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Função social da posse no Direito brasileiro

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O objetivo deste trabalho é fornecer substratos constitucionais e legais para a proteção da função social da posse.

Resumo: O objetivo deste trabalho é fornecer substratos constitucionais e legais para a proteção da função social da posse.

Sumário: Introdução. 1. Teorias Sociológicas sobre a Posse. 2. Fundamento Constitucional da função social da posse. 3. Fundamentos legais da função social da posse. Conclusão.


Introdução

A Constituição Federal de 1988 previu expressamente em varias partes do seu texto a necessidade de que as propriedades observassem a função social. Referida previsão, muito festejada por doutrinadores e estudiosos, confere uma nova camada ao direito de propriedade.

O direito de Propriedade, sempre visualizado pela doutrina civilista como um direito absoluto, hoje em dia pode ser relativizado em determinadas hipóteses. A propriedade não pode ser exercida em descompasso com o contexto social que a circunda, pelo contrário, deve ser exercida levando em conta todo esse contexto, de forma que não o prejudique, mas sim o resguarde.

A observância da função social passou a ser compreendida como a própria essência do direito de propriedade, seu pressuposto tal como ensina o ex-ministro do STF, Eros Roberto Grau (2006, p. 232). A função social tornou-se então fundamento do direito de propriedade.

Mas e a posse, instituto civilista ora encarado como direito real, ora como direito especial, deve observar a função social? Poderíamos falar de uma função social da posse?


1 Teorias Sociológicas sobre a Posse.

De acordo com Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 29), as teorias sociológicas datam do inicio do século passado, sendo particularizadas pela análise da posse de forma autônoma para com a propriedade, de forma que à medida que dão ênfase ao caráter econômico e social deste instituto, ensejam em determinadas situações prevalência em relação à propriedade.

Podemos citar três estudiosos cujas análises estavam voltadas para esta nova faceta da posse: Silvio Perozzi, Raymond Saleilles e Antonio Hernandez Gil.

O entendimento de Silvio Perozzi, com supedâneo nos ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 29), pode ser resumido da seguinte forma: “a posse prescinde do corpus e do animus e resulta do “fator social”, dependente da abstenção de terceiros, como foi dito, que se verifica costumeiramente, como no exemplo por ele fornecido de um homem que caminha por uma rua com um chapéu na cabeça”.

Já Raymond Saleilles (apud GONÇALVES, 2012, p. 29) realçava o caráter autônomo da posse para com a propriedade. Segundo ele

“O critério para distinguir a posse da detenção não é o da intervenção direta do legislador para dizer em que casos não há posse, como entende IHERING, mas sim o de observação dos fatos sociais: há posse onde há relação de fato suficiente para estabelecer a independência econômica do possuidor”.

Hernandez Gil (apud GONÇALVES, 2012, p. 29), no que pertine a função social, ensinava que esta última “atua como pressuposto e como fim das instituições reguladas pelo direito. Na sua doutrina, as grandes coordenadas da ação prática humana, que são a necessidade e o trabalho, passam pela posse”.

A par destes ensinamentos podemos notar que a posse não seria um mero apêndice da propriedade, pelo contrário, goza de autonomia suficiente para suplantar o direito de propriedade, notadamente quando constatarmos o efetivo cumprimento da função social, tal como veremos no próximo item.


2 Fundamento constitucional da função social da posse

Como já visto a Constituição Federal de 1988 no art. 5, inciso XXIII, resguarda a função social da propriedade, no entanto, nada dispõe expressamente acerca da função social da posse.

Ainda assim, com base nos ensinamentos do Excelentíssimo Ministro do STF, Gilmar Mendes (2012, p. 369), temos que o conceito constitucional de propriedade não se confunde com o conceito privatístico, de forma que a exegese constitucional lhe confere um campo de abrangência deveras amplo. Seguem os ensinamentos do Ministro:

“Vê-se, assim, que o conceito de constitucional de proteção ao direito de propriedade transcende à concepção privatística estrita, abarcando outros valores de índole patrimonial, como as pretensões salariais e as participações societárias. Em rigor, trata-se de especificações do direito de propriedade no sentido de que Bobbio fala de especificações (novas) dos direitos fundamentais.”

Levando em conta esta abrangência do direito de propriedade sob a ótica constitucional, podemos notar que vários dispositivos contidos na nossa Carta Magna de 88 albergam a conclusão da proteção também a uma posse que esteja voltada ao meio social, senão vejamos:

Primeiramente, no art. 183 encontramos a previsão da usucapião especial urbana, instituto através do qual “aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

Há ainda a previsão da usucapião especial rural, contida no art. 191, através da qual “aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como seu, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra, em zona rural, não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade”.

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Através das modalidades de usucapião especiais podemos notar que a Constituição Federal conferiu proteção à função social da posse, caso contrário aquele que possuísse um imóvel urbano, à revelia do seu proprietário registral, ainda que utilizando para a sua moradia, ou para o cultivo das terras, nítidas funções de cunho social, não seria capaz de usucapir a propriedade alheia. Nota-se uma forte autonomia da posse, sendo evidente a influência das teorias sociológicas antes vistas.

Corroborando esta análise temos a opinião de Carlos Roberto Gonçalves (2012, p. 30), para quem

“Em nosso país, o grande passo na direção da concepção social da posse foi dado com a reafirmação, no inciso XXIII do art. 5º da Constituição Federal de 1988, do princípio de que “a propriedade atenderá a sua função social”, complementado pelas regras sobre a política urbana, atinentes à usucapião urbana e rural (CF, arts. 183 e 191)”.


3 Fundamentos legais da função social da posse.

Nosso Código Civil de 2002, assim como o de 1916, não trouxe uma previsão expressa acerca da observância da função social da posse, ao contrário do que fez com o direito de propriedade. Ainda assim, importante setor doutrinário entende que referida obrigação estaria implícita.

Com base em Flavio Tartuce (2011, p. 762) entendemos que a função social da posse realmente está implícita no nosso Código Civil, interpretação esta aferida com base nos seguintes dispositivos: arts. 1.238, parágrafo único; 1.242, parágrafo único; e 1.228, § 4º e 5º.

Os dispositivos citados fazem alusão à chamada posse trabalho, ou seja, a posse exercida visando ora o cultivo das terras, ora a moradia, e não apenas uma posse desprovida de substrato social, sem uma funcionalidade.

Os prazos para a aquisição da propriedade pela usucapião são reduzidos pela atual codificação privada, em sua maioria quando constatado o exercício da posse trabalho. Na hipótese da usucapião extraordinária o prazo será de 10 anos caso o possuidor haja estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.

A codificação atual também prevê a possibilidade do proprietário ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

Também é digna de nota a previsão contida no art. 10 do Estatuto das Cidades, Lei 10.257/2001, através da qual “as áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural”.


Conclusão

Finalizando esta abordagem, não pairam dúvidas acerca da proteção tanto constitucional quanto legal à função social da posse, não obstante os diplomas normativos tenham expressado apenas a função social no que tange à propriedade. Os dispositivos normativos analisados neste trabalho bem realçam os entendimentos da corrente sociológica, notadamente os ensinamentos de Saleilles e Hernandez Gil, na medida em que nosso ordenamento jurídico possibilita que um possuidor se sobreponha a um proprietário, quando este último afronta a função social, conceito este dotado de alta relevância na atual seara civil constitucional.


Referências:

GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2012.

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo: Editora Método, 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.

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Sobre o autor
Raphael de Jesus Serra Ribeiro Amorim

Analista Judiciário, área judiciária do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMORIM, Raphael Jesus Serra Ribeiro. Função social da posse no Direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4119, 11 out. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/29785. Acesso em: 18 mar. 2024.

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