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A possibilidade jurídica de superação das Cláusulas Pétreas na Constituição Federal de 1988

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Apesar das várias correntes existentes, prevalece o entendimento, no Brasil, de que as cláusulas pétreas taxadas na Constituição Federal não podem ser superadas pelo poder constituinte derivado reformador.

Resumo: O presente artigo trata da possibilidade jurídica de superação dos limites materiais na Constituição Federal de 1988 pelo poder constituinte derivado reformador. Limites materiais são proibições explícitas no texto constitucional que têm como objetivo impedir reformas que vão de encontro ao núcleo intangível da Constituição. São as chamadas cláusulas pétreas. Essas cláusulas há tempos vêm causando momentos paradoxais e intensos debates doutrinários mundo afora no que diz respeito à sua possibilidade de superação. Destarte, analisam-se as três correntes doutrinárias que surgiram a esse respeito. A primeira contesta a legitimidade ou a eficácia jurídica das cláusulas pétreas. A segunda as reconhece, entretanto, têm-nas como relativas, sendo suscetíveis de superação por meio da dupla revisão. Finalmente, a terceira corrente considera as cláusulas pétreas como imprescindíveis e insuperáveis.

Palavras-chave: Cláusulas pétreas. Possibilidade jurídica de superação. Direito Constitucional.

ABSTRACT: This article refers to the legal possibility of overcoming material limits on the Brazilian Constitution of 1988 by derived constituent power of reforming. Material limits are explicit prohibitions in the constitutional text, which aim to prevent reforms that confront the intangible core of the Constitution. They are called immutable clauses. For a long time, these clauses have caused paradoxical moments and intense doctrinal discussions worldwide regarding the possibility of overcoming them. In view of this, we analyze the three doctrinal trends that have emerged about this issue. The first one contests the legitimacy or the legal effectiveness of the immutable clauses. The second trend considers these clauses as relative, capable of being overrun by double review. Finally, the third one considers the immutable clauses as indispensable and insuperable.

Keywords: Immutable clauses. Legal possibility of overcoming. Constitutional Law.

Sumário: CONSIDERAÇÕES INICIAIS. 1 POSSIBILIDADE JURÍDICA DE SUPERAÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS. 1.1 Divergência doutrinária. 1.2 Ilegitimidade e ineficácia jurídica dos limites materiais. 1.3 Dupla revisão: relatividade das cláusulas pétreas. 1.4 Insuperabilidade jurídica dos limites materiais. CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS


CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As Constituições são criadas com o fito de serem duradouras, de lastrearem-se no tempo. Para isso acontecer, não podem ser totalmente imodificáveis, mas devem prever sua própria atualização, a fim de não serem superadas pela evolução da sociedade.

O poder constituinte reformador atua de acordo com o dinamismo do Estado, garantindo a própria durabilidade do ordenamento constitucional quando revisa e atualiza a obra constitucional às novas realidades sociais. Nesse processo legislativo de revisão e atualização constitucional, o constituinte reformador deve observar limites implícitos e expressos (materiais, circunstanciais e temporais) impostos pelo poder constituinte originário.

Os limites materiais são proibições explícitas no texto constitucional que têm como objetivo impedir reformas que vão de encontro ao cerne intangível da Constituição. São as chamadas cláusulas pétreas.

À luz da Constituição Federal de 1988, as cláusulas pétreas, por um lado, preservam os direitos conquistados a título de muita luta ao longo de vários anos de experiência autoritária e de desrespeito aos princípios e às garantias constitucionais, assegurando-se a permanência dos valores fundamentais da Constituição, ou seja, impedindo reformas capazes de suprimir seu espírito.

Por outro lado, parece ser preciso acompanhar a contínua evolução do Estado, e, nesse sentido, as transformações constitucionais são necessárias para acomodar a Constituição Federal às novas realidades sociais. Segundo duas correntes interpretativas, as cláusulas pétreas, contudo, podem impedir a evolução do ordenamento jurídico em vigor, privando o país de introduzir-se numa ordem mundial globalizada e altamente competitiva economicamente, mormente no que diz respeito à enorme gama de direitos trabalhistas e previdenciários advindos com a Carta Magna de 1988, que não se costuma visualizar em outros países.

Nesse diapasão, indaga-se: as cláusulas pétreas, taxadas no § 4º do art. 60 da Constituição Federal de 1988, podem ser superadas pelo poder constituinte derivado reformador?

Com efeito, três principais correntes manifestam-se acerca da possibilidade ou impossibilidade jurídica de superação dos limites materiais. A primeira corrente contesta a sua legitimidade ou a sua eficácia jurídica. A segunda, por sua vez, reconhece-os, no entanto, têm-nos como relativos, podendo ser superados por intermédio da dupla revisão ou duplo processo de revisão. Finalmente, a terceira corrente considera tais limites como imprescindíveis e insuperáveis.

Destarte, o objetivo deste trabalho é analisar, no contexto brasileiro, valendo-se de pesquisa fundamental, com método hipotético-dedutivo, abordagem qualitativa, objetivo exploratório e delineamento bibliográfico e documental, a impossibilidade jurídica de superação das cláusulas pétreas, ou a sua possibilidade jurídica de superação por meio da teoria da dupla revisão, ou, até mesmo, a possível ilegitimidade e ineficácia jurídica de tais limites taxados na Constituição Federal de 1988.


1 POSSIBILIDADE JURÍDICA DE SUPERAÇÃO DAS CLÁUSULAS PÉTREAS

1.1 DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA

Cláusulas Pétreas são limites expressos que têm por fito proteger a substância da Constituição. Visam proteger o cerne intangível da constituição, ou seja, o “núcleo normativo que engloba matérias imprescindíveis à configuração das suas linhas-mestras, e, por isso, não pode ser modificado” (BULOS, 2007, p. 298).

Essas cláusulas são vastas no direito comparado.[1] Há tempos fazem parte das constituições. Foi, entretanto, a partir da grande Segunda Guerra mundial que as cláusulas pétreas vieram a expandir-se mundialmente. Na história das Constituições Brasileiras, já se têm cláusulas pétreas desde a proclamação da república até os dias de hoje, com exceção apenas da Constituição Brasileira de 1937.

Sem embargo, os limites materiais de tempos para cá vêm causando momentos paradoxais e intensos debates doutrinários mundo afora. Nas palavras de Miranda J. (1996, p. 190), o sentido que se deve conferir aos limites materiais direcionados ao poder constituinte reformador “tem sido uma vaexata questio que há cerca de cem anos divide os constitucionalistas”.

Nesse conspecto, destacam-se três principais correntes acerca da superação ou não dos limites materiais direcionados ao poder constituinte reformador: a da ilegitimidade e ineficácia jurídica das cláusulas pétreas; a da dupla revisão; e a da insuperabilidade jurídica das cláusulas pétreas.

1.2 ILEGITIMIDADE E INEFICÁCIA JURÍDICA DOS LIMITES MATERIAIS

O corolário desta corrente está sustentado, especialmente, no art. XXVIII da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1793, a qual giza que “Um povo tem sempre o direito de rever, reformar e de mudar a sua Constituição: Uma geração não pode sujeitar às suas leis as gerações futuras”.

Assim, a própria ideia de que existiriam limites materiais ficaria prejudicada. Pois, se o titular do poder que cria a Constituição é o mesmo que a revisa, não poderia haver subordinação entre eles. O poder de determinada época não seria superior ao poder de época posterior.

Para Vanossi (1975) citado por Miranda H. (2007, p. 89), as cláusulas intangíveis são “inúteis e até contraproducentes”. O autor argentino elenca alguns argumentos que repudiam as cláusulas pétreas, a saber:

A função essencial do poder reformador é a de evitar o surgimento de um poder constituinte revolucionário e, paradoxalmente, as cláusulas pétreas fazem desaparecer essa função. Elas não conseguem se manter além dos tempos normais e fracassam nos tempos de crise, sendo incapazes de superar as eventualidades críticas. Trata-se de um ‘renascimento’ do direito natural, perante o positivismo jurídico. Antes de ser um problema jurídico é uma questão de crença, a qual não deve servir de fundamento para obstaculizar os reformadores constituintes futuros. Cada geração deve ser artífice de seu próprio destino. Admite-se que um Estado pode decidir sua própria extinção; não se compreende porque o estado não poderia, então, modificar igualmente em forma substancial seu próprio ordenamento supremo, ou seja, sua própria Constituição, ainda atuando sempre no âmbito do direito vigente (VANOSSI, 1975, citado por MIRANDA, H., 2007, p. 89).

Argumenta-se ainda, segundo tal corrente, a igualdade de normas constitucionais, que, embora advenham do constituinte derivado, são também normas constitucionais de mesmo valor que todas as outras do texto constitucional, uma vez que estão inseridas numa mesma Constituição.

Por conseguinte, não haveria uma diferença significativa entre as normas do poder constituinte originário e as do poder constituinte derivado reformador, tendo em vista que ambas são elaboradas pelos representantes do povo.

1.3 DUPLA REVISÃO: RELATIVIDADE DAS CLÁUSULAS PÉTREAS

Sabe-se que uma ruptura constitucional é algo extremamente perigoso, de consequências insondáveis e desastrosas, nomeadamente quando se dá por meio de uma revolução.

O duplo processo de revisão ou dupla revisão busca meios de ultrapassar as barreiras das cláusulas pétreas sem que seja necessária para isso uma quebra da ordem jurídica em vigor por meio de uma revolução, evitando-se, pois, as instabilidades institucionais decorrentes de um amplo processo constituinte causado por uma Constituição presa ao passado.

As cláusulas pétreas, segundo a Teoria do Duplo Processo de Revisão, não são absolutas. Ao contrário da corrente anterior, afirma-se, aqui, a eficácia jurídica e legitimidade das cláusulas pétreas, todavia, não são elas próprias imunes a alterações ou revogações.

Destarte, pode-se, em um primeiro momento, revogar o limite material em si e, em um segundo momento, revogar a norma constitucional que outrora fora protegida por uma cláusula de intangibilidade e que, no momento, não mais é protegida por nenhum núcleo intangível.

O fato em comento consiste no duplo processo de revisão, brilhantemente defendido por Miranda J. (1996, p. 206-207):

Numa postura só aparentemente intermédia, afirma-se a validade dos limites materiais explícitos, mas ao mesmo tempo, entende-se que as normas que os prevêem, como normas de Direito positivo que são, podem ser modificadas ou revogadas pelo legislador da revisão constitucional, ficando, assim, aberto o caminho para, num momento ulterior, serem removidos os próprios princípios correspondentes aos limites. Nisto consiste a tese da dupla revisão ou do duplo processo de revisão. (...) as normas de limites expressos não são logica e juridicamente necessárias, necessários são os limites; não são normas superiores, superiores apenas podem ser, na medida em que circunscrevem o âmbito da revisão, os princípios aos quais se reportam. Como tais – e sem com isto afectar, minimanete que seja, nem o valor dos princípios constitucionais, nem o valor ou a eficácia dessas normas na sua função instrumental ou de garantia – elas são revisíveis do mesmo modo que quaisquer outras normas, são passíveis de emenda, aditamento ou eliminação e até podem vir a ser suprimidas através de revisão. Não são elas próprias limites materiais. Se forem eliminadas cláusulas concernentes a limites do poder constituinte (originário) ou limites de revisão próprios ou de primeiro grau, nem por isso estes limites deixarão de se impor ao futuro legislador de revisão. Porventura, ficarão eles menos ostensivos e, portanto, menos guarnecidos, por faltar, doravante, a interposição de preceitos expressos a declará-los. Mas somente haverá revisão constitucional, e não excesso do poder de revisão, se continuarem a ser observados. Se forem eliminadas cláusulas de limites impróprios ou de segundo grau, como são elas que os constituem como limites, este acto acarretará, porém, automaticamente, o desaparecimento dos respectivos limites, que, assim, em próxima revisão, já não terão de ser observados. É só, a este propósito, que pode falar-se em dupla revisão.

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O autor português, ao defender a possibilidade da dupla revisão, o faz com certa particularidade. Para ele, se os limites de primeiro grau – aqueles inerentes aos princípios fundamentais da Constituição, a ideia de Direito – forem atingidos, não se estará diante de uma revisão, mas sim de uma transição constitucional. Dessa forma, só se falaria em dupla revisão em se tratando de limites de segundo grau – aqueles que o constituinte originário determinou como limites materiais, sem, contudo, identificarem-se com os princípios fundamentais da Constituição (MIRANDA, J., 1996).

Nesse conspecto, o significado real da eficácia das cláusulas pétreas não é outro senão um agravamento da rigidez em seu favor, sendo que tais limites materiais estão duplamente protegidos, ao passo que as demais normas constitucionais precisam de uma única revisão para serem suprimidas. Desse modo, enquanto não forem abolidos, os limites materiais são perfeitamente legítimos e eficazes juridicamente, devendo, obrigatoriamente, ser observados por todos; contudo, podem ser objeto de revisão.

No Brasil, Ferreira Filho é quem sustenta com maior propriedade a relatividade das cláusulas pétreas. Sublinha, a propósito, que certos juristas brasileiros contemporâneos parecem ignorar que o poder constituinte originário é formado por representantes do povo, e tais representantes “não recebem deste qualquer dom especial – mágico ou metafísico. Consequentemente, nada justifica que sua vontade prevaleça para o futuro, cristalizando instituições ou normas” (FERREIRA FILHO, 2007, p. 18).

Ainda segundo o autor brasileiro, as cláusulas pétreas não estão protegidas contra reformas, a não ser que o constituinte originário as tenha protegido de modo expresso. Logo, o próprio art. 60, § 4°, da CF não está incluído entre as matérias imutáveis. Nesse sentido, aduz que “Trata-se da indagação se, no caso de uma Constituição explicitar os pontos intocáveis, cabe nela identificar ‘cláusulas pétreas’ implícitas”. Por conseguinte, completa o autor que “Difícil é admitir que o constituinte ao enunciar o núcleo intangível da Constituição o haja feito de modo incompleto, deixando em silêncio uma parte dele, como que para excitar a capacidade investigatória dos juristas” (FERREIRA FILHO, 2007, p. 172-173).

Ademais, o ilustre jurista vai além, ao afirmar que a Constituição Federal de 1988 não foi obra do poder constituinte originário, porquanto resultou de uma reforma constituinte por força da Emenda n° 26/1985 à Constituição de 1967. Por isso, as cláusulas pétreas, desse ponto de vista, foram estabelecidas pelo poder constituinte derivado e o que ele mesmo estabelece ele mesmo pode mudar. A respeito:

Esta Emenda n. 26/85 alterou o processo de emenda previsto na Constituição então vigente, com isso autorizando o Congresso Nacional a assumir a feição de “Constituinte”, simplificando o procedimento (maioria absoluta dos membros do Congresso para a aprovação e não maioria de 2/3 em cada Casa), e, sobretudo, suprimindo as “cláusulas pétreas” consagradas na Constituição de 1967, na Emenda n. 1/69, art. 47, § 1°. Nem por sombra aparece nesse processo político-jurídico o poder inicial de organizar a nação que é o verdadeiro Poder Constituinte. Do exposto derivam dois pontos de relevo. O primeiro é que as “cláusulas pétreas” em vigor vieram de uma reforma constitucional, tendo sido obra do Poder Constituinte derivado. Ora, o que o poder derivado estabelece, o poder derivado pode mudar. O segundo corrobora o primeiro. A Emenda n. 26/85 permitiu uma reforma constitucional sem a limitação das “cláusulas pétreas” então vigentes que proibiam a abolição da Federação e da República. E foi isso que pôde surgir a proposta monarquista, que, inclusive, redundou no plebiscito no art. 2° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (FERREIRA FILHO, 2007, p. 18).

Destarte, mormente em vista da teoria da dupla revisão, conclui-se que as cláusulas pétreas só continuam resguardadas enquanto vigorar o atual § 4° do art. 60 do Texto Maior brasileiro. Nada impede, todavia, que o próprio § 4° possa ser modificado pelo poder constituinte reformador, abolindo-se uma ou mais das vedações existentes.

A título de ilustração, o direito constitucional do trabalhador urbano e rural de perceber, ao menos, um salário mínimo (cláusula pétrea) poderia ser abolido por intermédio de reforma constitucional com o seguinte procedimento: num primeiro momento revoga-se o inciso IV do § 4° do art. 60 da CF, para, em outro momento, livre agora do limite material, revogar a própria norma constitucional que assegura o direito constitucional do trabalhador urbano e rural de perceber, ao menos, um salário mínimo, ou seja, revogar os incisos IV e VII do art. 7° da CF.

Outrossim, para que a forma federativa de Estado pudesse ser abolida, bastaria a eliminação do inciso I do § 4°, para, logo depois, em uma segunda fase, passar-se à abolição dessa forma de Estado.

A mesma premissa vale para o voto direto, secreto, universal e periódico, para a separação dos Poderes e para abolição de qualquer direito e garantia fundamental. Com a devida vênia, tais hipóteses, pelo menos no caso das limitações materiais brasileiras, vão indubitavelmente de encontro ao espírito da Constituição.

1.4 INSUPERABILIDADE JURÍDICA DOS LIMITES MATERIAIS

Em que pese a sedução das considerações anteriores, coaduna-se, dada vênia, com a insuperabilidade jurídica das cláusulas pétreas. A partir do instante em que se admite a ilegitimidade e ineficácia jurídica das cláusulas pétreas ou a teoria do duplo processo de revisão, insurge-se contra o espírito da Constituição, contra sua identidade.

Com efeito, o fundamento das cláusulas pétreas está em resguardar o núcleo intangível da Constituição, visando impedir a supressão de suas matérias mais importantes, resguardando-a e protegendo-a de maiorias legislativas eventuais e temporárias que tentem usurpar sua substância, seu espírito, sua identidade.[2]

Como bem salienta Bulos (2007, p. 303), as cláusulas pétreas são imprescindíveis e insuperáveis. Imprescindíveis “porque simplificar as normas que estatuem limites, outrora depositados pela própria manifestação constituinte originária, é usurpar o caráter fundacional do poder criador da constituição”. Insuperáveis “porque alterar as condições estabelecidas por um poder inicial, autônomo e incondicionado, a fim de reformar limites explícitos à atividade derivada, é promover uma fraude à constituição”.

O poder reformador, na sua atuação de revisão e atualização do Texto Maior, tem como missão primordial garantir a durabilidade constitucional, moldando a Constituição às novas realidades sociais. Nesse contexto, não pode o poder de revisão insurgir-se contra o poder constituinte originário, usurpando-lhe a competência quando revoga cláusulas intangíveis.

Ora, o poder reformador é constituído pelo poder originário, é criado pela Constituição, e sua competência reformadora por ela é delimitada. Não é ao acaso que lhe é característico ser um poder secundário, subordinado e condicionado[3]. Ir de encontro às cláusulas pétreas, suprimindo-as, é atentar contra o criador – poder constituinte primogênito –, é usurpar-lhe as características de inicial, incondicionado, ilimitado e especial;[4] é, na realidade, a criação de uma nova Constituição e não a sua acomodação às novas realidades sociais.

A propósito, já ensinava Schimitt (2001, p. 119) citado por Mendes e Branco (2013, p. 123) que a faculdade de reforma não pode atingir a continuidade e a identidade da Constituição:

Uma faculdade de ‘reformar a Constituição’, atribuída por uma normação legal-constitucional, significa que uma ou várias regulações legais-constitucionais podem ser substituídas, mas apenas no pressuposto de que permaneçam garantidas a identidade e a continuidade da Constituição, considerada como um todo.

O poder constituído que se contrapõe ao poder de primeiro grau, ultrapassando sua competência reformadora, superando o núcleo essencial da Constituição, incorre ainda em um verdadeiro desvio de poder.

A relativização dos limites materiais atribuída pela teoria da dupla revisão provoca, por conseguinte, um completo esvaziamento das cláusulas intangíveis direcionadas ao poder constituinte reformador, na medida em que a limitação das cláusulas pétreas fica reduzida a uma questão estritamente procedimental.

Ademais, as cláusulas pétreas são dotadas de uma “supereficácia paralisante ou ab-rogante, o que as torna intangíveis e invioláveis, colocando-se, pois, fora e além do alcance do poder constituído ou de reforma, devendo ser mantidas enquanto sobreviver a Constituição” (LIMA FILHO, 2004, p. 140).

Noutro giro, contra-argumentando a tese de que as cláusulas pétreas petrificam e impedem a atualização do ordenamento constitucional em vigor, aduz-se que os limites materiais não se prestam a preservar a redação de uma norma constitucional, por isso alterações redacionais que não esvaziem os princípios basilares da Constituição são perfeitamente possíveis; esses limites prestam-se, pois, para resguardar o espírito da Constituição, para preservar os avanços conquistados com a Carta Magna de 1988.[5]

Ainda que impedissem a atualização e petrificassem o ordenamento constitucional em vigor, os limites materiais não poderiam ser superados pela teoria da ilegitimidade e ineficácia jurídica das cláusulas pétreas, bem como pela tese do duplo processo de revisão, sob pena de se fraudar a Constituição e incorrer em desvio de poder.

Com efeito, a única solução possível para a superação das cláusulas pétreas é uma nova Carta Maior, e não fraudar a Constituição a pretexto de inaplicabilidade ou relativização dos limites materiais deixados pelo poder constituinte originário. “Ou se faz novo Texto, ou se cumpre o que já foi promulgado, desde 5 de outubro de 1988, com seus óbices, imperfeições, atecnias, vícios, virtudes, inovações, avanços e minúcias” (BULOS, 2007, p. 300).

De outra banda, rechaça-se também a tese de que as próprias cláusulas pétreas não estariam asseguradas contra investidas do poder constituinte reformador, de sorte que não seriam elas próprias limites inerentes ao poder derivado, tendo em vista que o constituinte originário não as protegeu de modo expresso. Grande engano não reconhecer que o próprio núcleo intangível da Constituição é protegido por limite implícito.

Nesse sentido, limitação implícita importante, se não a mais importante de todas elas, é aquela que veda a supressão da própria norma constitucional que impõe as limitações explícitas materiais. Destarte, mister se faz concluir que, se o poder constituinte originário idealizou determinadas regras consideradas intangíveis por meio de um dispositivo constitucional – qual seja o § 4° do art. 60 da CF –, é de fácil acepção lógica que tal preceito proibitivo é também considerado insuprível.

Ora, se há uma norma pela qual se consubstanciam determinados elementos considerações insupríveis, seria ilógico uma interpretação que pudesse suprimi-los, sob pena de se relativizar a ideia originária do constituinte genuíno.

Concernente ao art. XXVIII da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – o qual reza que um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de modificar a sua Constituição e que nenhuma geração pode sujeitar as gerações futuras às suas leis –, uma geração posterior, na verdade, como bem salienta Mendes e Branco (2013, p. 121), “não se vê inexoravelmente presa às decisões da geração anterior. Ela as segue enquanto entender que o deve”. Os autores concluem ainda que:

Nada impede que o povo, fazendo-se ouvir por meio de manifestação do poder constituinte originário, rompa com as limitações impostas pela Constituição em vigor e se dê um outro diploma magno. Enquanto isso não ocorre, o que se pode dizer é que a geração subsequente à que editou a Constituição com as suas limitações materiais concorda com elas. Anuência que adviria do fato de não exercer o poder constituinte originário (MENDES; BRANCO, 2013, p. 121-122).[6]

Outro também não é o entendimento da Suprema Excelsa Corte, a qual declarou, no julgamento da ADI n° 466/DF, que o Congresso Nacional no desempenho do papel de poder constituinte reformador está juridicamente adstrito às cláusulas pétreas instituídas pelo poder constituinte originário. Com efeito, ao julgar inconstitucional proposta de emenda constitucional que, mediante prévia consulta plebiscitária, pretendia instituir a pena de morte no Brasil, assinalou:

O Congresso Nacional, no exercício de sua atividade constituinte derivada e no desempenho de sua função reformadora, está juridicamente subordinado à decisão do poder constituinte originário que, a par de restrição de ordem circunstancial, inibitória do poder reformador (CF, art. 60, § 1°), identificou, em nosso sistema constitucional, um núcleo temático intangível e imune à ação revisora da instituição parlamentar. As limitações materiais, definidas no § 4° do art. 60 da Constituição da República, incidem diretamente sobre o poder de reforma, conferido ao Poder Legislativo da União, inibindo-lhe o exercício nos pontos ali discriminados.

Noutro giro, o seguinte argumento também não pode prosperar: o de que não há óbice em revogar os limites materiais do poder constituído, pois o que o poder reformador institui, o poder reformador pode mudar, tendo em vista que a Carta da República de 1988 não foi obra do poder constituinte de primeiro grau, mas sim obra do poder constituinte derivado reformador, uma vez que ela resultou de reforma constitucional por meio da Emenda n° 26/1985 à Constituição de 1967.[7]

Ora, é notório que essa Emenda foi uma fraude à Constituição. Não há sombra de dúvidas de que foi um ato eivado de inconstitucionalidade, um mero artifício político para uma ruptura na ordem constitucional até então em vigor.

Pelo ponto de vista técnico-constitucional, não há possibilidade de uma emenda convocar uma Assembleia Constituinte Originária para destruir a própria Constituição emendada, sem que isso configure uma ruptura do ordenamento jurídico em vigor e, por consequência, uma nova constituinte. Nem pela teoria da dupla revisão tal Emenda Constitucional seria aceitável, tendo em vista que sequer passou pelo duplo processo que lhe é característico.

Finalmente, seria extremamente perigoso invocar a relativização das cláusulas pétreas num país como o Brasil – nem se fale então de declará-las ilegítimas ou ineficazes juridicamente –, que não demonstra grande estima constitucional, pois, vez ou outra, encontra-se ao acaso de maiorias políticas temporárias, de interesses privados e de grandes instituições bancárias nacionais e estrangeiras que ditam reformas constitucionais de encontro ao espírito da Constituição.

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Sobre o autor
Antônio Iris da Costa Júnior

Juiz Substituto do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso. Ex-Analista Judiciário – Área Judiciária do Superior Tribunal Militar. Ex-Técnico Judiciário do Superior Tribunal de Justiça. Especialista em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA JÚNIOR, Antônio Iris. A possibilidade jurídica de superação das Cláusulas Pétreas na Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4067, 20 ago. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/30994. Acesso em: 28 mar. 2024.

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