e BOCCO, 2006 p. 15). Em 2001 a APA apresentou uma lista de 53 divisões da psicologia aplicada: Clinica, Educacional, Saúde, Social, Hospitalar, Jurídica e outras (TRINDADE, 2009).

Autores como Sabaté (1980, apud Trindade, 2009), consideram que a psicologia jurídica na prática é um campo a ser explorado e construído. Para Jesus (2010 p.52) a psicologia jurídica constitui-se de um “campo especializado de investigação psicológica, que estuda o comportamento dos atores jurídicos no âmbito do direito, da lei e da justiça.” Sabaté (1980, apud Trindade, 2009 p. 24), estabelece três grandes caminhos para o que chamou de método psicojurídico, são eles:

A psicologia do direito, cujo objetivo seria explicar a essência do fenômeno jurídico, isto é, a fundamentação psicológica do direito uma vez que todo o direito está repleto de conteúdos psicológicos. Essa tarefa de investigação psicológica do direito recebeu a denominação de psicologismo jurídico. A psicologia no direito, que estudaria a estrutura das normas jurídicas enquanto estímulos vetores das condutas humanas e nesse aspecto, a psicologia no direito é uma disciplina aplicada e prática. A psicologia para o direito, a psicologia jurídica como ciência auxiliar do direito, tal como a medicina legal, a engenharia legal, a economia, a contabilidade, a antropologia, a sociologia e a filosofia, entre outras. (TRINDADE, 2009)

No dizer de J. Selosse apud Doron & Parot (2006, p.629) a atuação da Psicologia na justiça se subdivide em três possiblidades:

Psicologia judiciária que trata dos atores dos processos: acusado, vitima, acusador, testemunha; e pelos métodos de informação de instrução e confissão, e ainda busca entender a lógica de atuação dos juízes e seus auxiliares. A psicologia criminal que se apropria da investigação e análise do indivíduo delinquente, sua conduta e os processos criminógenos, e por último a psicologia legal que, estuda as significações e conceitos jurídicos penais e civis nos quais se baseiam os processos, compreendendo os princípios jurídicos que orientam a tomada de decisão, como: responsabilidade, culpa, periculosidade, interesse das partes, autoridade legal  (DORON & PAROT, 2006)

Alguns autores buscaram distinguir a psicologia jurídica e a psicologia forense/judicial, (Sabaté, 1980, Garzón 1990 apud Trindade, 2009) historicamente fez sentido essa distinção. No entanto, atualmente, segundo Trindade (2009) o termo psicologia jurídica, engloba qualquer prática aplicada da ciência e da profissão de psicologia para os problemas e questões legais. Jesus (2010) segue o mesmo raciocínio, afirmando que essa nomenclatura seria mais abrangente, pois o termo forense estaria restrito ao fórum. Apesar disso, as psicologias jurídicas, segundo Clemente (1998, apud Trindade 2009), são citadas de acordo com o tema que abordam: Psicologia judicial, penitenciária, criminal, civil e família, do testemunho, da criança e do adolescente infrator, policial, da vitima, e outras.

Diante da proposta de pesquisa, fazem-se necessárias algumas conceituações que podem parecer elementares ao olhar jurídico, mas que seria o cerne das distorções interpretativas ocorridas entre a psicologia e o direito: a falta do enfoque jurídico. Caires (2003, p. 30) relata sua experiência de atuação como psicóloga na área jurídica, ressaltando que:

A dificuldade em perceber que o esforço em me fazer entender, esmiuçando as correlações clínicas, neurofuncionais e psicodinâmicas, não era nem louvável e sequer sinal de competência e, pior, gerava entendimentos confusos e passíveis de distorção por parte dos profissionais solicitantes do exame. Não pude compreender naquele momento, é que os juristas não eram da área da saúde e, por isso, não podiam e nem precisavam entender a clínica do sujeito.

Assim, a autora descreve e reforça a necessidade do conhecimento jurídico para a prática da psicologia jurídica. Procurando não se esquecer de que a pobreza das relações interdisciplinares constitui o grande problema das ciências humanas, sendo relevante destacar as considerações de Trindade (2009 p.23).

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A humildade e a modéstia epistemológicas têm sido a noção faltante na ciência jurídica, mas também a psicologia, na sua adolescência científica, tem se ressentido da sabedoria histórica. Nesse particular, a psicologia tem claudicado de forma persistente na medida em que não tem calado onde é incapaz de falar ou, pelo menos, não tem calado quando ainda é incapaz de falar, de outro lado, tem fraquejado toda vez que não apresenta a necessária profundidade e consistência filosófica, sucumbindo ao universo da cultura, da reflexão, e, particularmente, do pensamento crítico.

 Considerando que somente no contexto do direito é que a psicologia jurídica se realiza, torna-se necessário compreender esse contexto. Não isoladamente, mas conjuntamente com os operadores do direito, intercambiando. Para tanto, é preciso conceituar o encontro da Psicologia com o Direito. Encontro que na prática favorece o desafio da objetividade científica e da realidade jurídica, capaz de afastar o olhar terapêutico e lançar um olhar investigativo sobre o fato jurídico.

2.1   Direito e Contexto jurídico

O homem é um ser que pensa, tem consciência e se move num contexto histórico-cultural. De acordo com Longo (2004 p.25) “O homem constrói o mundo com sua inteligência, com seus braços, com sua vontade determinante e com seu Deus”. Nesse contexto, interage com o outro, inicialmente com sua família e posteriormente com os outros membros da sociedade da qual faz parte. Este convívio com o grupo social proporciona a construção das identidades e das regras. Onde quer que se encontre um agrupamento social, onde quer que o homem esteja, por mais rudimentar que seja o fenômeno jurídico esta presente (MONTEIRO, 2003)

É sabido que as sociedades humanas se encontram ligadas ao direito, o homem já nasce sujeito de direitos, é uma necessidade fundamental. Dele recebe estabilidade e a própria possibilidade de sobrevivência, pois encontra as garantias das condições necessárias à coexistência social. Estas são definidas e asseguradas pelas normas, que criam a ordem jurídica dentro da qual o Estado organizado, sociedade e indivíduo compõem o seu destino. (BRUNO, 1969).

 Pereira (2001, p.4) afirma que “há e sempre houve uma norma, uma regra de conduta, pautando a atuação do indivíduo, nas suas relações com os outros indivíduos”.  O autor acrescenta que quando “um indivíduo sustenta suas faculdades e repele agressão, afirma ou defende os seus poderes, diz que defende o seu direito. E, quando o juiz dirime os conflitos invocando a norma, diz-se que ele aplica o direito”.  Existindo o que se pode chamar de realidade jurídica, reconhecível no comportamento humano. Monteiro (2003) corrobora dizendo que existem outras normas de convivência impostas na sociedade, que a rigor não se confundem com as jurídicas, regras morais. Ambas se constituem como normas de comportamento.

Assim, de acordo com Pereira (2001), o anseio por justiça integra-se na consciência do indivíduo, e o poder público o reveste de sanção possibilitando a convivência individual e coletiva. Estabelece o comportamento social, sem o qual não haveria a possibilidade do jurídico, pois para a vivência individual ninguém poderia exigir o seu direito sem limitar o direito do outro, sendo, portanto, necessário suportar restrições à própria conduta. Pode-se, então, afirmar que “o direito é o principio de adequação a vida social”, ou seja, somente no meio social haverá o direito.  (PEREIRA 2001. p. 5).

 Friede, (2002 p.14), define o Direito como objeto da ciência do direito, não é produto de uma vontade, é um produto do ser humano, um produto cultural. Resulta “da atuação de forças sociais, ou de uma delas, com poder de dominação sobre as demais”.  É correto afirmar que o Direito se caracteriza como ciência autônoma, que se funda em princípios basilares, no qual fato, valor e norma não são aspectos simples de uma realidade, e sim, elementos primordiais dessa ciência (FRIEDE, 2002; REALE, 1981).

De acordo com Montoro (1981), axiologia é a ciência dos valores. Estes representam os princípios que orientam a conduta do homem e da sociedade. Onde quer que se manifeste o direito, encontra-se uma ação, ou seja, um fato da natureza que é ao mesmo tempo um fato de vontade, sendo o direito, portanto, a expressão da vontade humana, da ação do homem. Como o direito não funciona como um todo fechado, o conjunto das normas jurídicas é denominado de ordenamento jurídico, sendo essa a expressão formal do direito. (MONTORO, 1981, REALE, 1981, FRIEDE, 2002).

Ao ser aplicado, o direito utiliza critérios de interpretação: gramatical, lógico, sistemático e axiológico (FRIEDE, 2002). Sauvigny (apud Monteiro, 2003 p.35) diz que “interpretar é a reconstrução do pensamento contido na lei”. A lei é sempre clara, e deve ser aplicada como soam as palavras, determinando seu verdadeiro sentido e procurando o que quis dizer o legislador (FRIEDE, 2002).

 É importante saber utilizar a linguagem adequada no momento adequado. A clareza das ideias está relacionada com a clareza e precisão das palavras. Qualquer sistema jurídico para atingir plenamente seus fins deve cuidar do valor “nocional” do seu vocabulário, e estabelecer relações semântico-sintáticas harmônicas e seguras na organização do pensamento (NARDINI & RAMOS).

Segundo os autores, o pensamento humano evoca ações que expressam estados ou qualidades, que justificam determinadas condutas. E, para simbolizar o agir e o sentir, a linguagem é fundamental, pois permite estabelecer as relações psicológicas e traduzir o significado das palavras e a realidade ali representada. Para realizar um ato de comunicação verbal, o indivíduo escolhe, seleciona e organiza as palavras conforme a sua vontade. Todo este trabalho de seleção e organização não é aleatório, está ligado a intenção do sujeito (NARDINI & RAMOS).

A realidade jurídica: penal, civil e familiar, tem que partir de ações, e não das fontes psicológicas. Pois as ações são o objeto de conflito, e não as resoluções. A tipicidade é o ponto de partida e, devem ser traduzidas de forma coerente e concisa, dentro de um determinado contexto jurídico. Etimologicamente, o termo contexto pode ser conceituado como “conjunto de circunstâncias que acompanham um acontecimento, exemplo: julgar um fato em seu contexto histórico”. O adjetivo jurídico é relativo ao direito, “que está de acordo com as normas do direito: ato jurídico” (KOOGAN/HOUAISS, 1997).

2.2  Prática da Psicologia com Enfoque Jurídico.

Em um contexto judicial, o objetivo é verificar e determinar se os fatos realmente ocorreram. Possibilitando a responsabilização, a proteção da sociedade e garantindo os direitos. Em um contexto clínico, o psicólogo deve observar os sintomas com o intuito principal de intervir e auxiliar o sujeito a lidar com esses sintomas. No ambito social o psicólogo ajuda o sujeito a lidar com o ocorrido, orienta e auxilia na utilização dos recursos e meios necessários a esse fim, atuando na segurança pública, inclui, também, o sistema jurídico.

De acordo com Friede (2002), é necessário considerar os dados subjetivos no campo dos valores: sentimentos e opiniões que fogem a disciplina das leis, elevando o grau de responsabilidade dos profissionais e diminuindo os riscos de injustiças e abstrações por parte dos operadores do direito. Portanto, o conhecimento dos aspectos legais orientará o psicólogo jurídico na compreensão da influência que seus relatórios, pareceres e laudos ocupam no contexto jurídico. Pois os aspectos individuais observados e descritos tecnicamente serão acolhidos a rigor como matéria probante, dirimindo as dúvidas judiciais existentes.

Caires (2003) destaca a importância de se conhecerem os aspectos criminógenos, sociais e psíquico-psicológicos que abrangem o sistema de justiça. Através de ponderações históricas, a autora busca resgatar aspectos relevantes do trabalho do psicólogo no judiciário: as questões sobre a doença mental e sua proteção; o reconhecimento da psiquiatria forense no Brasil, ocorrido na década de 20, em um caso de clamor público, onde coube o primeiro diagnóstico médico legal de inimputável. A autora descreve suscintamente, o caminho percorrido pela psicologia, que se inicia com o estudo da alma, e vai se modificando para o estudo do comportamento. Firma-se através de métodos científicos ao lado da Psiquiatria, e a transcende através de técnicas mensuráveis conhecidas até hoje como testes psicológicos.

Nota-se que a inserção do psicólogo no sistema judiciário se fortalece na necessidade de que os fatos revelados sejam relevantes ao mundo jurídico e que a busca destes fatos ocorram de forma técnica e confiável. De acordo com Caires (2003), todos os caminhos levam a um único tema: a perícia.

 É importante perceber que em matéria penal, tanto na fase de execução como na fase processual, as informações fornecidas terão sempre valor probante (Caires, 2003 e Trindade, 2006), servindo a critério do Juiz. E, dentro dos parâmetros legais, atenuar ou agravar a situação do agressor (réu), revelar circunstâncias e possíveis consequências do crime.

Art. 59 do CP - O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.

Na prática o juiz atribui ao agente, quase que aleatóriamente, as expressões “personalidade desajustada”, “personalidade não informada nos autos”, “personalidade com inclinação para o crime”, e ainda, “personalidade desregrada”. Tais expressões nada contribuem para a demonstração da personalidade do agente. Carvalho (2001) discute a tarefa difícil do juiz: “a experiência cotidiana revela que a valoração da personalidade do acusado, nas sentenças criminais, é quase sempre precária, imprecisa, incompleta e superficial”.

Em casos que envolvem estupro, maus tratos e atentado violento ao pudor, contra vulneráveis, a inserção do psicólogo torna-se cada vez mais importante. Nessa linha de entendimento, pontífica a doutrina e a jurisprudência que as declarações da vítima constituem um meio de prova. Em princípio, o conteúdo das declarações deve ser aceito com reservas. No entanto, por se tratar de um delito às ocultas, é necessário que as declarações sejam seguras, estáveis, coerentes, plausíveis, uniformes, perdendo sua credibilidade quando o depoimento se revela reticente e contraditório a outros elementos probatórios.

 As demandas judiciais das Varas de Família é outro domínio em que a psicologia se faz presente e exerce forte influência na proteção judicial dos menores. Levando o magistrado a buscar, junto à Psicologia, um trabalho técnico, seguro, capaz de embasar as decisões, resguardando os direitos das crianças e adolescentes em questões de regulamentação de visitas e guarda familiar (TRINDADE, 2002). Em matéria civil, a comprovação dos fatos alegados é pressuposto da ação, e a partir dele é que se pode apurar responsabilidades, que no caso independe de culpa. (artigo 333, 342, 348, 400 e seguintes)

Visando punir e prevenir a violência doméstica contra a mulher, surge a lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha). E, no mesmo ano, a Lei 11343/06, que prevê projetos educacionais para redução do dano ao usuário de drogas ilícitas. Essas duas leis proporcionam um espaço terapêutico ao psicólogo jurídico. Espaço que não afasta a especialização, nem o enfoque legal, mas possibilita um espaço diferenciado de atuação no sistema judiciário.

Poderíamos discorrer sobre cada prática desenvolvida pelo psicólogo no âmbito do judiciário, no entanto, o objetivo da pesquisa é a atuação do psicólogo na busca da prova. Pois a prova, como observado, é comum a todo sistema jurídico. Acrescentando que o sistema inclui, de acordo com Código de Processo Penal (CPP), o processo de investigação policial:

Inquérito - o inquérito policial é um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária (art. 144 da CF– Polícia Federal e as Policiais Civis) é voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria.  Sua finalidade é, portanto, a investigação do crime e a descoberta do autor, chamado também de instrução prévia. Período pré-processual. Tendo como objetivo formar a convicção do MP, e colheita de provas urgentes, apontar com relativa firmeza a ocorrência e autoria de um delito. Inquisitivo e sigiloso. Antes da denúncia. (Código de Processo Penal, art. 5º a 23.)

2.2.1        Provas

Prova conceitualmente significa: “aquela que demonstra a veracidade de uma proposição ou realidade de um fato”. Segundo Manzano (2011), prova vem do latim probatio, que significa ensaio, verificação, inspeção, exame, aprovação, confirmação, deriva do verbo probare. No direito, é usada para identificar realidades diversas.

Manzano (2011 p. 1) diz que a finalidade da prova é convencer o julgador “sobre a exatidão das afirmações formuladas pelas partes no processo”, possibilitando “a certeza suficiente à formação do convencimento necessário de que foi atingida a verdade possível e de legitimar a sentença”. Acrescenta que não se pode confundir a finalidade da prova com o fim do processo. Esta seria a verdade objetiva, alcançável e sujeita a sanção.

Hungria (1959), afirma que “prova é a verificação de algo, com a finalidade de demonstrar a exatidão ou a verdade real da alegação feita pela parte ao juiz. Diante desse olhar eleva-se o direito do indivíduo em face da coletividade, pois, ao menor sinal de dúvida sobre o fato delituoso, homenageia-se o princípio conhecido por ‘in dubio pro reo’”.

 Em matéria penal, não é possível fundamentar uma decisão condenatória apoiada exclusivamente em indícios remotos ou suposições. Para o direito, a culpabilidade não se presume ou pode ser extraída de subjetivismos, exigindo para sua definição prova segura do cometimento e da autoria delituosa. (MANZANO, 2011.)

Notadamente a prova produzida quer oral, quer pericial, somente será suficiente para a formação de um juízo de certeza se bem fundamentada. Pode ser utilizada em três sentidos: a) ação de provar; b) meio ou instrumento para a demonstração da verdade; c) resultado da ação.  As espécies de provas são:

Exame de corpo e delito, onde se procede a verificação da materialidade do crime; pericia técnica direta ou indireta; interrogatório; confissão; oitiva da vitima (art.201 do CP); testemunha; reconhecimentos de pessoas e coisas; acareação; documentação; indícios (prova indireta) que se valem do raciocínio indutivo para, utilizando de dados isolados e conhecidos, chegar à conclusão da existência do fato e de outros fatos mais abrangentes, se guiando por vestígios, e nesse caso a prova é indireta (art. 239 do CP)

No processo penal a prova pode ser: material, real, substancial, sendo produzida na fase de instrução que se encerra na audiência de instrução e julgamento (art. 402, 534, 411 parágrafo 3º, do CPP). Segundo Manzano (2011 p. 239):

(...) tanto no processo penal quanto no processo civil se busca a verdade processual, concebida como a melhor verdade, verdade aproximativa, verdade humana e eticamente possível de ser atingida, sem atropelamento de direitos individuais, em busca da pacificação social, revelada pela permanente preocupação com efetividade da jurisdição penal, para que se alcance o desejado equilíbrio entre o garantismo e a eficiência.

Afirmar a verdade é possível deste de que se compreenda o que é verdade real. Quando se fala em processo penal, a afirmação do princípio da verdade real é necessário. Distingue-se do principio da verdade formal, que regula o processo civil onde a prova é trazida pelas partes ao processo, e o juiz decide conforme as provas apresentadas. No penal, o magistrado tem o dever de investigar como os fatos se passaram na realidade, não se conformando com a verdade formal constante dos autos.

 Para tanto, o art. 156, II, com a redação determinada pela Lei n. 11.690/2008, faculta ao juiz de ofício determinar, no curso da instrução, ou antes, de proferir sentença, a realização de diligências para ‘dirimir dúvida sobre ponto relevante’. Ao magistrado  é facultado buscar a verdade, persegui-la.

2.2.2        Perícia

Segundo Tornaghi apud Manzano (2011 p. 8): “Perícia nada mais é do que uma pesquisa que exige conhecimentos técnicos científicos e artísticos”. Segundo o dicionário Aurélio, perícia é habilidade, destreza, conhecimento, ciência, como também vistoria ou exame de caráter técnico especializado. O termo deriva do latim, peritia, que significa destreza e habilidade ou peritus, indivíduo erudito, capaz. (CAIRES, 2003.)

A perícia é uma prova técnica, realizada por um perito, que se utiliza da experiência para auxiliar o juiz. Constatando, explicando, elucidando, revelando e assim apontando um elemento de prova. Demanda a realização de um procedimento técnico, o qual se desdobra em vários atos: preservação, coleta, remessa, armazenamento, guarda, adoção do princípio cientifico, aplicação de técnica especifica, e outros. Importante é a confiabilidade de sua análise e conclusão. (MANZANO, 2011, p. 235).

A lei 4112/62 estabelece em seu art. 4º, inciso 5, que: “Cabe ao Psicólogo realizar perícias e emitir pareceres sobre a matéria de Psicologia”. Caires (2003) defende a diferença entre a entrevista psicológica pericial, em que o indivíduo não tem uma queixa, e sim, um fato jurídico e está sob o domínio legal, e entre a entrevista clínica. Justificando a diferenciação da técnica de psicodiagnóstico, pois o psicólogo está a serviço da justiça, o individuo o vê como aquele que investiga e julga como se fosse uma extensão do juiz.

Para tanto, a autora sugere procedimentos e técnicas baseados em sua experiência, como: estudo psicológico do processo, mapeamento do caso, mapeamento do desenvolvimento sócio afetivo, histórico médico, antecedentes pessoais e aplicação de testes. Na construção do laudo ou parecer, deve-se utilizar uma linguagem concisa. Sabendo que o judiciário necessita de respostas que embasem medidas legais, sem expor o sujeito além do necessário.

No Direito Brasileiro, existe a figura do perito oficial e do assistente técnico, podendo ser chamados tanto na fase do inquérito policial como durante a instrução criminal. Em juízo, o perito e o assistente podem ser ouvidos mediante o requerimento das partes ou de ofício pelo Juiz para esclarecer os laudos e pareceres apresentados (art. 159 e seguintes do CPP). O perito é um auxiliar do Juiz sujeito a impedimentos. O assistente técnico, indicado pela vítima e pelo acusado, é perito não oficial (MANZANO, 2011).

 Segundo Manzano (2011), a perícia realizada na fase do inquérito policial é investigativa, prova antecipada, se justifica se tiver natureza cautelar e quando é realizada deve ter assegurado o contraditório. A prova é colocada a prova, ressaltando que o juiz não está obrigado a aceitar o laudo ou parecer do perito. No Brasil, o princípio do liberatório está, no CPP e no CPC e defende o livre convencimento do juiz, sendo esse apenas mais um elemento de prova (MANZANO, 2011).

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Sobre a autora
Cristiana Jobim Souza

Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília- CEUB. Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário de Brasília - UNICEUB. Pós-Graduação Lato Sensu em Ciências Jurídicas, especialização em Direito Civil e Processo Civil - Universidade Cândido Mendes - UCAM/RJ. Pós-Graduação Lato Sensu Especialização em Psicologia Jurídica e de Investigação – Instituição de Ensino Superior UNICLASS/IPOG. Formação em Psicossomática pelo F.A.Cechin. Servidora do TJDFT desde 1982, onde atuou em: Práticas Cartorárias Fazenda/Criminal; Assessora Jurídica na área Penal e Processual Penal; Secretária Substituta Turma Cível; Secretária da Turma Criminal. Atua junto a Subsecretaria Especializada em Drogas e Perícias Criminais – SUAQ.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUZA, Cristiana Jobim. Psicologia jurídica: encontros e desencontros em sua prática. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3992, 6 jun. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29184. Acesso em: 28 mar. 2024.

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