Da autonomia da vontade para a autonomia privada: contrato mutante

31/10/2014 às 18:03
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DA AUTONOMIA DA VONTADE PARA A AUTONOMIA PRIVADA: CONTRATO MUTANTE

 

Índice: I - Introdução; II - Do princípio da autonomia da vontade à autonomia privada nos contratos; III - Do princípio da função social; IV - Do princípio da boa-fé objetiva; V - Do princípio da obrigatoriedade dos contratos; V - Do princípio da relatividade das partes; VII - Conclusão

I - Introdução

O contrato é o instrumento econômico para composição da vontade das pessoas sob a responsabilidade obrigacional de uma contraprestação. O diálogo no âmbito dos contratos representa a emancipação do DIreito de uma antiga ordem de valores patrimonialistas que conduziam a rigidez contratual da obrigação como fonte contratual imutável. Por meio da crise dos contratos em função das transformações da automia da vontade para a autonomia privada, expressão que vem a reestruturar a principiologia contratual no Estado Democrático de Direito em superação do Estado Liberal desprovido do intervencionaismo estatal, o contrato como fonte dos direitos e obrigações passa por ajustes pela nova principiologia do Código Civil de 2002, passando a ser um contrato mutante. A possibilidade de sua relativização deve vir em consonância com a segurança jurídica do sinalagma das obrigações, desde que contudo o contrato não perca sua força contratual pela ampla possibilidade de revisionismo e mutação que a nova principiologia traz. O presente artigo tem por objetivo abordar os princípios contratuais agora redimensionados em razão da função social dos contratos, elo para o equilíbrio e amadurecimento de nova ordem que passou a ser posta em valor na máxima da Justiça.

II – Da autonomia da vontade à autonomia privada nos contratos

O Direito Romano baseava-se em sua Lex Privata para criar obrigações para que as partes, em suas vontades soberanas entre si, viessem a dar o cumprimento de seus interesses. Ocontrato então tinha força de lei por meio do pacta sunt servanda, brocardio jurídico que expressa "o contrato faz lei entre as partes". Os modelos que surgiam pela vontade dos contraentes ajustavam-se as suas necessidades individuais, sendo cobertos pela índole de obter a ordem patrimonial e sua execução que se dava coercitivamente, não havendo possibilidade de discutir o justo do que fora pactuado, seja quanto ao seu conteúdo de valores ou jseja na sua forma de cumprimento. Em Roma havia prevalecia o rigorismo contratual quanto a manutenção da vontade da celebração, sem que fosse colocado em questão o conteúdo e a sua forma de execução, valendo-se do brocárdio quanto no que a língua exprimisse, é por direito: Cum nexum faciet mancipiumque, uti língua nuncumpassit ita ius esto[1]. O direito quiritário romano fazia-se valer nos extremos da vontade individual, apenas vindo o poder estatal intervir como coator pela penalização no descumprimento,.

No evoluir para o período da idade média, a exclusividade volitiva das partes em contratar tinha ingerência de  determinismo marcado pelos ideais religiosos em sua dogmática. Os filósofos do século XVI, como o Italiano Fragoso, autor do Diálogo de fortuna (1521)[2], conceberam uma vontade cuja “a mão esquerda segura um freio e rédeas para reprimir excessos, e sua direita, uma copa para recompensar os justos.” O livre-arbítrio passava a ser conciliado com o justo para auto-regulamentação do contrato, voltando-se aos ideais da justiça divina.

No Século XVIII, com o apogeu da propriedade privada no código napoleônico, a Revolução Francesa, para fazer valer a vontade dos indivíduos no novo contexto social que ensejava a circulação de riquezas, retomou os ideais romanos quanto à obrigatoriedade do pacta sunt servanda para os desejados efeitos que se asseguravam na contratação privada. Assim a autonomia da vontade tinha mais ampla liberdade contratual, favorecendo o tráfego de riquezas. O individualismo afirmava-se na vontade soberana das partes pelo liberalismo econômico, expandindo-se com a filosofia dos fisiocratas[3], tornando-se instrumento capitalista eficaz. O Código Francês preceituava em artigo 1.134: “As convenções tem valor de lei entre as partes”. Dessa forma, fazia surgir o princípio da autonomia da vontade que extraí-se da mais ampla liberdade de composição de cláusulas contratuais.

O Código Civil de 1916, na passagem do século XIX, com a Revolução Industrial adequava-se a dinâmica das relações jurídicas quanto aos interesses econômicos. No avançar da valorização dos direitos humanos, passou-se a relativização da autonomia da vontade para cumprir com as exigências jurídicas das relações que formavam no contexto social e político. O contrato como fonte criadora de direitos e obrigações passou a ser delimitado, evitando-se os exageros, tornando a convivência jurídica em harmonia para segurança e estabilidade das relações civis. O Estado, na condição de legislador e juiz, vem por intervir na autonomia da vontade por meio de normas imperativas quanto à ordem pública.

O Código Civil de 1916 retratava uma ideologia do século XVIII e encontrava-se em dispariedade com a nova ordem social do século XX em sua competitividade econômica. O Direito Privado é verdadeira força econômica, precisando adéqua-lo para fazer surgir relações mais justas e suficientemente seguras para sustentar o progresso econômico e social[4]. A personalização do Direito Privado ocasionou a mutação dos contratos para projeção do ético, da concepção axiológica da pessoa como centro e destinatário da ordem jurídica, evoluindo e adequadando-se a nova ordem social e política. Neste sentido, buscou-se a substituição de valores patrimonialistas, sem deixar de ser este o foco da autonomia da vontade contratual, porém, alterando-se a dimensão da sua normatização para preservação de direitos fundamentais assegurados na Constituição Federal de 1988, expandindo a normatização para além da relação de bens, contendo agora valores metaindividuais.

A autonomia da vontade relaciona-se ao conteúdo do contrato que passa a ser alvo de dirigismo estatal. A liberdade de contratar quanto a possibilidade de vir a celebrar o contrato passou a ser disciplinada ao lado da liberdade contratual, agora no viés de ter disciplinado o conteúdo de suas cláusulas. A liberdade de contratar relaciona-se ao poder de escolha, ilimitado, em contratar com alguém, enquanto a liberdade contratual, como limitação a autonomia da vontade, regula o poder de regrar os termos do contrato, atendendo as normas imperativas de ordem pública. Em análise a margem discricionária da vontade, podemos dizer que a liberdade de contratar com alguém é ilimitada, enquanto a liberdade contratual de conteúdo é limitada a função social, neste sentido, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka faz a seguinte diferenciação[5]:

Na verdade, trata-se de liberdade contratual, aquela pertinente à limitação do Conteúdo do contrato, por força de norma de ordem pública, e não de liberdade de contratar, esta sim fundada na dignidade da pessoa humana e resultante da alta expressão da autonomia privada e, bem por isso, ilimitada. Além disso, a liberdade contratual poderá encontrar, na função social que é inerente ao contrato, uma limitação à sua extensão meramente volitiva, uma vez que nem sempre os contratantes poderão, sem estes freios, fixar livremente as cláusulas de seu contrato.”

Em decorrência da limitação da liberdade contratual a autonomia da vontade passou a ser relativizada, coordenada, ajustada para o cumprimento da finalidade social. Surge um binômio causalidade-finalidade do contrato[6]para que cumpra-se com a ordem social. Neste contexto, surgiram apontamentos doutrinários para mutação da expressão autonomia da vontade passar a ser denominada autonomia privada, alterando-se pelas mudanças de postura quanto à ingerência econômica, política e social.

Passou-se ao período da publicização do Direto Privado desaparecendo o que se chamava de versão francesa do direito, em repúdio ao temor individualista do século XIX, determinando a substituição quanto ao adjetivo da expressão autonomia da vontade, em substituição, utilizando-se de “privada” ao invés de “da vontade”, fundada no direito italiano da autonomia privata. Otavio Luiz Rodrigues Junior aponta como postulados da concepção objetiva mais ortodoxa da expressão:

a) a supremacia do interesse público e da ordem pública sobre o interesse particular e a esfera privada;

b) a colocação do negócio jurídico como espécie normativa, porém, de caráter subalterno;

c) a autonomia privada relevando um poder normativo conferido pela lei aos indivíduos, que o exerceriam nos limites e em razão desta última e de seus valores;

d) a autonomia privada tida como um poder outorgado pelo Estado e seus indivíduos

Os elementos quanto à formação contratual da autonomia das partes encontram limites no sistema privado. Nos ensinamentos do jurista italiano Enzo Roppo, o contrato encontra restrições a sua liberdade contratual atingindo os critérios de composição de vontade em seu subjetivismo para a causa[7]. O motivo, como a qualidade íntima de composição, passa-se a vincular a uma causa[8], voltando-se a finalidade social. Pondera-se a vontade das partes para melhor atender a função social.

Em análise ao liberalismo econômico, voltando-se a diferenciação das expressões autonomia da vontade e autonomia privada, Flávio Tartuce em citação aos ensinamentos do autor Francisco Amaral expõe[9]:

A autonomia privada é o poder de que os particulares têm de regular, pelo exercício da própria vontade, as relações que participam estabelecendo-lhe o conteúdo e sua respectica disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade, para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde existindo ambas sensível diferença. A expressão autonomia da vontade tem uma grande conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder de vontade real

No mesmo sentido a autora Maria Angélica Benetti Araújo refere-se ao autor Francisco Amaral quanto à divergência conceitual das expressões[10]:

Neste novo cenário, consenso não há em torno das expressões “autonomia privada” e “autonomia da vontade”, sobretudo em virtude de existir a crença de que as palavras e seus sentidos se mantém incólumes apesar de ter desaparecido o contexto epistemológico a que correspondem.

Há quanto as referidas expressões interpretação distinta por força dos vetores sociais, epistemológicos, que conduzem sua formação pela nova contextualização do Direito Privado.

No mesmo sentido Arruda Alvim, em abordagem as inovações do Código Civil de 2002, vem dar definição de autonomia privada[11]:

Esse espaço de liberdade é chamado de autonomia privada, e, no contexto do liberalismo foi muito amplo. É esse espaço a medida em que a ordem jurídica reconhece  validade e eficácia à vontade das pessoas. Então, as pessoas se comportam no mundo contratual exercendo a sua vontade concretizadora de sua autonomia privada. Essa autonomia privada, desde que não infrinja a lei de ordem pública, desde que não seja imoral e desde que  exercitada em razão de um objeto lícito e desde que não infrinja os bons costumes, as relações jurídicas nascidas dentro dessa autonomia privada são validadas pela ordem jurídica. Pode-se dizer que ela é o motor da economia. Uma das expressões dessa autonomia – reconhecida pela ordem jurídica – é o de poder as partes idealizarem um contrato, não tipificado no Código, sobre o novo Código é expresso, ainda que isso já fosse havido como admissível no Código Civil de 1916.

Conforme acabamos de expor, a autonomia privada tornou-se um conceito. Seus contornos de definição passam por constantes ajustes para adequarem-se a função social. O contrato segue os ajustes da ordem política, social e econômica de acordo com a função social. Em sua mutação, está sempre a ajustar-se a função social, conforme, a seguir, passaremos a expor.

 

II – Do princípio da função social dos contratos

A função social tornou-se por excelência sede da autonomia privada, desta forma, gera sintomas nos demais princípios contratuais que informam a relação contratual, vindo a entrelaçar-se nos seus regramentos, em sua complexidade, alcançando a completude da sua magnitude no ordenamento em seus alongamentos. A nova codificação passa a dar margem a uma nova principiologia que permeia as relações contratuais para a devida segurança jurídica e saber prudencial. A autonomia privada, em sua liberdade contratual, encontra outros parâmetros para cumprir com seu equilíbrio econômico e oponibilidade em relação as partes.

A função econômica traduz-se no interesse patrimonial dos indivíduos pela propriedade privada, sendo o centro da formação contratual, da vida dos negócios, da satisfação dos indivíduos. Todavia, não é este o único fim, sendo a função social finalidade que se mostra tão importante quanto para a formação do contrato na autonomia privada venha a ter a devida convivência jurídica no meio social. O Código Civil de 2002 vem a inovar com o tão esperado dispositivo da função social em seu artigo 421, determinando: “a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”

Na mutação da autonomia da vontade para a autonomia privada, está o cumprir da função social. Logo, a liberdade contratual segue a semântica da função social. Não se trata de uma limitação prejudicial à vontade das partes, mas, sim, benévola por adequar-se as exigências jurídicas em um contexto coletivo. Quanto a sua delimitação, cabe destacar o seguinte enunciado da primeira jornada de estudos do Conselho de Justiça Federal:

En. 23: “A função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses metaindividuais ou interesse individual relativo a dignidade humana.

A inserção do dispositivo tendo por expresso a função social passa a influenciar a leitura dos direitos dos contraentes, proporcionando a adequação a valores que vinham se consolidando a favor da proteção do mais fraco, do coletivo. Dessa forma, cria-se uma porta de entrada para outros sistemas legais, conforme segue o enunciado da segunda jornada de estudos do Conselho de Justiça Federal:

En. 167: Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos.

Em consideração a nova postura legislativa o novo Código Civil veio a disciplinar a transição da validade dos contratos realizados sob vigência da codificação anterior, adequando seus efeitos para as normas imperativas de ordem pública, assim dispõe o artigo 2.035, em seu parágrafo único:

parágrafo único: Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade dos contratos.

As intervenções estatais na autonomia privada diminuíram a carga subjetiva da autonomia da vontade, levando a novos critérios para adequarem-se as mudanças estruturais do contrato. Quanto à diminuição da força volitiva, Flávio Tartuce, sobre o tema, trás a seguinte reflexão:

Não há dúvida que a vontade perdeu a importância que exercia no passado para formação dos contratos. Outros critérios entram em cena para a concretização do instituto. As relações pessoais estão em suposta crise, o que para nós representa uma mudança estrutural, sendo certo que tudo deve ser analisado sob o prisma da concretude do instituto do contrato, e do que isso representa para o meio social. Como já dissemos, vale lembrar, à luz da personalização do Direito Privado, que a autonomia da vontade não é da vontade, mas da pessoa.”

O intervencionismo estatal na liberdade contratual impõe mudanças, por consequência, traz o que, doutrinariamente, apontou-se como a suposta crise dos contratos quanto à autonomia privada, refletindo sua adequação as exigências do tráfego jurídico para conciliar-se com o dirigismo contratual no Novo Código Civil de 2002. Como exemplo, para melhor ilustrar a ênfase da codificação para liberdade contratual sob a ordem pública, contida em normas gerais, observa-se a inovação referente a dispositivo quanto à possibilidade de contratos atípicos, inominados (fora do rol dos contratos típicos). Neste sentido, dispõe o artigo 425 do Código: “É lícito as partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.”

 Todavia, em que pese as limitações de ordem pública, deve ser considerado que a liberdade contratual, ao cumprir com o dirigismo do Estado para adequar-se a função social, não está a reprimir a celebração de contratos ao ponto de cercear direitos fundamentais, mas, sim, está por dimensionar o encaixe apropriado, condicionando, adequando-se sua aplicabilidade ao contexto metaindividual, sendo ampla a margem de atuação discricionária das partes. Neste sentido, Giselda Hironaka, em citação a Álvaro Villaça de Azevedo, vem a concluir[12]:

põe-se a liberdade contratual, a qual, no dizer de Álvaro Villaça Azevedo, é considerada como a possibilidade de livre disposição de interesses, pelas partes, no negócio. Enfoca o conteúdo, ele mesmo, dos contratos, quer dizer, a sua consistência interna, traduzida pelas cláusulas que compõem o negócio. Este é o aspecto mais crítico da formação do contrato, uma vez que esta liberdade pode vir limitada por normas de ordem pública que digam qual o percurso cogente de determinadas cláusulas contratuais. Por isso, a liberdade há de condicionar-se emoldurando-se na lei, para ser liberdade condicionada, não ser liberdade-escravidão, instrumento dos que atuam de má-fé, em detrimento da própria sociedade, como mencionou, bem antes, Álvaro Villaça Azevedo.”

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Logo, a dimensão da liberdade contratual não pode ser vista por limitação, a ponto de criar dificuldades que desfavorecem a celebração, pelo contrário, ela está como um bem a sua consecução no interesse perseguido, pois, está a conduzir a ordem política, social e econômica para que o interesse patrimonial cumpra com sua finalidade, sem perder sua causa maior, a função social. Esta causa se traduz no universo mais amplo, para alcança-lá há uma ponte a percorrer, sua travessia decorre do adentrar ao campo da função social, no cumprir da cláusula geral positivada[13].

A função social apresenta-se como uma formulação expressa e imprecisa, podendo tornar-se perigosa por sua amplitude e subjetivismo no critério de decisão do magistrado, levando a arbitrariedades. Sua conceituação técnica é de “cláusula geral”, nos ensinamentos de Teresa Arruda Alvim Wambier pode-se definir cláusula geral como[14]:

Cláusulas gerais são normas em que vêm explicitados princípios jurídicos e que tem por função dar ao Código Civil aptidão para acolher (= passar a abranger) hipóteses que a experiência social ininterruptamente cria e demandam disciplina. Assim, estas cláusulas, pode-se dizer, tem um potencial de abrangência infinitamente maior que as regras jurídicas de estrutura tradicional, mais minuciosas e que contêm em si mesmas descritas sua hipótese de incidência.

Quanto à semântica das cláusulas gerais, em um primeiro momento, indagou-se a insegurança jurídica quanto à flexibilidade de ter norma vaga, por ainda não haver os próprios contornos dos fatos e condutas que nela se enquadram. A insegurança, todavia, desaparesce ao conciliar-se com o regramento mínimo previsto na unicidade do ordenamento legal, superando-se sua imprecisão por estar presente normatização suficiente. Neste sentido, em relação à elaboração do Código Civil, Adriana Mandim Theodoro de Mello coloca-se na seguinte posição ao tema[15]:

É por isto evidente nenhum Código pode ser formulado apenas e tão somente com base em cláusulas gerais, porque, assim, o grau de certeza seria mínimo.

A cláusula aberta vem a dimencionar normas específicas, sendo mais ampla, porém, também, normativa por excelência, vindo a primar pela melhor aplicabilidade do direito. Quanto à aplicabilidade do artigo 421 em sua margem de aplicabilidade, Vitor Kumpel, em fazer comparação entre os princípios e as cláusulas gerais abertas, vem a definir[16]:

A norma acima transcrita configura uma cláusula geral, ou seja, um emprego por uma das normas do ordenamento, de uma liguagem intencionalmente aberta na sua semântica, verdadeiramente vaga, permitindo que o juiz aprecie e julgue o caso, concretizando elementos que podem, inclusive, encontrar-se fora do sistema. As cláusulas gerais são mais amplas que os princípios, até porque muitas vezes abarcam os mesmos e permitem sua formulação. O princípio da função social, além de conduzir aos paradigmas do sistema constitucional, é aquele que dá o poder ao Estado-juiz de ordenar e reordenar os contratos, a fim de que o mesmo dignifique a pessoa humana. Trata-se de uma pedra angular do novo direito contratual brasileiro, tanto que fixa os contornos da liberdade de contratar.

Na definição de causa e motivo para o contrato, voltando-se ao causalismo que repercute na função social, Dayse Gagliano traz reflexão conclusiva quanto ao caráter etéreo da definição desta cláusula geral, vejamos[17]:

“Cada qual a seu modo dirá que está a realizar uma "função social" O capitalista, o empresário, etc., naquele "slogan" como "gerador de empregos" O consumidor, o cidadão comum, o hipossuficiente, igualmente, arguirá em seu benefício a "função-social" a reclamar o abatimento do preço em face da onerosidade excessiva. Não se sabe o que é função-social. Depende do tempo. Justamente é o que conduz a norma contida no art. 421 do Código Civil, no exercício da liberdade contratual. Cada sujeito buscará, dentro de uma possível compreensão subjetiva a sua função social. O que é social para um, não será para o outro, dada a relatividade do conceito. Em nome da "função social" etérea, abstrata, em nome e por conta da proteção do mais débil e do mais fraco, instala-se a insegurança jurídica, no tráfico social.”

Logo, em análise, podemos concluir que na qualidade “etéreo” da função social, em contraposição temos “o sólido”, em considerar sua transformação (sólido-etéreo) temos a materialização da função social. O fenômeno da consolidação da função social não é possível, pois ela é uma qualidade ser-força-inspiradora, que dá conseqüências, sendo condicionante e reveladora da verdade ao caso concreto. É mais ampla, por consequência, é mutante e faz do contrato mutável.

As cláusulas gerais vem dar possibilidade ao aplicador da lei ter meios para afastar lacunas e obscuridades, sendo instrumento que vem a dar poder para moldar o caso concreto, todavia, há de se impor limites para que o contrato transforme-se, sem se desconfigurar-se plenamente. Nestes termos, onde estão os limites das cláusulas gerais? Para Teresa Arruda Alvim não se trata de uma norma que permite o juiz alterar cláusulas lícitas e fruto da vontade livre das partes, segue seu posicionamento[18]:

É imprescindível lembrar que as alterações que vem ocorrendo com o direito tem lugar no sistema como um todo.  Basta ter presente a resistência que houve no século XIX quanto a admitir que o juiz poderia, sim, ter um poder hoje conhecido como poder geral cautelar. Como permitir ao juiz intervir na esfera das partes, determinar que algo fosse feito ou realizado, sem que houvesse plena certeza da titulariedade do direito sobre o qual se discutia? (...) As novas técnicas de legislar e de intepretarem dispositivos normativos passaram a dar aos juízes maiores poderes para concretizar a justiça no caso concreto, levando em conta suas peculiarieadades.

Ainda, quanto ao limite de exercício de poderes para mutação contratual, deve ser sopesado a instabilidade econômica que isso pode causar no mundo dos negócios, neste sentido, observa Adriana Mandim Theodoro de Mello[19]:

A intervenção estatal, seja através do legislador (normas imperativas restritivas da autonomia), seja através do juiz (modificando o conteúdo do contrato ou retirando-lhe a obrigatoriedade), em um sistema econômico e político que se sustenta na livre iniciativa e na propriedade privada, não pode ultrapassar os limites da excepcionalidade e razoabilidade, sob pena de se condenar a sociedade à instabilidade e estagnação econômica. O contrato é, como já se disse, o vehículo de desenvolvimento, da acumulação e circulação de riquezas, e do progresso.

 

III –Do princípio da boa-fé objetiva nos contratos 

A função social como cláusula geral tem seus sintomas em conjunto a principiologia contratual, devendo ser considerada a boa-fé que vem a funcionalizar a estabilidade contratual. Há o entrelaçamento entre a função social e a boa-fé no cumprimento do contrato. A boa-fé na autonomia privada é elemento natural para alcançar o cumprimento da avença no lícito do que foi ajustado sobre as vontades, sendo uma essência do próprio entendimento dos seres humanos quanto ao que é ético, moral e por bons costumes da conduta que se espera de outrem.

A boa-fé objetiva vem em consonância com o cumprimento da função social, também, na forma de cláusula geral, em inovação ao Código Civil de 2002, agora contendo por expresso, em seu artigo 422, o seguinte dispositivo: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.” Trata-se de mais um sintoma que a liberdade contratual causa na autonomia privada.

Na qualidade de cláusula geral, a boa fé é instrumento que dá meios para a aplicação da lei encontre sua essência pela melhor solução ao caso concreto, em complementaridade da eticidade que deve aperfeiçoar-se a relação. A formulação de cláusulas gerais já vinha prevista em ordenamentos estrangeiros. Em análise ao direito comparado do exterior, nos ensinamento do ilustre professor Álvaro Villaça de Azevedo, temos as seguintes referências[20]:

 “Cito nesse passo, o parágrafo do artigo 242 do Código Civil Alemão (BGB): “O devedor está obrigado a executar como exige a boa-fé, em atenção aos usos e costumes. Destaco, ainda, o artigo 1,337 do Código Italiano, de 1942, pelo qual os contraentes, “no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, devem comportar-se segundo a boa-fé”. Completa este dispositivo legal o art.1.375 que determina que o contrato deve ser executado segundo a boa-fé. A seu turno, também merece realce o art. 227 do Código Civil Português, de 1967, que assenta: que negocia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nas preliminares quanto na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena dos danos que culposamente causar à outra parte.

A boa-fé, na qualidade de cláusula geral aberta, encontra seu valor em consideração a unicidade do ordenamento brasileiro. O contrato passa a ser regulado, interpretando-se, criando-se deveres, limitando-se direitos que fazem com que este se adapte ao ordenamento jurídico em sua complexidade. Neste sentido, segue o enunciado 27 da primeira jornada de estudos do Conselho de Justiça Federal:

En. 27: Na interpretação da cláusula geral da boa-fé objetiva, deve-se levar em conta o sistema do CC e as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e fatores metajurídicos”.

A boa-fé objetiva é disciplinada no sentido do aperfeiçoamento do contrato, sendo esta a boa-fé que expressa na teoria geral dos contratos, artigo 421 da codificação. Não se trata de boa-fé subjetiva, a qual está no íntimo do agente, voltando-se aos vícios de consentimento do negócio jurídico. A boa-fé objetiva é forma de vigilância de condutas sobre o que espera de outrem na avença, de forma a assegurar o devido e correto aperfeiçoamento do contratado. Quanto à distinção de boa-fé subjetiva da boa-fé objetiva segue a conceituação de Fernando de Paula Gomes[21]:

Por boa-fé subjetiva entende-se aquele estado de consciência da parte em conformidade com o direito posto, ou seja, o estado psicológico do agente frente a relação jurídica. Contraposta a essa formação mental está a má-fé, que opera subjetivamente na intenção de lesar. Denota, pois, ignorância ante a existência de uma situação regular ou de erro sobre a aparência de algum ato jurídico e, ainda, do vínculo pactuado, de forma que a parte haja convencida do próprio direito. Denota, também, ignorância de lesar direito alheio,  ou convicção de estar ligado à literalidade do que está pactuado.”(...) A boa-fé objetiva, por sua vez, é um modelo de conduta social a que cada pessoa deve ajustar sua própria conduta, segundo a honestidade, lealdade e probidade, considerando fatores do caso concreto como a condição pessoal das partes, nível cultural etc. Tem-se, pois, a preocupação maior de verificar interesses de um frente ao outro, e não de um sobre o outro.

Na inserção da boa-fé objetiva na autonomia privada do contrato esta passa a desempenhar funções gerais, por força de sua semântica aberta, dando margem a preencher lacunas, interpretar e direcionar o contrato para que este seja cumprido. Assim, o contrato passa por mutações daquilo que foi pactuado, adequando-se aos corolários da boa-fé. Neste sentido, há a funcionalização da boa-fé destacando-se: a função hermenêutica-integrativa; a função criadora de deveres acessórios; a função limitadora de exercícios de direitos.

Na função hermenêutica-integrativa da boa-fé objetiva passa-se a regular os contratos em consonância com as demais teorias que surgem para adequação aos fins sociais, como exemplo, a Teoria da Interpretação da Vontade, nos termos do artigo 113, “interpretando-se o negócio jurídico conforme a boa-fé e os usos do lugar da celebração”, também, como inovação da novo Código, a Teoria do Abuso de Direito, configurando o ato ilícito quando o direito lícito é exercido em desacordo com os fins sociais, econômicos, da boa-fé e dos bons costumes, cita-se, ainda, a Teoria da Aparência, resguardando a conduta leal a expectativa gerada. Neste sentido Adriana Modim Theodoro de Melo discorre sobre o tema:

É, outrossim, a boa-fé justifica a aplicação da teoria da aparência, já que a base assenta-se na responsabilidade daquele que age ou omite de forma a gerar expectativas errôneas para a contraparte e viola o dever de não iludir. Da mesma forma ocorre com a vedação ao enriquecimento ilícito e o abuso de direito. Todas essas doutrinas amplamente aventadas em decisões pretorianas, podem ser perfeitamente unificadas no princípio da boa-fé.”

Como outra expressão do dispositivo da boa-fé objetiva, a função criadora de deveres acessórios traz a compreensão de padrões de conduta que se espera de um homem médio, probo e leal ao que foi compromissado, cumprindo com as expectativas geradas na avença. Desta forma, pelo cumprimento do processo obrigacional, o contrato se tornar estável no seu aperfeiçoamento pelo cumprimento, não apenas da obrigação principal, mas pelo êxito dos deveres acessórios. Surgem deveres de cooperação, de cuidado, de informação, que, se descumpridos, provocam o inadimplemento. Neste sentido o enunciado 24 da primeira jornada de estudos do Conselho de Justiça Federal:

En.24: Em virtude do princípio da boa-fé, positivado no artigo 422 do novo Código Civil, a violação dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento, independente de culpa.

Ainda, outra funcionalização da boa-fé objetiva se faz presente na função de limitadora de direitos subjetivos que impõe, por meio do exercício limitado de direitos,  padrões éticos de condutas. Os direitos obrigacionais são preservados pelos valores éticos e morais que convergem em costumes no aperfeiçoamento da conduta, ainda que suprimindo na relação contratual uma obrigação pactuada. Observa-se o fenômeno da mutação dos termos do contrato para preservar a expectativa que se gerou pela praxe que se espera. Neste sentido, segue o julgado do Superior Tribunal de Justiça:

O princípio da boa-fé objetiva exerce três funções: (i) a da regra de interpretação; (ii) a da fonte de direitos e deveres jurídicos; e (iii) a de limite de exercício de direitos. Pertencem a este terceiro grupo a teoria do adimplemento substancial das obrigações e a teoria dos atos próprios (tu quoque; vedação ao comportamento contraditório; surrectio e supressio). O instituto da supressio indica a possibilidade de considerar suprimida uma relação contratual, na hipótese de que o não exercício do direito do correspondente, pelo credor, gere no devedor a expectativa de que esse exercício não se prorrogará no tempo (STJ – 3ªT., Resp 953.389, Min. Nancy Andrighi, j.23.2.10, DJ 11.5.10.”

 

IV - Da obrigatoriedade dos contratos

Por sintoma da função social se tem o princípio da obrigatoriedade dos contratos em mutação ao princípio do equilíbrio econômico do contrato. Os ideais do direito romano quanto à mantença do sinalagma obrigacional conduziram a codificação do Código Civil de 1916 sob a força obrigatória dos contratos, assim a cláusula pacta sunt servanda era levada aos extremos, sem possibilidade de revisão. Todavia, os fatores socioeconômicos cumpridos de acordo com o equilíbrio de forças, afastando a abusividade do mais forte, na proteção do mais fraco, vem a proporcionar a mudança quanto ao resolucionismo para o revisionismo do contrato na conservação do contrato por trocas úteis e justas.

O contrato intangível autorizando o credor a executar o patrimônio do devedor passa a dar lugar a Teoria da Imprevisão pela cláusula rebus sic standibus, significando: das coisas como estão, estando assim as coisas. Trata-se de, excepcionalmente, flexibilizar a obrigatoriedade do que foi convencionado, para manter o que as partes tinham ajustado, preservando os interesses inicialmente avençados. Neste sentido, nos ensinamentos de Álvaro Villaça de Azevedo[22]:

A cláusula rebus sic standibus surgiu na idade média, da seguinte frase: “Os contratos que têm trato sucessivo e dependência futura devem ser entendidos como estando as coisas assim”, ou seja, como se encontram no momento da contratação (contratractus qui habentet tractum sucessivum et dependentiam de futuro, rebus sic estandibus intelligentur). Ela apresenta roupagem moderna, sob o nome da teoria da imprevisão, tendo sido construída pela Doutrina, com o intuito de abrandar a aplicação do princípio pacta sunt servanda (“os pactos devem ser cumpridos”), quando da alteração existente do momento da contratação.

Em análise a autonomia privada, cabe fazer a presente interação com a função social e a Teoria da Imprevisão, em fins de tornar presente a sociabilidade do direito, alterando a concepção imutável do contrato. A obrigatoriedade do contrato, assim, passa por abrandamento, dando lugar ao equilíbrio econômico na superveniência de fatos que vem onerar as partes, desiquilibrando o sinalagma obrigacional pactuado inicialmente. Neste sentido, observa-se que a função social do contrato, como diretriz do dirigismo estatal na vontade dos particulares, vem dar estabilidade as relações contratuais por meio do princípio do equilíbrio econômico.Neste sentido, o enunciado 22 da primeira jornada de estudos do Conselho de Justiça Federal:

En. 22: A função social do contrato prevista no art. 421 do novo Código Civil constitui cláusula geral, que reforça o princípio da conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas.

Observa-se que a autonomia privada passa por modificações para que a igualdade, um bem maior que é constitucionalmente protegido, preserve a relação contratual igualmente ao momento da contratação. O Código Civil de 1916 baseava-se em um critério de igualdade que não se adequava a dinâmica das relações civis, uma vez que a obrigatoriedade levada aos extremos do momento da pactuação, pode levar ao desiquilíbrio econômico em momentos posteriores a celebração em contratos de execução diferida e contínua, dando causa ao enriquecimento ilícito. Ao invés de rever a relação, operava-se a resolução contratual por descumprimento, ocasionando a perda dos haveres já prestados.

Ocorre que a o Código Civil de 1916 voltava-se apenas ao momento da celebração para considerar as partes em estado de igualdade. Não havia proteção do mais forte, quanto ao mais fraco na relação econômica. A alteração das circunstâncias supervenientes, por forças sociais e econômicas, não eram consideradas em qualquer hipótese, não se cogitando possibilidade de mutação do contrato. Nos ensinamentos de Arruda Alvim[23]

 “Então esse princípio do pacta sunt servanda, no quadrado do liberalismo assumia que todos os contraentes eram iguais – todos iguais perante a lei -  e os negócios ou o confronto de indivíduos haveria de corre dentro desse espaço amplo de liberdade, pressuposta sempre a igualdade dos contraentes. Nessa quadra histórica não se cogitava do contraente forte e do fraco, dado que, por causa da igualdade formal, que permeou os sistemas jurídicos, o legislador assumia que todos eram iguais (formalmente iguais) e assim tratava.

Em análise ao equilíbrio econômico, deve ser observado que o contrato permanece com a esência no corolário do princípio da força obrigatória dos contratos, todavia, em mutação, permanecem as partes obrigadas pela contratação, agora com temperamento pelo princípio do equilíbrio econômico. Neste sentido, observa-se que contrato não pode perder a razão de ser o contrato, como instrumento econômico de força vinculante, pois é neste fundamento essencial que se  assegura a estabilidade das relações. Neste sentido, ensina Arruda Alvim[24]:

 “Essa essência do direito de propriedade, objeto de proteção constitucional, sugere em relação aos contratos, conquanto hoje permeado o sistema pela função social que devem desempenhar, que não devemos esquecer que de que os contratos existem para vincular as pessoas e devem, fundamentalmente, ser cumpridos. Só dias das exceções consagradas em lei, é que deverão alterar ou desfazer o contrato, da mesma forma que o direito de propriedade existe também para o dono, do qual não pode, sic et simpliciter, vier a ser privado. Por outras palavras, restrições poderão ocorrer, que, se efetivadas, levariam à ignorância do direito de propriedade, como também, mutatis mutandis, se se vier a emprestrar às expressões função social do contrato uma dimensão tal, que essa poderia ser destrutiva e vir a conduzir à ignorância da própria razão de ser do contrato.

 

V - Da relatividade das partes

Mais um sintoma da função social como eixo de regulação da autonomia privada está o princípio corolário contratual da relatividade das partes, estabelecendo efeitos da liberdade contratual entre seus contraentes. Este princípio vem a expressar a relatividade no sentido de ser relativo aos contraentes, unindo-se por força contratual, para produção de efeitos jurídicos de uma parte para com a outra. Por meio da relatividade entre as partes se estabelecem obrigações pessoais, de pessoa para pessoa, conferindo direitos para agir relativos um contra o outro.

No Direto Romano esse princípio estava presente no cunho pessoal do vínculo e recebia o nome de res inter alios acta aliis nequet nocet neque prodest, que significa: o ato havido entre as partes não pode aproveitar nem prejudicar terceiros, assim, chegou aos nossos tempos como o princípio da relatividade dos efeitos dos contratos[25]. Desta forma somente o devedor é obrigado a prestar, e, somente o credor está por direito de exigir.

Há diferença do direito pessoal para o direito real, pois o direito real há uma relação pessoa e coisa, exteriorizando pela coisa uma relação perante todos. É preciso observar que a relatividade implica em critérios de eficácia. Na relatividade analisa-se pessoa e pessoa, assim o vincula tem eficácia inter-partes, já quando relativo pessoa e coisa, tem eficácia perante terceiros, uma vez que a coisa se relaciona com o seu absolutismo de propriedade, oponível a todos. A oponibilidade decorre de um fator, a publicidade, gerando conhecimento perante terceiros. Logo, há proteção perante terceiros em razão da publicidade.

Inicia-se um diálogo para os efeitos externos em relação extrínseca a obrigação. Daí, em regra, analisar-se a quem se comunica a oponibilidade em relação à eficácia atribuída ao contrato[26]. Surge o critério oponibilidade e eficácia. Quando entre pessoas, o direito é pessoal, sua oponibilidade se comunica inter-partes, se entre pessoa e coisa, o direito é real, sua oponibilidade se comunica erga-omnes, perante todos. Todavia, excepcionalmente, é possível que sua eficácia de direitos de natureza pessoal passe a ser oponível a terceiros, uma vez atingida forma de proteção ao crédito, indo além das partes negociais.

Hugo Evo Magro Corrêa, ao analisar a eficácia em sua extensão de efeitos traz a seguinte comparação para tutela da relação obrigacional[27]:

Em um classificação simples e prática, podem-se agrupar os efeito externos das obrigações em três grupos, que variam em uma escala da ausência completa de efeitos até a mais absoluta interfência de terceiros, a saber: a)contrato a favor de terceiros (reflexos direitos no patrimônio de terceiro); b) eficácia reflexa no patrimônio de terceiro (oponibilidade); e) contratos protetivos e onerativos de terceiros (baseados em deveres laterais de conduta, originários da incidência do princípio da boa fé objetiva).

A tutela de efeitos externos do crédito se fortalece na medida em que a função social do contrato vem a ser devidamente considerada, inserida no contexto da ordem econômica social e econômica que preservam a livre-iniciativa no Estado Democrático de Direito. Assim, fazem-se merecedoras de proteção as relações contratuais inter-partes, na tutela para que o ajustado entre estas não seja desconsiderado por terceiros que atentem contra sua função social. Há um diálogo pela comunicabilidade do crédito obrigacional, em oponibilidade extrínseca ao terceiro, em função do que se ajustou inter-partes, sob pena de esvaziar-se seu fim social. Neste sentido, o enunciado 21 Da primeira jornada de estudos do Conselho de Justiça Federal:

En. 21: A função social do contrato, prevista no artigo 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral, que impõe a revisão do princípio da relatividade dos efeitos do contrato em relação terceiros, implicando a tutela externa do crédito.

Observa-se a mutação do contexto da relatividade do contrato, pois, a revisão imposta pelo enunciado implica na alteração do contexto da eficácia, indo além para além das partes, tornando-se oponível a terceiros pela tutela externa do crédito. Na oponibilidade perante terceiros está presente a responsabilidade civil destes, devendo responder pelos prejuízos que causarem. A autonomia privada deve ser exercida em consideração ao que se tem por fim social do ajuste de vontade, inclusive pelo terceiro que toma ciência. Logo, há efeitos externos, extrínsecos as partes, por terceiros que não vem a respeitar o crédito, como exemplo prático, cabe mencionar as alusões de Flávio Tartuce quanto ao laudo do parecer do ilustre professor Antonio Junqueira de Azevedo[28] que:

“(...)em seu estudo, o culto professor Junqueira de Azevedo, titular da Faculdade de Direito USP, entende que é possível responsabilizar o terceiro que vende combustível ao revendedor, que por sua vez mantém um contrato de exclusividade com a distribuidora, exibindo a sua bandeira. Além da possibilidade de rescisão contratual diante desse fato, seria possível à distribuidora oficial pleitear indenização por eventuais perdas e danos em relação àquele que aliciou o posto revendedor.

 

VI - Conclusão – contrato mutante

Em conclusão, há de fazer os apontamentos pela busca da “verdade e consenso” que se apresenta no diálogo do saber prudencial e acautelamento de conflitos pela função social nos contratos. A nítida crise dos contratos na autonomia da vontade faz refletir sobre meios para que não supra-se os fins econômicos contratuais em atendimento ao contexto social, político e econômico, levando a mutação do contrato pelos novos valores que convergem nesta ordem jurídica que se forma. Em análise, podemos extrair, em síntese, as seguintes premissas:

a)o individualismo vindo dos ideais franceses não mais se faz valer na nova principiologia contratual, voltando-se ao bem estar coletivo e a personalização das relações privadas.

b) a liberdade de contratar cedeu lugar a liberdade contratual, delimitando a escolha de conteúdo do contrato pela função social.

c)a redução da liberdade contratual não deve ser vista como prejudicial a autonomia privada, apenas vindo a regular seus interesses para a devida segurança jurídica que permeia as relações privadas.

d) a autonomia da vontade encontra sua definição nos critérios subjetivos da vontade, enquanto a autonomia privada segue o caráter objetivo do poder real.

e) a legitimação da autonomia privada levou ao preenchimento do binômio finalidade-causalidade em consideração ao contexto metaindividual da função social.

f)a função social vem prevista na forma de cláusula geral aberta que, em sua maior abrangência, vem a potencializar a interpretação constitucional na balança da justiça do caso concreto

g) a autonomia privada apresenta sintomas que são gerados pelo corolário da função social, interagindo com o princípio da boa-fé objetiva, da obrigatoriedade dos contratos e da relatividade das partes.

h) a função social interage a boa-fé das partes e vem por funcionalizar padrões de conduta capazes de manter a estabilidade contratual em critérios de hermenêutica, deveres acessórios e limitação ao exercício de direitos.

i) a função social interage a obrigatoriedade dos contratos e vem a dar lugar ao princípio do equilíbrio dos contratos, afastando a imutabilidade do convencionado.

j) a função social interage a relatividadedas partes e passa a ter a eficácia inter-partes, resguardando a tutela externa do crédito em oponibilidade a terceiros que desconsiderem os fins sociais do contrato.

l) a isonomia contratual passou a ser um critério que permeia as relações contratuais para novos valores em sua principiologia em mutação.

k) novos paradigmas pela dignidade humana tomam lugar para assegurar a livre iniciativa no Estado-Democrático de Direito fundamentais a emancipacão contida no amadurecimento do Estado Liberal ao Estado Social.

 Para concluir, nos resta deixar os ensinamentos do nosso ilustríssimo mestre, Miguel Reale, que, em sua imensurável contribuição para a ciência do Direito, nos deixa esse maravilhoso diálogo entre valor, fatos e as normas.

 Em virtude da Teoria Tridimensional de Miguel Reale, nos pilares da sociabilidade, da eticidade e da operablidade do Direito pela decodicação e codificação do Código Civil de 2002, seguem seus apontamentos[29]:

 “Ensina Miguel Reale que a sua Teoria Tridimensional do Direito e do Estado vem sendo concebida desde 1940, distinguindo-se das demais teorias por ser “concreta e dinâmica”, eis que “fato, valor e norma estão sempre presentes e co-relacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo de fato e ao jurista a norma (tridimensionalidade como requisito essencial do direito)”. (Teoria Tridimensional do Direito. Situação Atual. São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 57). (...)Vai além o seu parecer, demonstrando o autor que a relação entre os três elementos da sua teoria é de “natureza funcional e dialética, dada a ‘implicação-polaridade’ existente entre fato e valor, de cuja tensão resulta o momento normativo, como solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de tempo (concreção histórica do processo jurídico, numa dialética de complementaridade, p. 57)”

 

BLIBIOGRAFIA

 

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WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as cláusulas gerais do Código Civil de 2002 – a função social do contrato. Revista dos Tribunais, vol. 831, janeiro de 2005

[1] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Direito Civil. Contratos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2012, citando LEX XII Tabularum, Tábula VI, in Textes, de Frederic Girardi, pag.13

[2]ARAÚJO, Maria Angélica Benetti. Autonomia da Vontade Contratual. In: NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coords). Revista do Direito Privado nº 27, jul-set, 2006, pg.279.

[3] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeito: Forense, 2005, pg.19.

[4] MELLO, Adriana Mandim Theodoro de. A Função Social do Contrato e o Princípio da Boa Fé-Objetiva no Novo Código Civil. Revista dos Tribunais. Ano 91. Voluma 801. Julho de 2002, pg.12

[5] HIRONAKA, Giselda Maria de Fernandes Novaes. Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado. In: BARROSO, Lucas Abreu (org.). Introdução crítica ao Código Civil. Rio de Janeiro, Forense, 2006.

[6] ARAÚJO, Maria Angélica Benetti. Autonomia da Vontade Contratual. In: NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coords). Revista do Direito Privado nº 27, jul-set, 2006, pg.286.

[7] ROPPO, Enzo. O contrato, p.137

[8] GOGLIANO, Daisy. A função social dos contratos (causa ou motivo). Revista Jurídica 334/9, 2004, pg.168, acesso via internet, endereço: www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67622/70232

[9] TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Método, 2007, pg. 75

[10] ARAÚJO, Maria Angélica Benetti. Autonomia da Vontade Contratual. In: NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coords). Revista do Direito Privado nº 27, jul-set, 2006, pg.284.

[11] ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no Novo Código Civil. Revista dos Tribunais vol. 815, setembro de 2003, pg.22.

[12] HIRONAKA, Giselda Maria de Fernandes Novaes. Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado. Elaborado em 08/2002. Acesso em 2014. Endereço: http://jus.com.br/artigos/4194/contrato-estrutura-milenar-de-fundacao-do-direito-privado#ixzz3GuMZQIbJ

[13] GOGLIANO, Daisy. A função social dos contratos (causa ou motivo). Revista Jurídica 334/9, 2004, pg. 158, acesso via internet, endereço: www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67622/70232

[14] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as cláusulas gerais do Código Civil de 2002 – a função social do contrato. Revista dos Tribunais, vol. 831, janeiro de 2005, pg.74

[15] MELLO, Adriana, op. cit.,  em citação de: O direito privado como um sistema em construção: as cláusulas no Projeto do Código Civil Brasileiro. Pg.13.

[16] KUMPEL, Vitor. Texto ministrado no curso preparatório para carreira de cartórios extrajudiciais – Prof. Vitor Kumpel, material de apoio, Gabarito da prova escrita do grupo 1 de Notas e Protesto, 2012.

[17] GOGLIANO, Daisy. A função social dos contratos (causa ou motivo). Revista Jurídica 334/9, 2004, pg. 193, acesso via internet, endereço: www.revistas.usp.br/rfdusp/article/viewFile/67622/70232

[18] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Uma reflexão sobre as cláusulas gerais do Código Civil de 2002 – a função social do contrato. Revista dos Tribunais, vol. 831, janeiro de 2005, pg.74

[19]MELLO, Adriana, op. cit.,  em citação de: O direito privado como um sistema em construção: as cláusulas no Projeto do Código Civil Brasileiro. Pg.24

[20] AZEVEDO, Álvaro Villaça de. O novo Código Civil: Tramitação, Função Social do Contrato, Boa-Fé Objetiva, Teoria da Imprevisão e em Especial Onerosidade Excessiva. Cadernos de Direito. Vol.4, n.6, disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-unimep/index.php/direito/article/view/739

[21] GOMES, Fernando de Paula. Do Contrato. Interpretação e boa-fé. In: In: NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade (coords). Revista do Direito Privado nº 27, jul-set, 2006, pg.129.

[22] AZEVEDO, Álvaro Villaça de. O novo Código Civil: Tramitação, Função Social do Contrato, Boa-Fé Objetiva, Teoria da Imprevisão e em Especial Onerosidade Excessiva. Cadernos de Direito. Vol.4, n.6, disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-unimep/index.php/direito/article/view/739

[23] ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no Novo Código Civil. Revista dos Tribunais vol. 815, setembro de 2003, pg.12

[24] ALVIM, Arruda. A função social dos contratos no Novo Código Civil. Revista dos Tribunais vol. 815, setembro de 2003, pg.25

[25] URBANO, Hugo Evo Magro Corrêa. A eficácia externa dos contratos e a responsabilidade civil de terceiros. In: NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade Nery (coords.). Revista do Direito Privado n.43, jul-set de 2012, pag. 182

[26] URBANO, Hugo Evo Magro Corrêa. A eficácia externa dos contratos e a responsabilidade civil de terceiros. Op. cit., pag. 192

[27]URBANO, Hugo Evo Magro Corrêa. A eficácia externa dos contratos e a responsabilidade civil de terceiros. Op. cit., pag. 192

[28] TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Contratos. São Paulo: Método, 2007, pg117

[29] TARTUCE, Flávio: Tendências do Novo Direito Civil: Uma Codificação para o 3° Milênio Compreendendo a 

[30] BITTAR, Eduardo Carlos: Democracia, Justiça e Emancipação Social, Editora Quartier Latin do Brasil, 2013, pg 641.

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