A revisão de negócios jurídicos aplicada às relações entre iguais e desiguais

28/08/2014 às 14:57
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O presente artigo tem por escopo estudar os institutos protetores do equilíbrio contratual nas relações estabelecidas entre iguais e entre desiguais, sob o prisma das Teorias da Imprevisão e da Base Objetiva do Negócio Jurídico

 

SUMÁRIO

I.INTRODUÇÃO

II. A REVISÃO SOB A ÓTICA DO DIREITO CIVIL

a.NOÇÃO DE CONTRATO

b.CONCEITO E APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO

III.  A REVISÃO SOB A ÓTICA DO DIREITO DO CONSUMIDOR    

a. CONCEITOS DE CONSUMIDOR E FORNECEDOR

b. FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR        

c. DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR SEGUNDO A LEI Nº 8.078/90 - CDC 

d.DA APLICABILIDADE DA TEORIA DA BASE OBJETIVA SEGUNDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

IV. CONCLUSÃO

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

RESUMO

O Direito visa a proteger todas as relações jurídicas constituídas, mas, primordialmente, as partes envolvidas nessas relações. Desta forma, buscando-se sempre a igualdade material, o Estado há de intervir por meio do chamado dirigismo contratual, ou seja, deve regular as relações de modo que nenhuma das partes onere-se excessivamente em detrimento do benefício exagerado de outras. Assim sendo, o presente artigo tem por escopo estudar os institutos protetores do equilíbrio contratual nas relações estabelecidas entre iguais e entre desiguais, sob o prisma da Teoria da Imprevisão.

Palavras-chave: Teoria da Imprevisão. Desequilíbrio contratual. Justiça Real. Igualdade Material. Direito do Civil. Direito do Consumidor. Rebus Sic Stantibus.

I.              Introdução

 

Estuda-se a Teoria da Imprevisão sob a ótica dos Princípios da Obrigatoriedade e Equilíbrio Contratual. Vê-se, portanto, dois princípios que, em casos de onerosidade excessiva, demandam de ponderação para serem aplicados, e é sobre este mecanismo que se procederá o presente estudo. Inicialmente, faz-se mister conceituar Teoria da Imprevisão pelas palavras de Maria Helena Diniz: “(...) cuja expressão mais frequente é cláusula rebus sic stantibus, impõe-lhe restrições (ao princípio do equilíbrio contratual) e dá ao juiz, excepcionalmente, um poder de revisão por imprevisibilidade (CC, art. 317) sobre os atos negociais, havendo desigualdade superveniente das obrigações contratadas e consequente enriquecimento ilícito de um dos contraentes, podendo, ainda, decretar resolução do contrato (CC, art. 478)”.[1]

Com base no conceito acima exposto, podemos refletir que há um abrandamento da regra da força obrigatória dos contratos, também denominada de pacta sunt servanda, que emana do princípio da autonomia das partes, tendo o contrato, portanto, força de Lei, instituto legado do Direito Romano. Entretanto, no próprio Direito Romano, com a publicação da Lei Poetelia Papira, na qual, aos contratos, foram adsorvidas as ideias de boa-fé e equidade, esta regra do pacta sunt servanda, fora, de certa forma, atenuada e deu-se lugar a novos institutos que garantiram o equilíbrio contratual.

Este abrandamento, no entanto, não extingue a aplicação do Princípio da Obrigatoriedade, visto que este é a base de todas a Teoria dos Contratos, garantindo a todos os pactos a segurança jurídica necessária para que não caiam em desuso. Vê-se, portanto, apenas um enfraquecimento daquele em prol de uma aplicação mais justa do conjunto de princípios e não a exclusão de um destes do ordenamento jurídica.

Portanto, neste trabalho, discutir-se-á a finalidade da cláusula rebus sic stantibus, aduzindo-se sobre sua atuação quando tomada pelo prisma da Teoria dos Contratos e do Direito Consumerista, considerando seu caráter protetivo da parte hipossuficiente, qual seja, o consumidor. Desta maneira, pretende-se analisar importante instituto do Direito Civil, onde a regra é, basicamente, de relações entre iguais, tomada sob a ótica do Direito do Consumidor, protetivo por excelência.

Com fundamento no exposto acima, percebemos que a base da Teoria da Imprevisão se dá em três conceitos: circunstância superveniente e imprevisível pelas partes; onerosidade excessiva para uma das partes; nexo causal entre a circunstância superveniente e a onerosidade excessiva. Desta forma, o presente artigo visa estudar as bases de aplicação da Teoria da Imprevisão, voltando-se para as relações regidas pelo Código de Defesa do Consumidor.

II.            A REVISÃO SOB A ÓTICA DO DIREITO CIVIL

a.NOÇÃO DE CONTRATO

Inicialmente, é de mister importância delinear algumas palavras acerca das noções básicas da Teoria Geral dos Contratos, para que possamos, após estruturado o conceito geral de Contrato, estudar a Teoria da Imprevisão, bem como sua aplicação perante contratos celebrados entre iguais.

Maria Helena Diniz, brilhantemente, obtempera acerca do conceito de Contrato, definindo-o como:

“Acordo de duas ou mais vontades, na conformidade da ordem jurídica, destinado a estabelecer uma regulamentação de interesse entre as partes, com o escopo de adquirir, modificar ou extinguir relações jurídicas de natureza patrimonial”[2]

Analisando este conceito, percebe-se facilmente que o Contrato, segundo doutrina pátria, é expressão máxima de vontade das partes, ou seja, fruto da plena negociação dos contratantes e, portanto, deve expressar, ao máximo, o equilíbrio entre as partes.

Desta forma, sendo o contrato, via de regra, uma expressão típica da bilateralidade sinalagmática das obrigações, este deve ser firmado em bases que não ofendam a igualdade entre as partes. Ou seja, nenhuma das partes poderá se beneficiar sobre o prejuízo da outra, assim evitando a onerosidade excessiva para uma das partes contratantes. Para que isto seja observado na prática, necessária é a análise da prestação e contraprestação pactuadas no instrumento contratual. Em outras palavras: um contrato não pode exigir que uma das partes preste serviço ou bem de valor excessivo, se comparado com a contraprestação pactuada pela outra, de modo jamais deverá haver enriquecimento sem justa causa e, consequentemente, desequilíbrio na relação negocial.

Portanto, atuando com vias a proteger a igualdade entre as partes, bem como a manutenção do negócio jurídico, a legislação civil pátria atua de modo a coibir qualquer manobra das partes que venha a gerar ganho excessivo de um sobre onerosidade de outro. Há que se ressaltar, ainda, que, neste momento, se versa sobre a igualdade necessária entre os contratantes. Neste ponto, aplica-se o rigor extremo da igualdade, posto que, na dogmática do Direito Civil trabalha-se com base nas relações entre iguais, ou seja, tomando-se por pressuposto que as partes contratantes o fazem em rigorosa igualdade de chances, diferentemente do que se tem quando do estudo dos contratos celebrados entre desiguais, como ocorre, em regra, nos contratos consumeristas, a que se referirá melhor a posteriori.

b.CONCEITO E APLICAÇÃO DA TEORIA DA IMPREVISÃO

Partindo das bases ora elencadas, tem-se que o prisma negocial civil permeia-se pela presunção da igualdade estrita entre os contratantes. Ou seja, não se aplica proteção diferenciada a qualquer das partes, visto que são entendidas como iguais e, portanto, não merecem tratamento diferenciado.

Entretanto, ainda que se tenha em mente a igualdade de chance entre os contratantes, existem situações nas quais, ainda que sem culpa de qualquer das partes, pela ocorrência de situação superveniente ao perfazimento do pacto e imprevisível[3] aos olhos dos contratantes, haverá onerosidade excessiva das prestações para algum destes.

Com efeito, ainda que se tenha como cânone do Direito Contratual a força obrigatória dos contratos, representada pelo brocardo pacta sunt servanda, de modo que, perfeito o pacto, este se perfaz como lei entre as partes, sua força não é absoluta, de modo que poderá e deverá ser relativizada quando o caso concreto exigir que se tome esta medida. Assim, em outras palavras, não se trata de extirpação da força obrigatória dos pactos, mas de sua relativização frente à necessidade premente de evitar-se a onerosidade excessiva.

Discutindo-se acerca desta questão de princípios, tem-se duas normas principiológicas que se enfrentam diversas vezes, no caso concreto. Malgrado a aparência de logicidade, não é de clareza solar a solução para o caso de embate entre princípios. Obtemperando acerca deste enfrentamento, Robert Alexy propõe que, ao se encarar colisões principiológicas, deve-se lançar mão da técnica da Ponderação.

Estabelecendo breve conceito desta técnica, Mônica Pimenta Júdice escreve:

“Então, enquanto as regras pertencem ao mundo do juridicamente existente e do peremptoriamente válido, os princípios estão no indefinido mundo do possível ou do concomitantemente possível. No conflito de regras, uma elimina a outra, por questão de invalidade. Na colisão entre princípios, um apenas afasta o outro no momento da resolução do embate, quando as possibilidades jurídicas e fáticas de um deles forem maiores do que as do outro."[4]

A partir do conceito ora delineado, percebe-se que, pela aplicação da regra da Ponderação, tem-se que levar em conta, no caso concreto, qual princípio em colisão deverá prevalecer sobre o outro, sem, claro, significar sua exclusão do mundo jurídico.

Destarte, percebe-se que a correta posição a ser tomada, em caso haja forte desequilíbrio na relação jurídica subjetiva, ou seja, na situação vista sob a ótica externa aos pactuantes, é pela relativização da força obrigatória dos contratos e, consequentemente, pela aplicação da cláusula rebus sic stantibus. Washington de Barros Monteiro, analisando a aplicabilidade da estudada teoria, giza:

“Para que ela se legitime, amenizando o rigorismo contratual, necessária a ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevistos, que tornem a prestação de uma das partes sumamente onerosa”[5]

Histórica e paradigmática foi a decisão de Nelson Hungria, que inaugurou a aplicação da Teoria da Imprevisão no ordenamento jurídico brasileiro, a qual traz, em trecho abaixo transcrito, sintético conceito e alguns comentários acerca desta construção jurídica:

“Há, porém, a considerar, na espécie, que um evento  extraordinário, imprevisto e imprevisível, veio alterar profundamente o ambiente objetivo dentro do qual se operava o acordo de vontades, a voluntas contrahendum. Ora, a resolubilidade dos contratos de execução futura, em virtude de subsequente mudança radical no estado de fato, não é contemplada expressamente em nossa lei civil, mas decorre dos princípios gerais de Direito e exprime um mandamento de equidade. A jurisprudência, com o apoio da doutrina, tem decidido que tais contratos devem entender-se rebus sic stantibus et in eodem statu momentibus. É uma cláusula resolutória implícita, subentendida. Desde o momento que um fato inesperado e fora da previsão comum destrói por completo a equação entre prestação e a contraprestação ajustadas, deixa de subsistir o que Oertmann chama a base do contrato (Geschäftsgrundlage), isto é, o pensamento das partes, manifestado no momento de celebrar-se o contrato, acerca da existência das circunstâncias determinantes. (...) É certo que quem assume uma obrigação a ser cumprida em tempo futuro sujeita-se à alta dos valores, que podem variar em seu proveito ou prejuízo; mas, no caso de uma profunda a inopinada mutação, subversiva do equilíbrio econômico das partes, a razão jurídica não pode ater-se ao rigor literal do contrato, e o juiz deve pronunciar a rescisão deste. A aplicação da cláusula rebus sic stantibus tem sido mesmo admitida como um corolário da teoria do erro contratual.”[6] (grifou-se)

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Este decisum inaugurou, portanto, questão de grande valia acerca da interpretação dos contratos, no ordenamento jurídico pátrio. Partindo desta pedra angular, tem-se que, enfrentando-se situação de desigualdade excessiva em contratos bilaterais, onerosos, sinalagmáticos e de trato sucessivo ou execução futura, sendo esta objetivamente imprevisível para as partes, é de justiça aplicar-se a Teoria da Imprevisão, com fins a readaptar o negócio jurídico existente ou, como última opção, em respeito ao princípio da manutenção dos negócios firmados, resolver o pacto.

Permeando-se para a dogmática civil atual, temos que o Código Civil brasileiro aplicou, sobremaneira, a prevalência dos valores coletivos sobre a pessoal individualmente considerada. Demonstrando a aplicação prática da teoria ora estudada, transcreve-se dois dispositivos do atual diploma civil:

“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

(...)

Seção IV

Da Resolução por Onerosidade Excessiva

Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”[7]

Como se observa, é patente a aceitação desta festejada Teoria no ordenamento jurídico pátrio, demonstrando a robustez e a justiça de sua aplicação no caso concreto, jamais oferecendo risco à segurança jurídica dos contratos, mas, sim, tendo por consequência o fortalecimento de princípios basilares do Direito Civil, quais sejam a igualdade entre as partes e a vedação ao enriquecimento sem justa causa, como seu corolário.

III. A REVISÃO SOB A ÓTICA DO DIREITO DO CONSUMIDOR

a.CONCEITOS DE CONSUMIDOR E FORNECEDOR

 

Partindo-se para a seara consumerista, ainda tendo-se como base as considerações já estipuladas acerca da Teoria da Imprevisão, salutar será a apresentação de alguns conceitos importantes para a discussão do tema sob o prisma do Direito do Consumidor.

Inicialmente, deve-se estabelecer o que se entende por Consumidor. O próprio Código de Defesa do Consumidor[8] elenca, logo em sua parte inicial, o que se deve entender por consumidor, in verbis:

Art. 2° Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.

Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

Desta forma, consumidor é aquele para o qual se destina, por fim, o produto ou serviço, finalizando, assim a cadeia produtiva e mercadológica, sendo, portanto, o utilitário do bem ou serviço produzido. Ainda segundo o mesmo Código, equiparam-se a consumidor as definições constantes nos seus arts. 17 e 29.[9]

Interpretando-se o Art.2º do CDC, podemos dizer, portanto, que o consumidoré todo aquele – pessoas físicas ou jurídicas de qualquer espécie – que adquire onerosa ou gratuitamente – quando apenas utiliza ou consome – como destinatário final, das mãos do fornecedor, ou seja, que age como consumidor do produto ou serviço e, não, como revendedor.

Tomando como ponto de partida a parte final do conceito entabulado, passa-se a estipular outra consideração de suma importância para o estudo que se realiza, qual seja a conceituação de Fornecedor. Ainda pelo estabelecido na legislação consumerista, tem-se:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

Momento em que é interessante aduzir acerca do que se trata de produto e serviço, definições delineadas nos parágrafos do artigo supra:

Art. 3º (...)

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Vê-se, portanto, que o legislador definiu de maneira analítica o conceito de fornecedor, de modo a evitar qualquer lacuna sobre sua definição. Explanando o tema, brilhantemente obtempera Rizzatto Nunes:

“Não há exclusão alguma do tipo de pessoa jurídica, já que o CDC é genérico e busca atingir todo e qualquer modelo. São fornecedores as pessoas jurídicas públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras, com sede ou não no País, as sociedades anônimas, as por quotas de responsabilidade limitada, as sociedades civis, com ou sem fins lucrativos, as fundações, as sociedades de economia mista, as empresas públicas, as autarquias, os órgãos da Administração direta etc.”[10]

Destarte, fornecedor é estabelecido como gênero, que engloba os conceitos de fabricante, comerciante, produtor e demais outros. Estes são especializados pelo código quando se pretende estabelecer situação de prática singular a cada tipo.

b.FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR

Em momento anterior ao estabelecimento todos os parâmetros para a revisão de negócios jurídicos no Direito do Consumidor, passa-se, a discorrer sobre sua proteção e previsão segundo as normas constitucionais.

Inicialmente, há que se aduzir que a Constituição é a Lei Fundamental do Estado, ou seja, é o norte normativo e principiológico[11] que rege todas as leis inferiores, servido de base para sua aplicação e interpretação, enquanto diretora de toda a ordem jurídica pátria.

Neste ínterim, temos que a Constituição da República de 1988[12] e da ADCT – Atos das Disposições Constitucionais Transitórias[13] –, em normas expressas, outorgou ao legislador infraconstitucional a obrigação de normatizar a proteção ao Consumidor, conseguida após fortes movimentos sociais da época do mass consumption society. De seus textos, extrai-se excertos:

Art. 48, ADCT. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.

Art. 5º, CF/88. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;

Ainda é salutar trazer à baila o que dispõe o Art. 170, da CF/88, estabelecendo normas principiológicas acerca da interpretação da ordem econômica:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - soberania nacional;

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

IV - livre concorrência;

V - defesa do consumidor;

VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII - redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII - busca do pleno emprego;

IX - tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.

Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

A Carta Maior protege, ainda, o consumidor, enquanto senhor de seus direitos fundamentais, tais como honra, intimidade, justiça real, dentre outros vários que funcionam como diretivos na criação e aplicação da legislação ordinária. Nesta toada, insere-se a proteção ao consumidor, enquanto hipossuficiente, para que o mesmo seja resguardado com a devida igualdade material, de todos os danos a que está sujeito quando se expõe ao mercado e busca produtos e/ou serviços, inserindo-se em relações jurídicas nas quais ocupa parte débil.

Analisando-se esta conjuntura, percebe-se facilmente que a legislação consumerista é fruto do intervencionismo estatal em prol da defesa da ordem econômica e equilíbrio entre as partes.

Desta feita, o fulcro da proteção ao consumidor e, por via de consequência, da aplicação da Teoria da Imprevisão aos contratos por este firmados, está localizado, originalmente, na proteção dada à pessoa humana enquanto sujeito de direitos na ordem civil, ou seja, na tentativa de manutenção do equilíbrio buscado em todas as relações jurídicas insertas no ordenamento pátrio.

c.DA PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR SEGUNDO A LEI Nº 8.078/90 – CDC.

Demonstrada, assim, a diferença entre Consumidor e Fornecedor, passa-se, então, a delinear algumas palavras acerca da principal diferença prática entre estas duas partes da relação negocial consumerista, qual seja a proteção dada a uma delas, enquanto hipossuficiente nesta relação.

Estabelecido logo no art. 1º, do Código de Defesa do Consumidor, está o protecionismo dado ao hipossuficiente da relação:

“Art. 1° O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias. (grifou-se)”

Este caráter justifica-se pela necessidade de proteção ao consumidor quando este celebra negócios jurídicos pela aquisição de determinados produtos e serviços que o exigem. Ou seja, trata-se esta parte da relação jurídica negocial como vulnerável em relação à outra, qual seja o fornecedor, tal como se reconhece explicitamente no Art. 4, I, do CDC.

Segundo Rizzatto Nunes, “tal reconhecimento é uma primeira medida de realização da isonomia garantida na Constituição Federal154. Significa ele que o consumidor é a parte fraca da relação jurídica de consumo. Essa fraqueza, essa fragilidade, é real, concreta, e decorre de dois aspectos: um de ordem técnica e outro de cunho econômico.” (Rizzato Nunes, 2012, P. 178)

Ainda nas palavras deste mesmo autor, o consumidor pode ser considerado vulnerável tanto pela sua deficiência de conhecimento técnico acerca do produto ou serviço do qual é destinatário final, tanto como pela hipossuficiência financeira em relação ao fornecedor. Assim, por exemplo, se alguém deve suportar ônus de danos causados sem culpa das partes, este deverá recair sobre o fornecedor, tanto com base na Vulnerabilidadedo consumidor, que aqui se trata, como por conta da Teoria do Risco[14], estudada em Direito Obrigacional.

Formidável ressaltar, ainda, que, na seara do Direito do Consumidor, de suma importância é a proteção à Boa-fé. Este fundamento de toda a ordem jurídica pátria se insere fortemente no ramo aqui estudado, de modo que todas as relações jurídicas regidas pelo CDC devem se basear nos ditames de boa-fé objetiva, estabelecendo-se como uma condição prévia, a qual deve-se aplicar hermeticamente ao caso prático.

Ainda se tratando da proteção dada ao elo mais fraco da relação, cabe ressalva naquilo que tange ao equilíbrio contratual que deve haver nas relações aqui estudadas. Assim, preza-se pela igualdade material entre as partes negociantes, de modo que qualquer abusividade será eivada de nulidade, a teor do que dispõe o art. 51, IV e §1º, III, do CDC.

d.DA APLICABILIDADE DA TEORIA DA BASE OBJETIVA SEGUNDO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

Retornando ao cerne do estudo, qual seja o debate acerca da Teoria da Imprevisão e sua aplicabilidade no Direito do Consumidor, analisa-se a posição legislativa, estipulada no Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 6º, V, in verbis:

Art. 6º - São direitos do consumidor:

(...)

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.

Estudando-se o dispositivo em apreço, percebe-se de plano sua diferença para com o mesmo instituto, quando tido por base relação entre iguais, qual seja a ausência do requisito da imprevisibilidade do fato. Seria, assim, aplicar a Teoria da Imprevisão sem necessidade de ocorrência de fato imprevisível? Neste ponto, diverge a doutrina e jurisprudência de forma bastante peculiar.

Segundo Nelson Nery Jr, não há necessidade de que esses fatos sejam extraordinários nem que sejam imprevisíveis[15], bastando que sejam excessivamente onerosos, portanto. Entretanto, diversos doutrinadores entendem que a imprevisibilidade é necessária à aplicação da Teoria da Imprevisão para as relações consumeristas, tal como segue:

“O inciso V assegura ao consumidor o direito de postular a modificação de cláusulas contratuais que importem em prestações desproporcionais. Sem embargos da omissão da lei, parece-nos que prestação a que esteja contratualmente obrigado o consumidor torna-se desproporcional quando não está em correspondência com o real valor do produto ou do serviço. Será desproporcional a prestação que inclua percentual relativo à inflação bem acima da taxa oficial ou preveja taxa de juros muito além do nível fixado em lei.Será prestação desproporcional a que leve a um total várias vezes superior ao valor do produto ou serviço”[16]

Também tratando sobre o tema, Rizzatto Nunes brilhantemente opina:

“Não se trata da cláusula rebus sic stantibus, mas, sim, de revisão pura, decorrente de fatos posteriores ao pacto, independentemente de ter havido ou não previsão ou possibilidade de previsão dos acontecimentos.

Explique-se bem. A teoria da imprevisão prevista na regra da cláusula rebus sic stantibus tem como pressuposto o fato de que, na oportunidade da assinatura do contrato, as partes não tinham condições de prever aqueles acontecimentos, que acabaram surgindo.

Por isso se fala em imprevisão. A alteração do contrato em época futura tem como base certos fatos que no passado, quando do fechamento do negócio, as partes não tinham condições de prever”[17]

Destaque-se, assim, que a revisão dos contratos celebrados sob a égide do diploma consumerista demanda fato jurídico diferenciado daquele que ocorre nas relações entre iguais, sobretudo pela inexistência do requisito da imprevisibilidade, tal como se lê no dispositivo legal supratranscrito. Outrossim, conforme assevera a doutrina, aplica-se, para as relações de consumo, a Teoria da Base Objetiva dos Negócios Jurídicos, ou seja, que a revisão das cláusulas deve se dar sempre que se enfrente modificação da situação de fato – em tempo posterior à firmação do pacto – que resulte em prestação excessivamente onerosa imputada ao consumidor, prescindindo das características de imprevisibilidade e extraordinariedade do fato, exigidas para que se opere a revisão em contratos celebrados entre iguais.

Percebe-se, então, como não está pacificado o entendimento acerca do tema. Segundo entendimento do presente autor, haverá que ser adotar corrente intermediária, ou seja, entende-se que não se faz necessária a imprevisibilidade do fato, já que o CDC não faz tal exigência, muito embora seja imprescindível que este fato seja extraordinário, não podendo ser conhecido à época de formação da avença e, caso o fosse, a parte prejudicada – o consumidor – não teria celebrado o pacto.

IV.          CONCLUSÃO

Analisando a conjuntura legislativa e doutrinária acerca da Teoria da Imprevisão, possibilitou-se o entendimento de que esta surgiu como força atenuadora do pacta sunt servanda, de modo a proteger as partes debilitadas nas relações jurídicas em geral, com base nos princípios constitucionais e nas normas igualitárias estabelecidas no Código Civil. Para sua correta aplicação, em relações estabelecidas entre iguais, necessário se faz o preenchimento de três condições, quais sejam: circunstância superveniente eimprevisível pelas partes; onerosidade excessiva para uma das partes; nexo causal entre a circunstância superveniente e a onerosidade excessiva; Tudo isso tendo em vista a igualdade que impera entre as partes, quando em relações regidas pelo Código Civil.

Já naquilo que tange às relações econômicas típicas de consumo, estabelecidas entre desiguais, pacificado é o entendimento pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor. Nesta seara, claro é o entendimento acerca da aplicação da Teoria da Imprevisão. Entretanto, ainda que esta se aplique com os mesmos efeitos pretendidos quando da análise da relação sob a ótica do Código Civil, seus parâmetros sofrem uma pequena mudança, segundo parte da doutrina, bem como defende este autor, traduzida na desnecessidade de que o fato gerador da onerosidade excessiva seja imprevisível à época de seu acontecimento, mas o seja à época da celebração do contrato.

Em conclusão, estabelecidas as discussões, percebe-se que este instituto é de máxima importância para o estabelecimento da tão buscada igualdade real entre as partes, sem embargo da observância de suas nuances para o caso concreto.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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BRASIL.  Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Publicada no Diário Oficial da União em 11 de janeiro de 2002.

BRASIL.  Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Publicada no Diário Oficial da União em 12 de setembro de 1990.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, vol. III.

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JÚDICE, Mônica Pimenta. Robert Alexy e a sua teoria sobre os princípios e regras. In: ConJur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2007-mar-2/robert_alexy_teoria_principios_regras>. Acesso em 29 de abril de 2014.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 29ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, v. 5,

NERY JR., Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 4ª ed., São Paulo: RT, 1999

NUNES, Luis Antonio Rizzatto. Curso de direito do consumidor / Rizzatto Nunes. – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2012.

SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 2º Ed., São Paulo.


[1]DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2012, vol. III,pág. 48.

[2] DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 1996, v. 1, p. 11.

[3] Esta imprevisibilidade deve ser encarada sob o prisma objetivo, tendo em vista que o princípio do pacta sunt servanda não pode ser relativizado por questões externas previsíveis, já que os contratos a serem analisados sob esta questão, versam, via de regra, sobre obrigações futuras e/ou de trato sucessivo. Ressalte-se, ainda, que é plenamente possível a aplicação da teoria estudada em casos previsíveis, mas que os prejuízos para uma das partes reputem-se incalculáveis, tendo a ocorrência de fatos que ensejem nova situação jurídica subjetiva.

[4] JÚDICE, Mônica Pimenta. Robert Alexy e a sua teoria sobre os princípios e regras. In: ConJur. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2007-mar-02/robert_alexy_teoria_principios_regras>. Acesso em 29 de abril de 2014.

[5] MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 29ª ed., São Paulo: Saraiva, 1997, v. 5, p. 10.

[6] Decisão prolatada pelo então Juiz Nélson Hungria, 5ª Vara Cível do Distrito Federal (Rio de Janeiro), em 27.10.1930, publicada na Revista de Direito 100/178.

[7]BRASIL.  Lei nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002. Publicada no Diário Oficial da União em 11 de janeiro de 2002.

[8]BRASIL.  Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990. Publicada no Diário Oficial da União em 12 de setembro de 1990.

[9]Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-se aos consumidores todas as vítimas do evento.

Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas.

[10] NUNES, LuisAntonioRizzatto. Curso de direito do consumidor / Rizzatto Nunes. – 7. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2012. P.135.

[11] Malgrado a conceituação que merece o termo, estabelece-se brevemente que este seja um alicerce que fornece coesão a toda e qualquer construção jurídica, atuando desde a sua edificação até sua interpretação segundo o sistema que se impõe.

[12]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988, 292 p

[13] Idem.

[14] Para maiores detalhes, v. TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil Objetiva E Risco - A Teoria Do Risco Concorrente - Vol. 10 - Col. Prof. Ruben. São Paulo: MÉTODO, 2011.

[15] NERY JR., Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado e legislação processual civil extravagante em vigor. 4ª ed., São Paulo: RT, 1999, p. 1803

[16]Saad, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p.165.

[17] NUNES, Rizzato. Op. Cit. P. 190.

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Sobre o autor
Lucas Souza Pereira

Acadêmico de Direito da Universidade Federal do Piauí - UFPI<br><br>Estagiário do Escritório Cordão, Said e Villa Sociedade de Advogados - Teresina, PI

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