Artigo Destaque dos editores

A desconsideração da personalidade jurídica:

a teoria, o CDC e o novo Código Civil

Exibindo página 2 de 3
01/08/2002 às 00:00
Leia nesta página:

8. Requisitos para a desconsideração

A fim de desconsiderar o fenômeno da personificação, de modo que o patrimônio dos sócios, responda pelas obrigações contraídas em nome dos sócios, é necessário que se configure a fraude ou abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial. Além disso, é necessária a existência de uma pessoa jurídica, e que não se trate de responsabilização direta do sócio, por ato próprio.

8.1 – A personificação

A própria terminologia usada deixa claro que a desconsideração só tem cabimento quando estivermos diante de uma pessoa jurídica, isto é, de uma sociedade personificada. Sem a existência de personalidade não há o que desconsiderar.

No sistema brasileiro a personalidade jurídica das sociedades nasce com o registro dos atos constitutivos no órgão competente (art. 18 código civil). Sem tal registro, não importa se exista ou não o ato constitutivo, não se pode falar em personificação da sociedade, mas em sociedade de fato ou irregular. Ora, não se tratando de uma pessoa jurídica, não há que se cogitar de autonomia patrimonial, não havendo a possibilidade uso desta autonomia para fins escusos.

Nas sociedades de fato ou irregulares os sócios assumem responsabilidade direta, solidária e ilimitada pelos atos praticados pela sociedade [42], não havendo motivo para a aplicação da desconsideração.

Em termos práticos, além da personificação é necessário que se cogite de uma sociedade na qual os sócios tenham responsabilidade limitada [43], ou seja, de sociedade anônima ou sociedade por quotas de responsabilidade limitada, praticamente as únicas que existem no país. Em outras palavras, a aplicação da desconsideração pressupõe uma sociedade, na qual o exaurimento do patrimônio social não seja suficiente para levar responsabilidade aos sócios.

A exigência da limitação de responsabilidade é de cunho eminentemente prático, pois nada impediria a desconsideração nos demais tipos societários, com o intuito de proteger a própria pessoa jurídica. Todavia, a excepcionalidade da superação da autonomia patrimonial por meio da aplicação da desconsideração, torna mais fácil a aplicação direta da responsabilidade ilimitada dos sócios, quando a mesma já é consignada na lei.

8.2 – A Fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial

O pressuposto fundamental da desconsideração é o desvio da função da pessoa jurídica [44], que se constata na fraude e no abuso de direito relativos à autonomia patrimonial, pois a desconsideração nada mais do que uma forma de limitar o uso da pessoa jurídica aos fins para os quais ela é destinada.

Entretanto, não se trata de orientação pacífica. Fábio Konder Comparato [45] entende que tal formulação da desconsideração é equivocada, entendendo que é a confusão patrimonial o requisito primordial da desconsideração, desenvolvendo o que se costumou chamar de sistema objetivo. Ousamos discordar de tal entendimento.

Sem sombra de dúvida a confusão patrimonial é um sinal que pode servir, sobretudo de meio prova, para se chegar a desconsideração, mas não é o seu fundamento primordial. A confusão patrimonial não é por si só suficiente para coibir todos os casos de desvio da função da pessoa jurídica, pois há casos, nos quais não há confusão de patrimônios, mas há o desvio da função da pessoa jurídica, autorizando a superação da sua autorizando a superação da autonomia patrimonial.

Assim, partilhamos o entendimento de que a fraude e o abuso de direito relacionados à autonomia patrimonial são os fundamentos básicos da aplicação da desconsideração.

8.2.1 – Fraude relacionada à autonomia patrimonial

A autonomia patrimonial da pessoa jurídica é um meio legítimo de destaque patrimonial, limitando os riscos da atividade empresarial, facilitando o desenvolvimento da chamada economia de mercado. Todavia, pessoas movidas por um intuito ilegítimo, podem lançar mão de autonomia patrimonial para se ocultar, e fugir ao cumprimento de suas obrigações. Neste particular, estaremos diante de uma fraude relacionada a autonomia patrimonial.

A fraude é o artifício malicioso para prejudicar terceiros, isto é, "a distorção intencional da verdade com o intuito de prejudicar terceiros" [46]. O essencial na sua caracterização é o intuito de prejudicar terceiros, independentemente de se tratar de credores [47]. Tal prática a princípio é lícita [48], sua ilicitude decorre do desvio na utilização da pessoa jurídica, nos fins ilícitos buscados no manejo da autonomia patrimonial.

Um exemplo bem ilustrativo nos é dado por Fábio Ulhoa Coelho ao se referir ao descumprimento da cláusula de não restabelecimento no trespasse do estabelecimento comercial [49]. Quando um comerciante aliena seu estabelecimento (trespasse), normalmente é imposta uma cláusula de não restabelecimento, isto é, se impõe ao alienante a obrigação de não se restabelecer fazendo concorrência ao adquirente. Trata-se de obrigação pessoa do alienante, que para se furtar ao cumprimento da mesma, poderia constituir uma pessoa jurídica, a qual sendo dotada de existência distinta, não seria imposto o não restabelecimento. Todavia, vê-se claramente neste particular um artifício para prejudicar o adquirente, isto é, uma fraude.

Ora, claramente não é esse o fim para o qual foi criada a pessoa jurídica, não podendo prevalecer em detrimento do alcance da almejada justiça [50]. A pessoa jurídica não existe para permitir que a pessoa física burle uma obrigação que lhe é imposta, não existe para permitir que pessoa física faça algo que lhe é proibido [51], ela existe como ente autônomo para o exercício normal das atividades econômicas, isto é, para o tráfico jurídico de boa fé [52].

Cogitamos aqui dos chamados negócios indiretos entendidos como aqueles pelas quais as partes tentam alcançar uma finalidade que não é a típica do negócio em questão [53]. Todavia, há que se ressaltar que não é suficiente que se busque uma finalidade diversa da típica das sociedades para aplicar a desconsideração, vale dizer, não basta o negócio indireto para a desconsideração. A utilização da pessoa jurídica para alcançar fins diversos dos típicos pode ser válida [54], desde que os fins visados sejam lícitos.

A fraude à lei é uma subespécie dos negócios indiretos, onde a ilegitimidade decorre não do desvio de função, mas da finalidade ilícita de tal desvio [55]. Assim, é o uso da autonomia patrimonial para fins ilícitos que permite a desconsideração.

Há que se ressaltar que não basta a existência de uma fraude, é imprescindível que a mesma guarde relação com o uso da pessoa jurídica, isto é, seja relativa à autonomia patrimonial. Fraudes podem ser cometidas pela pessoa jurídica, como a emissão de um cheque sem provisão de fundos, contudo, se tal fraude não tiver qualquer relação com a utilização da autonomia patrimonial não podemos aplicar a desconsideração [56].

8.2.2 - O abuso de direito relacionado à autonomia patrimonial

Não é só com a intenção de prejudicar terceiros que ocorre o desvio da função da pessoa jurídica, outros desvios no uso da pessoa jurídica também devem ser coibidos com a aplicação da desconsideração. Neste particular, aparece o abuso de direito [57] como fundamento para a desconsideração.

Os direitos em geral, como o de usar a pessoa jurídica, têm por origem a comunidade, e dela recebem sua finalidade [58], da qual não pode o seu titular se desviar. Quando ocorre tal desvio, não há o uso do direito, mas o abuso do direito que não pode ser admitido. O exercício dos direitos deve atender à sua finalidade social, e não apenas aos meros caprichos de seu titular.Em suma, "é abusivo qualquer ato que por sua motivação e por seu fim, vá contra o destino, contra a função do direito que se exerce." [59], é o mau uso do direito.

No abuso do direito, o ato praticado é permitido pelo ordenamento jurídico [60], trata-se de um ato a princípio plenamente lícito. Todavia, o mesmo foge a sua finalidade social, e sua prevalência gera um mal estar no meio social, não podendo prevalecer. Os direitos se exercem tendo em conta não apenas o seu titular, mas todo o agrupamento social, o exercício dos mesmos normalmente não é absoluto, é relativo.

No uso da personalidade jurídica tais abusos podem ocorrer, e freqüentemente ocorrem. Quando existem várias opções para usar a personalidade jurídica, todas lícitas a princípio, mas os sócios ou administradores escolhem a pior, isto é, a que mais prejudica terceiros, nos deparamos com o abuso de direito.

Este "mau uso" da personalidade jurídica, isto é, a utilização do direito para fins diversos dos quais deveriam ser buscados, é que primordialmente autoriza a desconsideração, variando com a experiência de cada país outros fundamentos. Ao contrário da fraude, no abuso de direito o propósito de prejudicar não é essencial [61], há apenas o mau uso da personalidade jurídica.

8.3 – Imputação dos atos praticados à pessoa jurídica:

Aplicando-se a desconsideração chegaremos a responsabilização dos sócios ou administradores, a qual, todavia, também pode ocorrer em outras situações que não se confundem com a teoria da desconsideração.

Quando os sócios ou administradores extrapolam seus poderes violando a lei ou o contrato social, a lei lhes impõe a responsabilidade por tais atos. Entretanto, não se cogita da desconsideração, mas de responsabilidade pessoal e direta dos sócios. "Em tal caso, há simplesmente uma questão de imputação. Quando o diretor ou o gerente agiu com desobediência a determinadas normas legais ou estatutárias, pode seu ato, em determinadas circunstâncias, ser inimputável à pessoa jurídica, pois não agiu como órgão (salvo problema de aparência) – a responsabilidade será sua, por ato seu. Da mesma forma, quando pratique ato ilícito, doloso ou culposo: responderá por ilícito seu, por fato próprio" [62]

Nestes casos, a autoria do ato é imputada diretamente ao sócio ou administrador que o executou [63], não havendo que se suspender, nem momentaneamente a eficácia da autonomia patrimonial, vale dizer, a pessoa jurídica não é obstáculo ao ressarcimento. É o pressuposto da licitude [64], necessário para distinguir a desconsideração de outros casos de responsabilização dos sócios. "Portanto, quando a lei cuida de responsabilidade solidária, ou subsidiária, ou pessoal dos sócios, por obrigação da pessoa jurídica, ou quando ela proíbe que certas operações, vedadas aos sócios, sejam praticadas pela pessoa jurídica, não é preciso desconsiderar a empresa, para imputar as obrigações aos sócios, pois, mesmo considerada a pessoa jurídica, a implicação ou responsabilidade do sócio já decorre do preceito legal. O mesmo se diga se a extensão da responsabilidade é contratual" [65].

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Nos casos dos artigos 10 e 16 do Decreto 3.708/19, 117 e 158 da Lei 6.404/76, 135 da Lei 5.175/66 (CTN) não tratamos da desconsideração, nem de suas origens, como pretendem alguns. Estamos diante de hipóteses de responsabilidade civil simples dos sócios, ou administradores [66], não foi a pessoa jurídica que teve sua finalidade desvirtuada, foram as pessoas físicas que agiram de forma ilícita, e por isso tem responsabilidade pessoal.


9. A desconsideração da personalidade jurídica no direito positivo brasileiro

A teoria da desconsideração prescinde de fundamentos legais para a sua aplicação, uma vez que nada mais justo do que conceder ao Estado através da justiça, a faculdade de verificar se o direito está sendo adequadamente realizado. Apesar disso, o legislador houve por bem acolher a teoria da desconsideração em determinados dispositivos, quais sejam, artigos 28 da Lei 8.078/90, artigo 18 da Lei 8.884/94 e artigo 4º da Lei 9.605/98, embora sem uma precisão desejável.

Tais dispositivos embora desprovidos da melhor técnica, por confundirem institutos diversos, acolhem ainda que de maneira confusa a desconsideração no direito brasileiro.

O pioneirismo coube ao Código de Defesa do consumidor, cujas regras foram copiadas e estendidas a outras relações, que não as relações de consumo. Em relação às infrações a ordem econômica (Lei 8.884/94) houve praticamente a repetição do teor do artigo 28 da Lei 8.078/90. Posteriormente, acolheu-se a desconsideração em relação às lesões ao meio ambiente (Lei 9.605/98), também praticamente reproduzindo o artigo 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor. Assim sendo, em termos de direito positivo a análise a ser feita é aquela à luz do CDC.

De imediato há que se afastar o entendimento de que o artigo 2º, § 2º da CLT acolhe a desconsideração [67]. Tal dispositivo excepciona a autonomia resultante da formação de grupos empresariais, determinando a solidariedade das várias empresas integrantes do grupo, sem cogitar do abuso ou da fraude.

Ora, não se trata de desconsideração, mas de simples solidariedade, por três motivos: "primeiro, porque não se verifica a ocorrência de nenhuma hipótese que justifique sua aplicação como fraude ou abuso; segundo, porque reconhece e afirma a existência de personalidades distintas; terceiro, porque se trata de responsabilidade civil com responsabilização solidária das sociedades pertencentes ao mesmo grupo" [68].

Em tal hipótese não se discute o uso da pessoa jurídica, mas se protege de maneira direta o empregado, garantindo-lhe uma responsabilidade solidária das diversas integrantes do grupo, independentemente de fraude ou abuso. Não se suprime sequer momentaneamente a personalidade jurídica, apenas são estendidos os riscos da atividade econômica.


10 – A desconsideração no código de defesa do consumidor

A introdução da teoria da desconsideração no direito positivo brasileiro é atribuída ao artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor, o qual, todavia, se afastou dos pressupostos, e desvirtuou a teoria, consagrando hipóteses diversas sob a mesma rubrica.

Trata-se de dispositivo aplicável exclusivamente às relações de consumo, não havendo que se cogitar de sua aplicação extensiva, a menos que se afigurem presentes os elementos de uma eventual aplicação analogia. Há que se ressaltar que em relação às infrações à ordem econômica, e ao meio ambiente há uma legislação própria que reproduz o CDC, não se devendo falar em aplicação analógica.

10.1. Hipóteses autorizadoras da desconsideração

O caput do artigo 28 do CDC enumera as hipóteses nas quais é cabível a desconsideração da personalidade jurídica, em redação pouco aconselhável.

A primeira hipótese de desconsideração elencada pelo artigo 28 do CDC, é o abuso de direito, que representa o exercício não regular de um direito. A personalidade jurídica é atribuída visando determinada finalidade social, se qualquer ato é praticado em desacordo com tal finalidade, causando prejuízos a outrem, tal ato é abusivo e, por conseguinte atentatório ao direito, sendo a desconsideração um meio efetivo de repressão a tais práticas. Neste particular, o CDC acolhe a doutrina que consagrou e sistematizou a desconsideração.

Na seqüência o código refere-se ao excesso de poder, que diz respeito aos administradores que praticam atos para os quais não tem poder. Ora, os poderes dos administradores são definidos pela lei, pelo contrato social ou pelo estatuto, cuja violação também é indicada como hipótese de desconsideração. Assim, podemos reunir em um grupo o excesso de poder, a violação ao contrato social ou ao estatuto, a infração a lei e os fatos ou atos ilícitos [69]. A redundância na redução deve ter resultado de uma preocupação extrema em não deixar lacunas, o que levou a uma redação tão confusa.

Tais hipóteses não correspondem efetivamente a desconsideração, pois se trata de questão de haver imputação pessoal dos sócios ou administradores, não sendo necessário cogitar-se de desconsideração [70]. A inclusão de tais hipóteses é completamente desnecessária, pois muito antes do Código de Defesa do Consumidor já existiam dispositivos para coibir tais práticas, como os artigos 10 e 16 do Decreto 3.708/19, 117 e 158 da Lei 6.404/76 e 159 do Código Civil de 1916, que tratavam da responsabilidade pessoal dos sócios ou administradores [71].

Por fim, o caput do artigo 28 menciona a falência, insolvência, encerramentos das atividades provocado por má administração. Neste particular, mais uma vez nosso legislador não foi feliz na medida em que a definição do que vem a ser má administração, é tão abstrata e subjetiva, que poderá levar a inaplicabilidade do dispositivo.

Fábio Ulhoa Coelho tenta esclarecer a má administração, como a conduta do administrador eivada de erros, por desatender as diretrizes técnicas da ciência da administração [72], afastando também tal hipótese dos contornos da desconsideração propriamente dita. Tal desleixo dos administradores é uma questão de comprovação muito difícil, pois uma atitude arriscada que gera prejuízos pode ser considerada má administração, contudo, se a mesma atitude produz grandes lucros, trata-se de atitude arrojada e genial, demonstrando a dificuldade prática da introdução deste particular.

10.2 – A desconsideração e os grupos, consórcios e sociedades coligadas.

Os parágrafos 2º, 3º e 4º do artigo referem-se a responsabilidade pelos danos causados ao consumidor no caso de grupos societários, consórcios e sociedades coligadas, estabelecem a responsabilidade no caso de sociedades que mantêm entre si alguma relação.

Nos grupos, cujo conceito é controvertido, há responsabilidade subsidiária, vale dizer, se a sociedade causadora do dano ao consumidor, não tiver condições de ressarci-lo, o consumidor poderá se socorrer do patrimônio das demais integrantes do grupo. Já nos consórcios (reuniões de sociedades para realizar determinado empreendimento – art. 278 da Lei 6.404/76) a responsabilidade é solidária, ou seja, o consumidor escolhe entre as integrantes do consórcio aquela da qual ele irá cobrar o seu prejuízo. Por fim, há referência às sociedades coligadas ( ma é sócia da outra com mais de 10% do seu capital, sem controla-la - artigo 245, § 1º da Lei 6.404/76), exigindo-se a culpa para responsabilização da sociedade que não agiu perante o consumidor.

Tais hipóteses também não se referem à desconsideração propriamente dita [73], mas a instituto diverso, no sentido da extensão da responsabilidade das sociedades que mantêm relações entre si.

"Embora estejam intergrados no rótulo da desconsideração, as hipóteses ali previstas se afastam do tema. Nesses parágrafos há apenas a preocupação com a responsabilidade das sociedades controladas, consorciadas e integrantes de grupo, dando-lhe responsabilidade subsidiária ou solidária e reforçando os limites da coligadas. Note-se, pois, que não há efetiva desconsideração, mas, sim, consideração de cada uma, aumentando o seu âmbito de responsabilidade " [74].

10.3 – O parágrafo quinto do artigo 28

Elencando expressamente no "caput" algumas causas de desconsideração, o artigo 28 § 5º afirma que "também poderá ser desconsiderada a personalidade jurídica, sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores". A extensão de tal dispositivo deu margem a diversas controvérsias de interpretação, e novas críticas.

Para Zelmo Denari [75], o parágrafo quinto é que foi vetado, ao contrário do parágrafo primeiro, que consta como vetado, a luz das razões do veto presidencial. Assim, o referido parágrafo não existe no mundo jurídico. Tal interpretação é incoerente na medida em que pressupõe um erro legislativo do presidente da república, não corrigido num prazo de 10 anos.

Luiz Antônio Rizzato Nunes [76] ao analisar o referido dispositivo entende que as hipóteses do caput do artigo 28 são meramente exemplificativas, sendo completadas pelo parágrafo quinto, pelo qual bastaria a existência do prejuízo em razão da autonomia patrimonial para aplicar a desconsideração. Tal linha de entendimento parece ser partilhada por Guilherme Fernandes Neto [77].

Tal orientação, embora seja plausível, não é melhor sobre a matéria. Conquanto a proteção do consumidor seja importante, sendo um princípio basilar do CDC, é certo que a pessoa jurídica também é importantíssima, sendo um dos mais importantes institutos do direito privado. A prevalência de tal interpretação representaria a revogação do artigo 20 do Código Civil no âmbito do direito do consumidor, objetivo que não parece ter sido visado pelo legislador pátrio, dada a importância do instituto. Além do que, a própria forma com que foi colocada tal regra, no parágrafo quinto, não nos permite interpretá-la literalmente e, por conseguinte ignorar o caput do referido dispositivo.

Luciano Amaro faz uma crítica extremamente procedente afirmando que a interpretação literal levaria a seguinte situação analógica: "Se causares prejuízo com abuso irás preso; também irás preso se causares prejuízo por má administração; e também irás preso sempre que, de qualquer forma, causares prejuízo" [78]. Não é o simples prejuízo que autoriza a desconsideração, há que se fazer uma interpretação lógica e teleológica do dispositivo.

Para Fábio Ulhoa Coelho [79] deve se fazer uma interpretação sistemática, aplicando o § 5º somente no que tange às sanções não pecuniárias (a proibição de fabricação do produto, suspensão das atividades ou do fornecimento de produto ou serviço – artigo 56 do CDC), porquanto na interpretação literal se desvirtua completamente a teoria, e se revoga o artigo 20 do C. C, extinguindo a pessoa jurídica no âmbito do direito do consumidor. Embora mais coerente, tal posição nos parece também equivocada porquanto o texto do referido parágrafo fala em ressarcimento, o que indica a natureza pecuniária da aplicação desconsideração.

Outros autores, a nosso ver, com razão entendem que o referido parágrafo não pode ser interpretado como uma extinção da autonomia patrimonial no âmbito do direito do consumidor, devendo ser interpretado como uma possibilidade de desconsideração a mais, sem contudo, abstrair os fundamentos da desconsideração. Para Luciano Amaro, há que se entender o parágrafo como uma abertura do rol das hipóteses, sem abrir mão dos pressupostos teóricos da doutrina da desconsideração [80].

Genacéia da Silva Alberton afirma que: "no que se refere ao § 5º do art. 28, é necessário interpretá-lo com cautela. A mera existência de prejuízo patrimonial não é suficiente para a desconsideração. Leia-se, quando a personalidade jurídica for óbice ao justo ressarcimento do consumidor" [81].

Esse justo ressarcimento é o cerne da interpretação do referido dispositivo. Haverá a desconsideração se a pessoa jurídica foi indevidamente utilizada, e por isso impede o ressarcimento do consumidor, pois em tal caso haveria injustiça. No caso, por exemplo, de um acidente com os produtos, ou de um furto de todo o dinheiro da sociedade, o não ressarcimento do consumidor é justo, pois decorreu de um fato imprevisto, e não da indevida utilização do expediente da autonomia patrimonial. Assim, quando a personalidade jurídica for usada de forma injusta, caberá a desconsideração.

E não se diga que o risco inerente à atividade econômica impõe a desconsideração na hipótese, pois tal risco é da pessoa jurídica, sujeito de direito autônomo e não do sócio. O risco do sócio é limitado de acordo com o tipo societário escolhido, não tendo a ver com a sorte econômica da empresa. Ademais, ainda que se cogite de uma responsabilidade objetiva há que existir um nexo de causalidade entre a conduta do sócio ou do administrador e o dano, o que só ocorrerá em se prestigiando essa última interpretação.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Marlon Tomazette

procurador do Distrito Federal, advogado em Brasília (DF), professor de Direito do UniCEUB e da Escola Superior de Advocacia do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

TOMAZETTE, Marlon. A desconsideração da personalidade jurídica:: a teoria, o CDC e o novo Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 58, 1 ago. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3104. Acesso em: 29 mar. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos