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O desporto e a Constituição.

Competência para legislar: União, Estado e Município

01/10/2002 às 00:00
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Pelo presente trabalho não é a minha intenção esgotar o tema sobre op prisma do direito constitucional, porém, não para atingir meu objetivo, sou obrigado a esclarecer alguns conceitos que, ao meu ver, são imprescindíveis para o desfecho do estudo a ser realzado.

Preliminarmente, a teoria da constituição.

De acordo com as lições do Professor Nelson Saldanha teoria constitucional

"... se relaciona com formas de pensamentos afins, formações teóricas que correspondem a experiências afins àquela que a lastreia. Poderemos falar em pensamento político, social jurídico ou mesmo institucional; a teorização se manifesta através de concepções que evoluem e atuam em conexão coma própria história política, social, jurídica, institucional. A experiência histórica do homem é vista, em cada uma destas expressões, como se estivesse representada por planos ou dimensões do próprio fenômeno da "organização" e da "ordem" [1]

O mais novo constitucionalista nacional, Professor Paulista Alexandre de Moraes [2], afirma que sua origem está intimamente ligada à Constituição escrita dos Estados Unidos da América de 1787, promulgada logo após a Independência das 13 colônias, bem como à Constituição da França de 1791, emanada após a Revolução Francesa.

Registrando que a Constituição Francesa foi a primeira a organizar o Estado e a limitação do poder estatal, deixando expresso os direitos e garantias fundamentais de todo cidadão. [3]

Sobre a Constituição Americana é de se observar que não começou apenas em 1.787, pois, há registro de que:

"... os textos da época colonial (antes de mais, as Fundamenta ordens of Connecticut de 1639), integram-no, desde logo, no nível de princípios e valores ou de símbolos a Declaração de Independência, a Declaração de Virgínia e outras..." [4].

O Professor José Afonso da Silva, conceitua a constituição como sendo:

"... um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos e os limites de sua ação. Em síntese, é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado" [5].

O mestre lusitano, Jorge Miranda, leciona que constituição é:

"... o conjunto de normas (disposições e princípios) que recordam o contexto jurídico correspondente à comunidade política como um todo e aí situam os indivíduos e os grupos uns em face dos outros e frente ao Estado-poder e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder, os modos de formação e manifestação da vontade política." [6]

O Constitucionalista e Professor da Escola de Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Procurador do Estado Luis Roberto Barroso, afirma ser a constituição:

"... um sistema de normas. Ela institui o Estado, organiza o exercício do poder político, define os direitos fundamentais das pessoas e traça os fins públicos a serem alcançados."

Seu objeto, na lição de Celso Ribeiro Bastos é:

"...o estudo da Constituição. É ele um ramo do direito público, compreendendo este, dentre outras disciplinas, o direito administrativo, o tributário, o financeiro, o processual etc..." [7]

Após esse breve intróito, que ao meu ver necessário, passo a tecer os detalhes da atividade desportiva vista pela constituição promulgada em 05/10/88.

A atividade do desporto na Constituição da República Federativa do Brasil mereceu, na visão do constituinte originário, uma regulação constitucional. Para tanto, trouxe para o seu bojo, de forma inédita [8], esta atividade predominantemente física que, em princípio, teria o significado de recreação, divertimento, mas que, com o correr do tempo, passou a abranger práticas esportivas tanto amadoras como profissionais.

O constitucionalista, Pinto Ferreira, conceitua desporto da seguinte forma:

"Dá-se o nome de desporto ao conjunto de exercícios físicos praticados com método, individualmente ou em equipe, com observância de determinadas regras específicas, tendo por finalidade acima de tudo desenvolver a força muscular, a coragem, a resistência, a agilidade e a destreza, com vistas ainda ao desenvolvimento físico do indivíduo" [9]

Assim, com a promulgação da constituição de 1988, o desporto foi materializado como norma constitucional, estando, hoje, consagrado no artigo 217, abaixo transcrito:

"SEÇÃO III DO DESPORTO

Art.217 - É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:

I - a autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento;

II - a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento;

III - o tratamento diferenciado para o desporto profissional e o não-profissional;

IV - a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional.

§ 1º - O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, reguladas em lei.

§ 2º - A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir decisão final.

§ 3º - O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social."

No direito constitucional comparado algumas constituições regulam o desporto, cabendo entre outras, os seguintes destaques:

Constituição da Espanha de 31 de outubro de 1978

"Artigo 47, 3. Os Poderes Públicos fomentarão a educação sanitária, a educação física e o desporto. Facilitarão também a utilização adequada do lazer,"

Constituição de Portugal de 25 de abril de 1976

"Art.70-.....

(1) Os Jovens, sobretudo os jovens trabalhadores, gozam de proteção especial para efetivação dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, nomeadamente:

a)acesso ao ensino, à cultura e ao trabalho;

b)formação e promoção profissional

c)educação física e desporto;

d)aproveitamento dos tempos livres.

Art.79-.....

(1) Todos têm direito à cultura e ao desporto."

A Constituição da República do Uruguai, aprovada em 24 de agosto de 1966, com a emenda de 1976:

"Art.71- Declara-se de utilidade oficial a gratuidade do ensino oficial primário, médio, superior, industrial e artístico da educação física; a criação de instrumento de aperfeiçoamento e especialização cultural, científica e obreira, e o estabelecimento de biblioteca particulares."

A Constituição política do Peru:

"Art.38- O Estado promove a educação física e o desporto, especialmente o que não tem fins de lucro. Atribui-lhes recursos para definir sua prática."

Como visto, diante da regulação constitucional do desporto em vários outros Países, restava apenas ao Brasil incorporá-lo.

É oportuno registrar que a materialização do desporto em sede constitucional se deve, dentre outros, a luta do Professor Álvaro Melo Filho, quem elaborou as "sugestões básicas" à elaboração do texto constitucional, sugestões essas que foram apreciadas in totum pela Assembléia Nacional Constituinte.

Saliente-se, que conforme esclarece o próprio professor Álvaro Mello Filho, em seu livro "Desporto na Nova Constituição" a luta foi:

"... silente e permanente, iniciada com a ajuda incondicional do Prof. Manoel Tubino– Presidente do CND – bem antes do nosso pronunciamento na audiência pública da Subcomissão de Educação, Ciência, Cultura e Desporto, não teríamos concretizado nosso objetivo, não fosse a sensibilidade desportiva, a obstinação legislativa e a dedicação ímpar do constituinte AÉCIO DE BORBA VASCONCELOS a quem devemos – os autênticos desportistas - imorredoura gratidão" [10]

Assim, uma vez promulgada a constituição, houve, à época, a grandiosa necessidade de esclarecer o sentido e o alcance dos dispositivos transcritos acima que, na acepção de Álvaro Melo Filho:

"constituem a estrutura de concreto armado do desporto brasileiro, que se espera apta a enfrentar desafios do Terceiro Milênio, livre de modismo e fincada numa necessidade real de democratização e respeito aos direitos da cidadania, especialmente do direito do desporto."


Competência para Legislar sobre o Desporto

A competência para legislar sobre o desporto na atual constituição é, diferentemente da anterior, não mais exclusiva da União [11].

Hoje, diante do disposto no inciso IX do artigo 24, da vigente constituição, a competência para legislar sobre o desporto pertence à União, Estados e ao Distrito Federal, vale dizer, ela é concorrente, a saber:

"Art.24 - Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:

IX - educação, cultura, ensino e desporto;..."

Portanto, cabe à União tão-somente legislar normas gerais [12] sobre desporto, ficando aos Estados e ao Distrito Federal a competência para suplementá-la [13], no caso de não haver na legislação básica ou, até mesmo, quando não houver norma geral [14].

Questão interessante é saber se os Municípios possuem legitimidade para legislar supletivamente ou complementarmente?

Em exercendo a interpretação literal do inciso IX do artigo 24, chegaríamos à conclusão de que aos Municípios falece competência legislativa, quer supletiva ou complementar.

Mas, os Municípios, principalmente após a promulgação da carta de 1988, a qual consagrou-o como ente indispensável ao sistema federativo e, integrou-os na organização política-administrativa, conseguiram plena autonomia conforme dispõe o artigo 1º da CRFB/88, a saber:

"Art.1º - A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos".

Portanto, podemos afirmar que a autonomia dos municípios, da mesma forma que as dos Estados, configura-se pela tríplice capacidade: auto-organização e normatização própria, auto-governo e auto- administração.

Ademais, o artigo 30 da CRFB/88, dispõe que:

"Art.30 - Compete aos Municípios:

I - legislar sobre assuntos de interesse local;...

II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber;...

VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação pré-escolar e de ensino fundamental;" (Grifos meus).

Ora, se pode o município legislar sobre assuntos de interesse local e, ainda suplementar a legislação federal e a estadual no que couber, não entendemos como não possa execer, ao lado dos Estados e do Distrito Federal, a competência para suprir ou complementar a legislação federal, naquilo que for do interesse local.

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Chegamos a conclusão acima, após compatibilizarmos as normas constitucionais antes transcritas, no intuito de que todas tenham aplicabilidade.

A doutrina aponta diversas regras de interpretação hermenêutica constitucional ao intérprete, conforme esclarece o Mestre Vicente Raó:

"... a hermenêutica tem por objeto investigar e coordenar por modo sistemático os princípios científicos e leis decorrentes, que disciplinam a apuração do conteúdo, do sentido e dos fins das normas jurídicas e a restauração do conceito orgânico do direito, para efeito de sua aplicação e interpretação; por meio de regras e processos especiais procura realizar, praticamente, estes princípios e estas leis científicas; a aplicação das normas jurídicas consiste na técnica de adaptação dos preceitos nelas contidos assim, interpretados. Às situações de fato que se subordinam." [15]

O mestre constitucionalista lusitano J.J. Gomes Canotilho enumera diversos princípios e regras interpretativas, dentre as quais destaco as seguintes: da unidade da constituição; da máxima efetividade ou da eficiência e da força normativa da constituição.

Pela primeira, a interpretação constitucional deverá ser realizada de maneira a evitar contradições entre suas normas.

Já pela segunda, à norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda.

E, por último, entre as interpretações possíveis, deve ser adotada aquela que garanta maior eficácia, aplicabilidade e permanência das normas constitucionais.

Portanto, a finalidade dessas regras é a de possibilitar a manutenção das leis no ordenamento jurídico, compatibilizando-as com o texto constitucional.

Vale registrar, que o Supremo Tribunal Federal, por meio do Ministro Moreira Alves, em julgamento de ação direta de inconstitucionalidade entendeu que a técnica da interpretação conforme a constituição:

"só é utilizável quando a norma impuganada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco" [16]

Logo, diante do disposto acima e, ainda, do contido nos incisos I e II do artigo 30 antes transcrito, entendo, que apesar de o artigo 24 da CRFB/88 não ter incluído o Município como competente para legislar concorrentemente sobre o desporto, este, poderá, não só suplementar a legislação federal e a estadual, como também, complementá-la, no que couber.


Notas

1. In Formação da Teoria Constitucional, 2ª Edição, Editora Renovar, pag 1.

2. Direito Constitucional, Editora Atlas, 7ª Edição.

3. "Momentos formativos desta noção – O conceito de constituição, como não poderia deixar de acontecer, serviu aos entusiasmos revolucionários e à ideologia racional ilustrada; encontrou refração e remodelação, depois, por parte dos conservadores.

Como momentos de formação do conceito contemporâneo de constituição, cabe specialmente lembrar as expressões passionalmente vinculadas na Revolução Francesa, quer ao reivindicar-se uma Assembléia Constituinte, quer ao exigir-se uma constituição nacional ( uma constituição que superasse as diferenças regionais, que eram franquias provinciais, em favor de uma mais larga imagem legislativa e administrativa da França)." Nelson Saldanha, in ob. cit. pag. 117

4. in Manual de Direito Constitucional, Jorge Miranda, pag. 138

5. Curso de direito Constitucional Positivo, 8ª Edição, Editora Malheiros, pag. 39/40.

6. Ob.cit,pag. 13/14.

7. In Curso de Direito Constitucional, 13ª Edição, Editora Saraiva, pag 39.

8. Anteriormente à promulgação da constituição de 1988 vigoraram as seguintes constituições : 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969. Compulsando, todas, constatar-se-á que o desporto não foi tratado em nenhum de seus dispositivos. Contudo, por se tratar de uma atividade que, direta ou indiretamente, envolve um universo de pessoas, outra solução não restou ao constituinte originário de 1988, a não ser, tratar do desporto em sede constitucional.

9. Pinto Ferreira, Comentários à Constituição Brasileira, Saraiva, 1995 Vol. 07 p.177.

10. Desporto na Nova Constituição, Editor Sergio ª Fabris, 1990 pag. 9.

11. Inciso XVII do artigo 8º da constituição de 1967/69.

12. Art.24, § 1º - No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais, da CFRB/88.

13. Artigo 24, § 2º - A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados, da CRFB/88.

14. Art.24, § 3º - Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades, da CRFB/88.

15. Alexandre de Moraes, ob cit pág. 41.

16. Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1.344-1/ES – STF – Rel. Min. Moreira Alves.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

DERBLY, Rogério José Pereira. O desporto e a Constituição.: Competência para legislar: União, Estado e Município. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 59, 1 out. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3296. Acesso em: 29 mar. 2024.

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