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A herança do cônjuge sobrevivo e o novo Código Civil

01/07/2002 às 00:00
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Há muito é confundida a posição do cônjuge sobrevivente na herança do falecido, acreditando-se que metade da herança sempre lhe será reservada. No entanto, ele somente assume a real qualidade de herdeiro na inexistência de herdeiros descendentes e ascendentes.

Em existindo representantes das classes antes referidas o cônjuge nunca herda.

Assim, cabe introduzir o tema esclarecendo que a parte que cabe ao cônjuge sobrevivente, em muito confundida com herança, não caracteriza direito sucessório. O que lhe toca tem fundamento na extinção do vínculo matrimonial em decorrência da morte de um dos componentes da sociedade conjugal, isto é, no regime da comunhão universal, e no regime de comunhão parcial, ocorrerá a divisão do patrimônio adquirido durante o casamento. Possui o cônjuge sobrevivente, apenas a meação dos bens do casal, isto é, a metade daqueles bens conquistados na constância do casamento.

A condição de herdeiro, por outro lado, será somada a de meeiro sempre que inexistam os primeiros herdeiros que o antecedem na ordem da vocação hereditária (artigo 1.603 – Lei nº 3.071/16 - Código Civil em vigor). Ao contrário dos herdeiros descendentes e ascendentes, o cônjuge não é herdeiro necessário e sim facultativo. Assim, em não possuindo herdeiros necessários, mesmo que casado, não importando o regime de bens adotado, poderá o titular da herança dispor de sua totalidade por testamento, pois o cônjuge é mero herdeiro facultativo.

Ensina Arnaldo Rizzardo serem inúmeras as críticas quanto ao lugar ocupado pelo cônjuge na ordem da vocação: "Na verdade, parece que, em vista dos laços matrimoniais, que envolvem duas existências entrelaçadas pelo afeto, pela união, pelos esforços comuns e sacrifícios, mais consentâneo com a realidade seria colocar o cônjuge depois dos descendentes."(1)

Cabe, por outro lado, destacar que, esta, nem sempre foi a posição do cônjuge na ordem da vocação hereditária.

Pelo Direito Brasileiro anterior ao Código Civil, prevalecia na sociedade conjugal o regime da comunhão de bens, na falta de contrato antenupcial em contrário; por isso, cabia ao consorte supérstite, por direito próprio, não como herança, a metade do acervo resultante de se confundirem os patrimônios dos dois esposos; tocava-lhe em partilha a outra metade, se não havia descendentes, ascendentes, nem colaterais até o décimo grau (2).

No regime das Ordenações o cônjuge herdava, em quarto lugar, após os colaterais. Somente com o Decreto nº 1.839/1907, conhecida por Lei Feliciano Pena, passou a ocupar o terceiro lugar, no que foi seguido pelo Código Civil, no seu artigo 1.611.

A Lei nº 4.121 de 1962 e, posteriormente a Lei nº 6.015/77, deram nova redação a este artigo.

Com a edição da nova Lei nº 10.406 de 10-01-2002, o cônjuge passa a ocupar lugar de destaque sendo-lhe atribuída a qualidade de herdeiro necessário.

No entanto, a redação do artigo 1.829 nos leva, com certeza, a inúmeras indagações, já que impossível afirmar ser de fácil e claro entendimento.

A nova ordem da vocação hereditária defere a herança em primeiro lugar, "aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (artigo 1640, parágrafo único); ou se no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares".

Assim, se impõe que a interpretação seja realizada parte à parte.

A primeira conclusão que se extrai da disposição legal é que o cônjuge só poderá herdar, em concorrência, quando o falecido deixou patrimônio particular, isto é, bens adquiridos antes da união.

Logo, se o falecido não possuia bens particulares o cônjuge não herda, só recebe a meação. Isto demonstra claramente o caráter protetivo do instituto.

Havendo patrimônio particular, ele receberá, além de sua meação, se casado sob o regime de comunhão parcial ou da separação convencional, já que a lei não o exclui, mais uma parcela sobre todo o acervo.

Para melhor esclarecer, se o regime de casamento era o da comunhão universal ou da separação obrigatória, (artigo 1.641 e não o artigo 1.640 – parágrafo único como o legislador equivocadamente fez constar), o cônjuge não herdará.

Não herda, também, se, no regime de comunhão parcial, o autor da herança não tiver deixado bens particulares, porque aí tocar-lhe-á apenas a meação.

O que importa, pela real finalidade do instituto em estudo, é a proteção ao cônjuge.

Quando em concorrência com os descendentes, conforme o disposto no artigo 1.832, caberá ao cônjuge sobrevivo quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança se for ascendente dos herdeiros com quem concorre.

No entanto, se uma pessoa falece deixando três filhos de casamento anterior, a herança dividir-se-á em quatro partes iguais, partilhando-se, portanto, por cabeça, cabendo uma das partes ao cônjuge e aos demais aos descendentes.

Todavia, se os descendentes forem filhos comuns, o sobrevivo nunca poderá receber quota inferior a quarta parte. Assim, conforme ensina Maria Helena Diniz em seu Curso de Direito Civil, recentemente publicado e de acordo com a nova lei: "se tais filhos também forem do cônjuge sobrevivo a participação deles ficará reduzida diante do limite da quota mínima estabelecida legalmente, pois, se a parte do cônjuge não pode ser inferior a ¼, eles concorrerão a ¾ da herança". Logo, afirma a autora, se a herança for de cem mil reais, o cônjuge receberá 25 mil e entre os quatro filhos serão divididos os setenta e cinco mil reais restantes.

Ao concorrer com os ascendentes do falecido (art. 1.836), agora em segundo lugar na ordem da vocação hereditária, a vantagem do cônjuge supérstite, de certo modo, se amplia, isto é, concorrerá independente do regime de casamento adotado pelos nubentes.

Concorrendo com os pais do cônjuge falecido, dividirá a herança por três, cada um será herdeiro por cabeça: pai, mãe e cônjuge.

Porém, se um dos ascendentes do falecido for pré-morto, a herança partir-se-á igual por igual entre o cônjuge e o ascendente sobrevivente.

Da análise dos dispositivos pertinentes verifica-se a extinção da figura do usufruto vidual. A razão é cristalina. Ora, o usufruto vidual tinha a finalidade precípua de proteger o cônjuge sobrevivente das agrúras da vida amparando-lhe se permanecer o estado de viúvez. Com a nova previsão legislativa, na qualidade de herdeiro necessário, ele não está mais a descoberto. Assevera Maria Helena Diniz que o direito ao usufruto só tem cabimento nos ordenamentos em que o cônjuge sobrevivo não participa da herança.

Persiste no entanto, mais uma vez a demonstrar a proteção do legislador, o direito real de habitação naqueles casos em que o imóvel destinado à residência da família, seja o único daquela natureza a inventariar. A modificação do direito de habitação se reflete na extensão do direito a todos os regimes matrimoniais, sem distinção, como ocorria no direito anterior ao que Orlando Gomes já qualificava de ‘injustificável’. O direito real de habitação incide em prédio residencial, contanto que seja o único desta espécie a inventariar. Sendo o bem a residência do sobrevivente, isto já implica, sem solução de continuidade, na imposição do gravame. Existindo outros bens o direito não se institui. Mas uma mudança se faz presente, pois restou afastada a limitação do gravame a manutenção do estado de viúvez do sobrevivente.

Para finalizar, cabe destacar que embora as inovações contidas no novo diploma, continua em vigor em nosso Ordenamento o princípio da liberdade relativa de testar, ou seja, em existindo herdeiros necessários, não poderá o titular da herança dispor, através de testamento, da totalidade de seus bens. Necessariamente, deverá preservar a parte que a lei lhes resguarda, denominada de ‘legitima dos herdeiros necessários’. Com a inclusão do cônjuge na qualidade de herdeiro necessário (artigo 1.845), aquele testador que na inexistência de descendentes ou ascendentes poderia dispor de todo o seu patrimônio sem nada reservar ao cônjuge que era herdeiro facultativo, pela nova lei não mais poderá fazê-lo devendo, por conseguinte, reservar-lhe a parte protegida por lei.

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Ademais, isto alcança os testamentos realizados anteriormente a vigência do novo regramento já que a lei que regula a transmissão de bens em virtude do falecimento de seu titular é aquela vigente à época da abertura da sucessão (artigo 1787 – nova lei). Logo, se um índivíduo sem herdeiros necessários (descendentes e ascendentes), no ano 2000 dispôs de seus bens em favor de um sobrinho, muito próximo afetivamente, sem contemplar o cônjuge levando em consideração a existência de meação a favor deste, vindo a falecer em 2003, terá afetadas as disposições testamentárias, que necessariamente sofrerão redução em virtude do disposto no artigo 1.967 e seus parágrafos.

Assim, as modificações trazidas pelo legislador em matéria de direito sucessório beneficiam o cônjuge sobrevivente, que inexplicavelmente, era afastado da herança daquele com quem, pela lógica da união que mantiveram, somara esforços, dividira afetividade e companheirismo para, ao final, ser considerado apenas um mero sócio. Com acerto, a legislação atual contempla-o como herdeiro necessário.

Assim, cabe concluir:

- o cônjuge que era herdeiro facultativo passou a ser herdeiro necessário;

- concorre com os descendentes, na mesma proporção, quando não tenha sido casado com o falecido pelo regime da comunhão universal ou pelo regime de separação obrigatória e quando pelo regime de comunhão parcial tivesse o autor da herança patrimônio particular;

- concorre com os ascendentes sobrevivos em igualdade de condições independente do regime de casamento adotado;

- não mais existe o direito ao usufruto vidual;

- persiste o direito real de habitação em favor do cônjuge sobrevivo sem limitação pela manutenção do estado de viuvez.


Notas:

1) Arnaldo Rizzardo – Direito das Sucessões – Vol 1, ed. Aide.,1996, pág. 181.

2) Carlos Maximiliano – Direito das Sucessões – Vol 1 – ed. Liv. Ed. Freitas Bastos – 1937, pág. 186.

3) Maria Helena Diniz – Curso de Direito Civil Brasileiro – vol 6, ed. Saraiva, 2002, pág. 106.


Bibliografia:

Beviláqua, Clóvis. Direito das Sucessões. Ed. Rio, 1938.

Dantas, Santiago. Direito de Família e das Sucessão. Ed. Forense, 1991, 2a. ed.

Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, Vol. 6. Ed. Saraiva, 2002, 16a. ed.

GAMA, Ricardo Rodrigues, Direito das Sucessões, Ed. Edipro, 1996, 1a. ed.

Gomes, Orlando. Sucessões. Ed. Forense, 1996, 3a. ed.

Maximiliano, Carlos. Direito das Sucessões. Freitas Bastos, 1937

Oliveira, Itabaiana de. Tratado de Direito das Sucessões. Livraria Freitas Bastos, 1996.

Oliveira, Wilson de. Sucessões. Ed. Del Rey, 1995.

Pacheco, José da Silva. Inventários e Partilhas. Ed. Forense, 1993, 7a. ed.

RIZZARDO, Arnaldo, Direito das Sucessões, vol. 1 e 2, ed. aide, 1996, 1a. ed.

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Sobre a autora
Fernanda de Souza Rabello

advogada em Porto Alegre (RS), professora da PUC/RS e ULBRA

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RABELLO, Fernanda Souza. A herança do cônjuge sobrevivo e o novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 57, 1 jul. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2999. Acesso em: 28 mar. 2024.

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