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A Súmula nº 84 do STJ e a insegurança jurídica

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12/09/2014 às 15:19
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A edição da súmula 84 do STJ aparentemente outorgou direito real ao promitente comprador desidioso, que não registrou seu título translativo de propriedade ou de compromisso de compra e venda no Registro de Imóveis, equiparando e salvaguardando seus direitos.

Resumo: O presente artigo tem como objetivo o estudo acerca da insegurança jurídica a que os credores que buscam a cobrança de seus créditos estão sujeitos, desde a edição da súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça que aparentemente deu qualidade de direito real ao promitente comprador desidioso, que não leva seu título a registro, contrariando a determinação do art. 1.417 do Código Civil, equiparando e salvaguardando seus direitos tal qual ao promitente comprador zeloso, ao admitir a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido de registro. O trabalho inicia-se com a análise de alguns aspectos importantes da propriedade, como o seu conceito e sua evolução histórica e constitucional, a função social prestigiada pela Carta Magna de 1988, as diferentes formas de aquisição, conceito de posse e diferenças existentes entre os institutos. Em seguida, o foco do estudo passar a ser o registro imobiliário, resgatando sua raiz histórica e a evolução da matéria, discorrendo acerca dos princípios norteadores, principalmente os princípios da publicidade, presunção da validade dos atos e da fé pública, prioridade, continuidade, especialidade, concentração e legalidade. No último e derradeiro capítulo analisa-se os precedentes que deram azo à edição da referida súmula 84, seu objetivo, requisitos e exigências, cotejando a redação da súmula com as disposições do Código Civil e Lei de Registros Públicos (n° 6.015/73), e as razões a que levaram o Superior Tribunal de Justiça a prestigiar a posse do promitente comprador, flexibilizando a exigência de registro do título translativo da propriedade.

Palavras-chave: Propriedade. Posse. Aquisição de propriedade. Registro de imóvel. Escritura pública. Instrumento particular. Instrumento público. Contrato de compra e venda. Promessa de compra e venda. Embargos de terceiro. Fraude à execução.

Sumário: 1 Introdução – 2 Desenvolvimento: 2.1 Propriedade; 2.1.1 Evolução histórica e constitucional da propriedade; 2.1.2 O Código Civil e a aquisição de propriedade imóvel - Aquisição pelo registro do título; 2.1.3 Diferenças entre propriedade e posse; 2.2 Registro Imobiliário; 2.2.1 Evolução histórica e origem do registro; 2.2.2 Princípios do direito registral imobiliário; 2.2.3 Dos títulos registráveis; 2.3 Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça – 3 Considerações Finais – 4 Referências Bibliográficas – Termo de Isenção de Responsabilidade


1 INTRODUÇÃO

A dinâmica social de circulação de bens móveis, imóveis, mercadorias, desde a Idade Média é globalizada, não encontrando barreiras naturais, linguísticas ou de nacionalidade. Com o passar dos anos a mercância intensificou-se, modificando-se apenas a forma de fazer os negócios, outrora pessoalmente, e hoje virtualmente, graças à internet. Mais e mais tem-se comprado e vendido bens, a uma velocidade surpreendente e inimaginável, negócio que desfalcado de segurança põe em cheque a sobrevivência de alguns negócios, compra e venda pela rede mundial de computadores, importação e exportação, compra e venda de imóveis.

O foco do presente trabalho é a compra e venda de imóveis, no que se refere à relação havida entre contrato de compra e venda e propriedade, a qual segundo o art. 1.245 do Código Civil só se transfere com o registro do título translativo no Registro de Imóveis.

No entanto, a súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça possibilita ao promitente comprador que não teve o contrato de promessa de compra e venda, em que não foi previsto arrependimento, registrado na matrícula do imóvel, comprovada a ausência de fraude à execução, a defesa e o resguarde da posse e deste bem perante os credores do promitente vendedor-devedor, mediante embargos de terceiro. E é essa garantia atribuída ao promitente comprador, que desde a edição de referida súmula, tem pego de surpresa credores que após a indicação de bem imóvel à penhora, desimpedido e livre de ônus, descobrem que este foi prometido a venda a terceiro, que detém sua posse, impossibilitando-o de ter seu crédito quitado.


2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Propriedade

O direito à propriedade, no Brasil, é uma cláusula pétrea, garantia fundamental (CONDEIXA, 2014), constitucionalmente assegurado no art. 5º, inciso XXII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e é regulamentado e restringido por uma série de diplomas jurídicos, dentre eles a própria Constituição Federal (art. 5º, XXIII), o Código Civil de 2002 (Lei n° 10.406/2002), Decreto-lei n° 25/1937 e o Estatuto das Cidades (Lei n° 10.257/2001).

Conforme lembra Washington de Barros Monteiro (2007, 3 v., p. 84) sua clássica definição surgiu com o Código de Napoleão (art. 544): “O direito de gozar e dispor das coisas da maneira mais absoluta, desde que delas não se faça uso proibido pelas leis e regulamentos”. Tal conceituação sofreu uma série de críticas por graduar o absoluto, contrariando a lógica e a semântica (PEREIRA, 2012, p. 74).

O Código Civil preferiu enunciar os direitos do proprietário a conceituá-la (art. 1.228): “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”.  A propriedade constitui o “mais amplo dos direitos reais, o chamado direito real por excelência, ou o direito real fundamental” (RIZZARDO, 2009, p. 169). E em seguida completa o conspícuo doutrinador,

Em todos os campos da atividade humana e no curso da vida da pessoa, sempre acompanha a idéia do ‘meu’ e do ‘teu’, desde os primórdios das manifestações da inteligência, o que leva a afirmar ser inerente à natureza do homem a tendência de ter, de adonar-se, de conquistar e de adquirir.

No entanto, sua conceituação é deveras complexa, haja vista tratar-se de um direito complexo, sendo é necessário ter conhecimento de seus caracteres e  elementos constitutivos (MONTEIRO, 2007, 3 v., p. 84). Arnaldo Rizzardo (2009, p. 170) relembra a lição de Orlando Gomes que conceitua a propriedade em três dimensões:

1°) O conceito sintético, que corresponde à submissão de uma coisa em todas as suas relações com a pessoa.

2°) O conceito analítico, com o direito de usar, fruir e dispor de uma coisa, e de reavê-la de quem quer que injustamente a possua.

3°) O conceito descritivo, que abrange o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, pelo qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.

E por ser absoluto é oponível erga omnes, como também pleno, caracterizando como o direito mais completo e extenso dos direitos reais, constituindo a parte nuclear ou central dos “demais direitos reais, que pressupõem, necessariamente, o direito de propriedade, do qual são modificações ou limitações, ao passo que o direito de propriedade pode existir independentemente de outro direito real em particular” (MONTEIRO, 2007, 3 v., p. 84).

2.1.1 Evolução histórica e constitucional da propriedade

Entretanto, a propriedade nem sempre foi tratada como privada. Nos primórdios da civilização ela era coletiva, modificando-se pouco a pouco em individual, pela necessidade de dominação, gerando ambições e conflitos, suscitando a necessidade de regramento jurídico (PEREIRA, 2012, p. 67).

Conta-nos Caio Mário da Silva Pereira (2012, p. 68) que no Direito Romano a propriedade sempre foi individual, e com a invasão dos bárbaros, esta passou aos poderosos nobres, em troca de segurança e proteção. Com a eclosão da Revolução Francesa (1789) à propriedade restabeleceu-se o seu princípio quase que absoluto, como bem se observa no artigo anteriormente citado do Código Napoleônico, apelidado de Código da propriedade (FORNEROLLI, 2006, p. 3).

O modelo hoje conhecido nos países democráticos de regime capitalista foi forjado a partir das guerras e movimentos sociais, surgidos em resposta à opressão sofrida pela massa popular que reclamava por reformas assegurando-lhes direitos nunca antes imaginados. Assim, nasceu o Estado Social “a partir do modelo adotado pela Constituição mexicana de 1917 e pela da Alemanha (Constituição de Weimar) de 1919” (FORNEROLLI, 2006, p. 4). Este modelo, como pincelado linhas acima, trouxe restrições à propriedade, outrora absoluta, em benefício do bem comum. “Os bens são dados aos homens não para que deles extraiam o máximo de benefício e bem-estar com sacrifício dos demais, porém, para que os utilizem na medida em que possam preencher a sua ‘função social’”, ou seja, “o exercício do direito de propriedade há de ter por limite o cumprimento de certos deveres e o desempenho de tal função” (PEREIRA, 2012, p. 71). Como bem obtempera Luiz Antônio Zanini Fornerolli

a importância dada à propriedade e sua destinação social foi de tal magnitude que o constituinte fez inseri-la como princípio da atividade econômica, no capítulo que trata sobre a ordem econômica e financeira, garantindo a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (CF, art. 170, incs. II e III).

Observa-se, por oportuno, que o direito à propriedade, ainda que protegido constitucionalmente distanciou-se da propriedade originária do Direito Romano, por ter o seu uso, gozo e disposição restringida por disposições constitucionais ao lado de outras normativas, prestigiando os direitos sociais em detrimento dos meramente individuais.

2.1.2 O Código Civil e a aquisição de propriedade imóvel – Aquisição pelo registro do título

O Código Civil de 2002 disciplina a aquisição da propriedade imóvel a partir do art. 1.238, inserido no Livro III (Direito das Coisas), Título III (Da propriedade), Capítulo II (Da aquisição da propriedade imóvel). Neste capítulo são tratadas as formas de aquisição da propriedade, dividindo-se em Seção I (Da usucapião), Seção II (Da aquisição pelo registro do título) e Seção III (Da aquisição por acessão). Em que pese não previsto neste artigo, o legislador ainda previu no art. 1.784 deste código a aquisição de propriedade pela transmissão desta propriedade pelo direito hereditário.

De acordo com o Código Civil de 2002 a aquisição da propriedade imóvel através do registro do título em cartório competente está disciplinada nos artigos 1.245 ao 1.247. Disciplina o art. 1.245 do Código Civil de 2002 “Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis.”.

Assim, para a aquisição da propriedade imóvel não basta a confecção de contrato de compra e venda entre vendedor e comprador, é necessário ainda o registro deste contrato no Registro de Imóveis. Como bem resume Washington de Barros Monteiro (2007, 3 v., p. 101):

Dois são, portanto, os requisitos para a aquisição de bem imóvel: I – acordo de vontades entre adquirente e transmitente, o qual deve constar obrigatoriamente de escritura pública, se de valor superior ao legal o bem transmitido (Cód. Civil de 2002, art. 108); II – registro do título translativo na circunscrição imobiliária competente (Lei n. 6.015, de 31-12-1973).

Até o advento do Código Civil de 1916 a escritura pública de compra e venda tinha o efeito de transferir a propriedade (PEREIRA, 2012, p. 100). Relembra Caio Mário da Silva Pereira (2012, p. 101) que Teixeira de Freitas e Lafayette defendiam a necessidade de reforma do nosso direito, a fim de normatizar a obrigatoriedade de transcrição como elemento de transmissão da propriedade, tal qual no sistema alemão.

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Ao elaborar o projeto do Código Civil de 1916 Clóvis Beviláqua inspirou-se na doutrina germânica, adequando-o às carências e condições da propriedade no Brasil, atribuindo ao registro presunção juris tantum, admitindo prova em contrário. Pelo sistema alemão, o registro, indispensável e obrigatório, tem presunção juris et de iure. Como dito linhas acima, no direito brasileiro o contrato não tem efeito de transferir a propriedade do bem, gerando apenas direito pessoal. O direito real só é alcançado com o registro do título no Registro de Imóveis da circunscrição do bem. Obtempera Caio Mário da Silva Pereira (2012, p. 103) que

dentro de nossa sistemática, o registro como modo de aquisição não tem a natureza de negócio jurídico abstrato, como no germânico. É, então, um ato jurídico causal, porque está sempre vinculado ao título translatício originário, e somente opera a transferência da propriedade dentro das forças, e sob condição da validade formal e material do título.

Assim, prepondera em nosso ordenamento jurídico o “modelo alemão, por se perfectibilizar a propriedade com o ato do registro” (RIZZARDO, 2009, p. 305).

2.1.3 Diferenças entre propriedade e posse

Atualmente os sistemas legislativos mais modernos adotam a teoria objetiva da posse desenvolvida por Ihering, que segundo ele “para constituir a posse basta o corpus, dispensando o animus, elemento de escasso valor, longe de ser essencial” (MONTEIRO, 2007, 3 v., p. 18). Tal conceituação foi elaborada em contraposição à teoria subjetiva de Savigny que entendia ser necessário o animus, ou seja, de ter a coisa como sua, objetivando exercer sobre ela direito de propriedade.

Como já adiantado, a teoria objetiva foi a adotada pelo Código Civil de 2002 (art. 1.196), como também pelo de 1916 (art. 485): “Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”.

Vicente Ráo assim a conceitua, diferenciando-a da propriedade, citado por Arnaldo Rizzardo (2009, p. 17)

A posse é o poder de fato; a propriedade é o poder de direito. Ambas, conjuntamente, podem estar com o proprietário, mas dele também podem separar-se por dois diversos modos: ou quando o proprietário transfere a outrem, conservando a propriedade, ou quando a posse lhe é arrebatada contra a sua vontade.  

Conforme dispõe o Código Civil, detém a posse aquele que exerce um ou todos os poderes de proprietário, uso ou gozo, admitindo-se até mesmo o de reaver a coisa em poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha, como por exemplo, pelos embargos de terceiro, reintegração e manutenção de posse (art. 1.210 c/c art. 1.228, ambos do Código Civil).

Não se admite, todavia, a disposição do bem, alienação, oneração ou destruição (RIZZARDO, 2009, p. 18).

Enquanto a transmissão da propriedade se dá através do registro de um título, a posse constitui-se com o seu exercício fático, não havendo possibilidade de registro de posse pura, diferenciando-se portanto do registro dos direitos reais limitados de gozo ou fruição, como por exemplo o usufruto. Conforme antigo ditado popular, “só é dono quem registra”.

2.2 Registro Imobiliário

Os serviços notariais e de registro, na dicção do art. 1° da Lei dos Notários e Registradores (Lei n° 8.935/1994), tem como função garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Tais serviços são prestados pelo notário, ou tabelião, e oficial de registro, ou registrador, os quais são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro (Lei n° 8.935/1994, art. 3°).

Com relação ao registrador de imóveis “compete notadamente a prática de registro de direitos reais relativos a imóveis situados em determinada circunscrição geográfica, além da prática de outros atos previstos no art. 167 da Lei 6.015/1973” (LOUREIRO, 2012, p. 230).

Por oportuna, para melhor compreensão do tema, é salutar resgatar a evolução histórica do registro de imóveis no direito brasileiro.

2.2.1 Evolução histórica e origem do registro

O prenúncio do registro de imóveis surge com a edição da Lei Orçamentária n° 317 (art. 35), de 21/10/1843, ainda no Brasil Império, no reinado de Dom Pedro II, que instituiu o registro geral de hipotecas, com o fito de dar publicidade ao seu registro (BALBINO FILHO, 2012a, p. 17). Referida lei foi regulamentada pelo Decreto n° 482, de 14/11/1846.

Entretanto, efetivamente a história do registro de imóveis inicia-se com o Registro do Vigário, com a Lei n° 601, de 18/9/1850 e seu Regulamento n° 1.318, de 30/1/1854, “quando a posse passou a ser reconhecida perante o Vigário da Igreja Católica [...] e se fazia na freguesia da situação do imóvel. O efeito desse registro era meramente declaratório, para diferenciar o domínio particular do domínio público”, como lembra Décio Antônio Erpen e João Pedro Lamana Paiva (2012).

Com a instituição da Lei n° 1.237/1864 criou-se “o registro geral para a transcrição dos títulos de transmissão de imóveis sujeitos à hipoteca e a inscrição de hipotecas.” (LOUREIRO, 2012, p. 230). Esta lei disciplinou que somente o registro da transmissão entre vivos de bens sujeitos a hipoteca e a instituição de ônus reais operaria efeitos em relação a terceiros, desde a sua data. Além disso, “exigiu a escritura pública como da substância do contrato” (BALBINO FILHO, 2012b, p. 63).

O Decreto n° 370, de 2/5/1890, incluiu “entre os atos sujeitos a registro, a transmissão do domínio entre vivos” (BALBINO FILHO, 2012b, p. 63), os quais antes serem transcritos geravam apenas direitos pessoais.

Com a edição do Código Civil de 1916, e das leis n° 4.827/1924 e 18.542/1928, e do Decreto n° 4.857/1939, o registro imobiliário passou a constituir “espelho fiel das mutações jurídico-reais pelas quais passa a propriedade imóvel, seja por ato entre vivos, seja causa mortis, seja por força de atos judiciais.” (LOUREIRO, 2012, p. 231). Entretanto, “os assentamentos ainda eram centrados no indicador pessoal, observada a preponderância da série das pessoas intervenientes em negócios imobiliários” (CENEVIVA, 2010, p. 587).

Relembrando a lição de Clóvis Beviláqua, trazida por Luiz Guilherme Loureiro (2012, p. 231):

O registro de imóveis é o instrumento da publicidade das mutações da propriedade e da instituição dos ônus reais sobre imóveis. A lei anterior denominava-o geral; mas fora organizado com referência à hipoteca. O Código Civil aproveita o mesmo aparelho, dando-lhe maior amplitude.

Seguindo esta linha, no entanto promovendo importantes progressos com foco nos princípios da especialidade e publicidade, foi editada a Lei n° 6.015/73 que instituiu uma matrícula individual para cada imóvel (art. 176, I) abandonando a transcrição, consagrando o princípio da unitariedade matricial (BALBINO FILHO, 2012b, p. 120). Conforme previsto no art. 167 de referida lei, “na matrícula deverão ser registrados todos os atos que implicam constituição, transferência, alteração ou extinção de direitos reais (além de outros que a lei considera relevantes)” (LOUREIRO, 2012, p. 233).

2.2.2 Princípios do direito registral imobiliário

Vários são os princípios em que se baseiam o sistema registral, dentre eles da publicidade, da fé pública, da rogação ou instância, da prioridade, da qualificação, da territorialidade, da continuidade, da disponibilidade, da especialidade, da inscrição, da legalidade, da presunção de validade dos atos, da oponibilidade, da eficácia predeterminada, da não-sucedaneidade dos órgãos, do não-saneamento, da propriedade formal, da sucessividade, da retificação, da concentração e da cindibilidade (ERPEN; PAIVA, 2004, p. 174-184).

Não obstante a grande gama de princípios existentes ater-se-á aqueles diretamente relacionados ao tema em discussão, limitado o registro, em poucas linhas, de seus conceitos.

Como dito alhures, o princípio da publicidade foi um dos preceitos que nortearam a criação dos Registros Públicos no direito brasileiro, e a necessidade de sua maior abrangência culminou com a edição da Lei n° 6.015/73.

O art. 17 da Lei n° 6.015/73 garante que “qualquer pessoa pode requerer certidão do registro sem informar ao oficial ou ao funcionário o m,otivo ou interesse do pedido”. Ou seja, todos têm “possibilidade de conhecer o que nele se contém, como direito autônomo, próprio, pouco importando se há ou não, em acréscimo, outro direito relacionado com o bem ou direito correspondente ao registro” (CENEVIVA, 2010, p. 94).

Com relação aos princípios da presunção da validade dos atos e da fé pública oportuno relembrar o esclarecedor e sintético ensinamento de Afrânio de Carvalho, anotado por Nicolau Balbino Filho (2012a, p. 204), de que

Cada qual destes dois princípios tem seu significado próprio, mas foram amalgamados durante certo tempo no nosso país por uma corrente da doutrina que pretendeu dar ao primeiro, previsto na lei, a eficácia do segundo, omitido nela. O primeiro reforça a eficácia da inscrição, sem a tornar saneadora, pois mantém o primado final do direito subjetivo. O segundo abre uma brecha nesse primado ao admitir a inscrição saneadora relativamente ao terceiro de boa-fé que, confiando nela, adquire o direito. A regra é a tutela do direito subjetivo, ou a segurança jurídica; a exceção é a tutela do terceiro de boa-fé, ou a segurança do comércio.

Pelo princípio da prioridade, ao primeiro que apresentar o título para registro confere-se preferência na realização do ato e, “assim, a prioridade do direito real oponível erga omnes. Vale a máxima que diz: O Direito não socorre quem dorme.” (ERPEN; PAIVA, 2004, p. 175). Assim, em caso de “duplicidade de registro sobre o mesmo bem, considera-se nulo aquele feito por último, mesmo que envolva compromissos de compra e venda” (RIZZARDO, 2009, p. 310).

O princípio da continuidade exige o “encadeamento entre assentos pertinentes a um dado imóvel e às pessoas dele interessadas” (RIZZARDO, 2009, p. 309). Este princípio está previsto nos arts. 195, 196, 197, 222, 223, 225, 228, 229 e 237 da Lei n° 6.015/73.

Pelo princípio da especialidade “todo imóvel que seja objeto de registro deve estar perfeitamente individualizado” (LOUREIRO, 2012, p. 255), assim como o titular dos direitos e da dívida garantida sobre o imóvel, caso haja.

Décio Antônio Erpen e João Pedro Lamana Paiva bem sintetizam (2004, p. 183) a exigência do princípio da concentração, consagrado nos arts. 167, II, item 5, e 246, ambos da Lei n° 6.015/73, como de que todas as informações referente ao imóvel devem constar na matrícula do imóvel, qualquer “fatos e atos que possam implicar alteração jurídica do bem, mesmo em caráter secundário, mas que possam ser oponíveis, sem a necessidade de se buscar alhures informações outras”.

E por fim, o princípio da legalidade determina a análise prévia do oficial de registro antes de sua transcrição dos títulos a ele apresentados, quanto à legalidade e validade do título, a fim de apurar a existência de vícios que tornem o título nulo ou anulável (RIZZARDO, 2009, p. 312).

2.2.3 Dos títulos registráveis

Nosso sistema registral, assim como o espanhol, trata-se de um sistema de registro de direitos, e não meramente de títulos. Estes, depois de protocolados são inscritos no Registro de Imóveis. Assim, enquanto os títulos constituem o ponto de partida para registro ou averbação, o direito real e/ou sua titularidade consubstanciado no título representa o ponto de chegada (LOUREIRO, 2012, p. 275-276).

Ou seja, somente os direitos consignados nos títulos tem acesso ao fólio real. No entanto, existem requisitos a serem atendidos por esses títulos, como o atendimento às formalidades legais, devendo conter “ato ou negócio jurídico registrável [Lei n° 6.015/73, art.167], com a perfeita descrição e identificação do objeto e das partes”, como pondera Luiz Guilherme Loureiro (2012, p. 276).

De acordo com o art. 221 da Lei n° 6.015/73 somente são admitidos registro:

I - escrituras públicas, inclusive as lavradas em consulados brasileiros;

II - escritos particulares autorizados em lei, assinados pelas partes e testemunhas, com as firmas reconhecidas, dispensado o reconhecimento quando se tratar de atos praticados por entidades vinculadas ao Sistema Financeiro da Habitação;

III - atos autênticos de países estrangeiros, com força de instrumento público, legalizados e traduzidos na forma da lei, e registrados no cartório do Registro de Títulos e Documentos, assim como sentenças proferidas por tribunais estrangeiros após homologação pelo Supremo Tribunal Federal;

IV - cartas de sentença, formais de partilha, certidões e mandados extraídos de autos de processo.

V - contratos ou termos administrativos, assinados com a União, Estados, Municípios ou o Distrito Federal, no âmbito de programas de regularização fundiária e de programas habitacionais de interesse social, dispensado o reconhecimento de firma.  (Redação dada pela Lei nº 12.424, de 2011)

Nosso ordenamento jurídico estabelece no art. 108 do Código Civil de 2002 que a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País. Entretanto a regra é excepcionada pela primeira parte do dispositivo que estabelece que a necessidade de escritura pública pode ser afastada por lei especial.

Conforme lição de Leonardo Brandelli (2011, p. 373) escritura pública “é o ato notarial mediante o qual o tabelião recebe manifestações de vontade endereçadas à criação de atos jurídicos. [....] É o instrumento (público-notarial) que contém em si um ato jurídico”. Lembra o conspícuo doutrinador (2011, p. 377) que “dentre as exceções à regra do art. 108 do Código Civil, temos o compromisso de compra e venda que, embora constitua direito real após o registro, poderá ser lavrado por instrumento particular, nos termos do art. 1.417 do mesmo Código”.

Oportuno lembrar que os requisitos da escritura pública estão dispostos no art. 215 do Código Civil, na Lei n° 7.433/85, no Decreto n° 93.240/86, e ainda, nas normas editadas pelas Corregedorias-Gerais de Justiça de cada Estado.

Já o escrito particular registrável é “aquele ao qual a lei dá força declaratória, translativa ou extintiva, de direito real sobre o imóvel, e que satisfaça os requisitos formais indicados no artigo” (CENEVIVA, 2010, p. 573).

2.3 Súmula 84 do Superior Tribunal de Justiça

Como já assentado, somente o registro público do título tem o condão de transferir a propriedade, atribuindo ao proprietário o poder de proteger o seu patrimônio nas formas previstas em lei. Consequentemente a falta de registro em cartório público apenas gera efeitos e obrigações entre os contratantes, não produzindo qualquer efeito perante terceiros.

Nada obstante, está pacificado na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, desde a edição da súmula 84 (DJ 2/7/1993), a possibilidade, em processo de execução, de proteção de bem imóvel penhorado por meio de embargos de terceiro, por promitente comprador que não tenha registrado título translativo de propriedade na matrícula do imóvel, e que detém a sua posse, mesmo estando o imóvel registrado em nome do promitente vendedor.

Relembrando o conceito de embargos de terceiro dado por Pontes de Miranda (in CUNHA, 1986, p. 2):

Os embargos de terceiro são a ação do terceiro que pretende ter direito ao domínio ou outro direito, inclusive a posse, sobre os bens penhorados ou por outro modo constritos. O usufrutuário, por exemplo, é senhor; o locatário é possuidor. Se a penhora não lhes respeita o direito, um ou outro pode embargar como terceiro.

No entanto, até a edição da súmula 84 pelo Superior Tribunal de Justiça esta tese não era admitida, existindo súmula com conteúdo diametralmente oposto publicada pelo Supremo Tribunal Federal (621, DJ de 29/10/1984), a qual enuncia que “não enseja embargos de terceiro à penhora a promessa de compra e venda não inscrita no registro de imóveis.”.

O entendimento do Supremo Tribunal Federal prestigiava o art. 22 do Decreto-lei n° 58/37, estando de acordo com toda a legislação pátria, mantida nos dias de hoje, em que pese a não contemporaneidade. Seus precedentes não discutiram a existência ou não de posse (CUNHA, 1986, p. 3).

No primeiro precedente que proporcionou a construção da súmula em exame [84], o relator Min. Sálvio de Figueiredo votou pelo provimento do recurso, confirmando a súmula 621 do STF, no que foi acompanhado pelo Min. Barros Monteiro, registrando em seu voto:

Destarte, a inscrição no Registro Público do contrato preliminar de compra e venda de imóvel imprime ao direito do adquirente o efeito que decorre do próprio domínio: oposição a todos. Enquanto não efetuada a inscrição, existe apenas o direito obrigacional do comprador, cujo inadimplemento, como é curial, se resolve em perdas e danos entre as partes, em outras palavras, somente gera efeitos inter partes.

[...]

Com a inobservância pelos embargantes do sistema legal para transmissão de propriedade, no momento em que o credor recorreu ao Poder Judiciário, para satisfazer seu crédito, encontrou o imóvel inserido no patrimônio do devedor, posto que somente o registro opera a transferência do domínio (art. 530, I, CCB).

De outra parte, cumpre salientar que o mesmo sistema legal põe à disposição dos embargantes os mecanismos jurídicos de proteção ao seu direito, quer seja através da inscrição da promessa de compra e venda no registro imobiliário para valer contra terceiros, quer seja pela adjudicação compulsória do bem, ao final do pagamento, quando a decisão judicial supre a vontade do alienante que se recusa outorgar escritura definitiva. Compete, pois, ao interessado provocar o Judiciário em busca da defesa de seus interesses, porquanto é sabido que dormientibus non sucirrit jus. (REsp 188  PR  1989/0008421-6 , j. 8/8/1989, DJ 31/10/1989, pg 16557)

Entretanto, os demais ministros, Bueno de Souza, Athos Carneiro e Fontes de Alencar votaram pelo não provimento do recurso. Em seu voto o Min. Bueno de Souza fez uma retrospectiva das decisões do STF contraditórias a sua própria súmula (621), a partir de 1963, as quais baseavam-se unissonamente na possibilidade de defender-se a posse do promitente comprador por meio de embargos de terceiro, em caso de não comprovada fraude à execução.

Em um dos votos avocado pelo Min. Bueno de Souza (voto-vista proferido no RE 76.769-GB, Primeira Turma, j. 19/11/1973), o Min. Rodrigues Alckmin destacando do relatório do Min. Luiz Gallotti transcreve lição do mestre Pontes de Miranda:

O direito, que se supõe no art. 707, turbado ou esbulhado (“prejudicado, melhor fora dito), não é o direito a que se referia a Ordenação do Livro III, Título 81, ao falar do direito de apelar, que tem o terceiro, porque alí se tratava da intervenção na relação jurídica processual, na discussão da pretensão à sentença, e não da execução, ou, em geral, da constrição: é o direito do terceiro, que foi objeto de constrição judicial. Ora, os bens arrestáveis, sequestráveis, depositáveis, penhoráveis, etc., não são só os que são objeto de propriedade (senso estrito), de direito das coisas. São também direitos, pretensões, ações. Portanto, sempre que a constrição judicial apanhou “direito” (títulos de crédito, direitos, pretensões, ações, art. 930, II e V) está autorizado o emprego de embargos de terceiro prejudicado – terceira espécie do art. 707, sendo que o legislador preferiu considerá-la compreensiva dos embargos de terceiro senhor. Quando a eficácia do ato judicial fere a órbita do direito, pretensão, ou ação do terceiro, constringe-o.

Do estudo dos acórdãos que deram ensejo à edição da súmula 84, vê-se que o Superior Tribunal de Justiça prestigiou a defesa do direito a posse do promitente comprador, exercida em decorrência da pactuação de instrumento particular de promessa de compra e venda, embora não registrado. Destarte, preferiu o Tribunal prestigiar a posse e relativizar a obrigatoriedade do registro.

O Min. Luiz Fux, quando ainda no STJ, confirmou e assentou a necessidade de registro do título translativo no Registro de Imóveis como providência à transmissão da propriedade. No entanto, em seu voto afirmou que a posição adotada pelo Tribunal, de flexibilização da exigência do registro no Registro de Imóveis, tem como fim a realização da justiça:

PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE TERCEIROS. IMÓVEL PENHORADO DE PROPRIEDADE DE EX-CÔNJUGE ESTRANHO À EXECUÇÃO FISCAL. AUSÊNCIA DE REGISTRO DO FORMAL DE PARTILHA. [...]

1. A transmissão da propriedade de bem imóvel, na dicção do art. 1.245 do Código Civil, opera-se com o registro do título translativo no Registro de Imóveis, sem o qual o alienante continua a ser havido como dono do imóvel.

2.  A Lei 6.015, a seu turno, prevê a compulsoriedade do registro e averbação dos títulos ou atos constitutivos, declaratórios, translativos e extintivos de direitos reais sobre imóveis reconhecidos em lei, inter vivos ou mortis causa, quer para sua constituição, transferência e extinção, quer para sua validade em relação a terceiros, quer para a sua disponibilidade.

3. Deveras, à luz dos referidos diplomas legais, sobressai clara a exigência do registro dos títulos translativos da propriedade imóvel por ato inter vivos, onerosos ou gratuitos, porquanto os negócios jurídicos, em nosso ordenamento jurídico, não são hábeis a transferir o domínio do bem. Assim, titular do direito é aquele em cujo nome está transcrita a propriedade imobiliária.

4. Entrementes, a jurisprudência do STJ, sobrepujando a questão de fundo sobre a questão da forma, como técnica de realização da justiça, vem conferindo interpretação finalística à Lei de Registros Públicos. Assim é que foi editada a Súmula 84, com a seguinte redação: "É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda de compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro". [...] (REsp 848.070/GO, rel. Ministro Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 3/3/2009, DJe 25/3/2009)

Neste ínterim, não obstante a opinião de João Pedro Lamana Paiva e Tiago Machado Burtet em artigo publicado no IRIB (2003), é impossível concluir que a súmula 84 do STJ perdeu sua validade ante a edição do Código Civil de 2002, pela clareza do texto da lei civil ao reforçar “a idéia de que há a necessidade do registro da promessa para gerar um direito real”.

Por fim, do exame dos julgados proferidos pelo STJ denota-se também a exigência de prova de inexistência de fraude à execução, hipótese que acaso reconhecida, impõe a improcedência dos embargos de terceiro e autoriza a alienação ou adjudicação do bem penhorado, p.e.

Não obstante esteja consagrado na jurisprudência a admissão de defesa da posse do promitente comprador por meio de embargos de terceiro, tal segurança conferida ao comprador acaba por esvaziar os registros oficiais, enfraquecendo o sistema registral que não espelha a realidade. De mais a mais, esta prática, cria “uma subespécie de propriedade, a informal”, que possibilita a “evasão de divisas, lavagem de dinheiro e sonegação” (ERPEN; PAIVA, 2004, p. 180).

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Sobre a autora
Juliana Wiese Dallabona

Bacharel em Direito (UNIVALI/SC) e Pós-graduado em Direito Notarial e Registral pela Universidade Anhanguera-Uniderp.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DALLABONA, Juliana Wiese. A Súmula nº 84 do STJ e a insegurança jurídica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4090, 12 set. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29473. Acesso em: 29 mar. 2024.

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