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O poder de polícia e o direito de dirigir

02/02/2015 às 14:10
Leia nesta página:

Dirigir realmente é um direito? O tema proposto tem por fim causar uma reflexão sobre o direito de dirigir bem como a atuação da Administração Pública através do poder de polícia para a concessão deste direito

Uma das penalidades previstas no art. 256 do CTB aplicáveis ao condutor infrator, é a suspensão do direito de dirigir. Ora, se o direito de dirigir pode ser suspenso, será que realmente a habilitação ou documento análogo representa em si um direito concedido?

Pelos fundamentos jurídicos e conceitos doutrinários extraídos da escola administrativa, a definição da natureza jurídica que se procura, poderia ser encara sob o viés de um direito (como efetivamente leva a crer a redação acima trazida), uma concessão ou uma licença.

Sob a perspectiva do direito, este deve ser entendido a partir do âmbito objetivo e subjetivo.

Objetivamente considerado, o direito retrata o conjunto de regras obrigatórias a serem seguidas e respeitadas pela população.

Subjetivamente, é a possibilidade de prevalência o interesse de alguém sob outrem, baseado em um preceito objetivo; é o direito de pretender.

Quem entende ser a condução do veículo automotor uma concessão, o encara como algo concedido pelo Estado que, por conseguinte detém o direito e o concede a particulares que podem perdê-lo, dentre outros motivos, por má conduta no trânsito.

No entanto, penso que a licitude do ato de dirigir advém do simples atendimento de requisitos previamente elencados.

Assim, dirigir é um direito subjetivo condicionado à prévia declaração por ato administrativo denominado licença.

Entende-se por licença:

“ato administrativo unilateral e vinculado pelo qual a Administração faculta àquele que preencha os requisitos legais o exercício de uma atividade.

A diferença entre licença e autorização, acentua Cretella Júnior, é nítida, porque o segundo desses institutos envolve interesse, “caracterizando-se como ato discricionário, ao passo que a licença envolve direitos, caracterizando-se como ato vinculado”. Na autorização, o Poder Público aprecia, discricionariamente, a pretensão do particular em face do interesse público, para outorgar ou não a autorização, como ocorre no caso de consentimento para porte de arma; na licença, cabe à autoridade tão somente verificar, em cada caso concreto, se foram preenchidos os requisitos legais exigidos para determinada outorga administrativa e, em caso afirmativo, expedir o ato, sem possibilidade de recusa; é o que se verifica na licença para construir e para dirigir veículos automotores.” DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 217

Como visto, dirigir deve ser encarado como um direito subjetivo advindo das normas de direito objetivo que pode ser exercido a partir do preenchimento de certos requisitos, revelando o caráter de licença do ato que o defere, sempre tendo um perfil vinculado.

Esta discussão se mostra importante quando lembramos das imprecisões terminológicas adotadas pelo código que a princípio utiliza como sinônimos os termos: Direito de dirigir, Permissão para dirigir, Autorização para conduzir ciclomotor etc..

Isto é, de forma atécnica expõe uma série de terminologias com fundo temático totalmente divergentes uns dos outros, cabendo por este motivo a crítica aqui registrada.

Por fim, o famigerado direito de dirigir deverá ser alcançado após a aprovação do candidato nos prévios requisitos de habilitação, tal como previsto no capítulo XIV do CTB.

Ao apresentar os primeiros passos para a aquisição do direito de dirigir, o Código exige que o candidato seja aprovado em exames a serem aplicados pela Entidade Executiva de Trânsito, além de apresentar outras características necessárias à condução do veículo automotor, conforme preleciona os arts. 140 E 147 do CTB:

Art. 140. A habilitação para conduzir veículo automotor e elétrico será apurada por meio de exames que deverão ser realizados junto ao órgão ou entidade executivos do Estado ou do Distrito Federal, do domicílio ou residência do candidato, ou na sede estadual ou distrital do próprio órgão, devendo o condutor preencher os seguintes requisitos:

I - ser penalmente imputável;

II - saber ler e escrever;

III - possuir Carteira de Identidade ou equivalente.

Art. 147. O candidato à habilitação deverá submeter-se a exames realizados pelo órgão executivo de trânsito, na seguinte ordem:

I - de aptidão física e mental;

II - (VETADO)

III - escrito, sobre legislação de trânsito;

IV - de noções de primeiros socorros, conforme regulamentação do CONTRAN;

V - de direção veicular, realizado na via pública, em veículo da categoria para a qual estiver habilitando-se.

Ratificando todo o exposto, uma vez aprovado o candidato, o ato de licença deve ser manifesto, e o direito de dirigir (ainda que neste momento chamado de permissão), conferido.

Mas afinal: porque se faz necessário tão árduo processo?

A resposta se encontra nos pilares de sustentação da atividade administrativa, isto é: a supremacia do interesse público e a indisponibilidade deste interesse, tendo como ferramenta de materialização o poder de polícia administrativo preventivo.

A supremacia do interesse público, marco do regime jurídico administrativo, representa a constante busca pelo atingimento da finalidade da Administração, caracterizada no interesse público.

Sintetizando o tema com maestria, José dos Santos Carvalho Filho:

“As atividades administrativas são desenvolvidas pelo Estado para benefício da coletividade. Mesmo quando age em vista de algum interesse estatal imediato, o fim último de sua atuação deve ser voltado para o interesse público. E se, como visto, não estiver presente esse objetivo, a atuação estará inquinada de desvio de finalidade.

Desse modo não é o indivíduo em si o destinatário da atividade administrativa, mas sim o gripo social num todo. Saindo da era do individualismo exacerbado, o Estado passou a caracterizar-se como o Welfare State (Estado/bm-estar), dedicado a atender ao interesse público. Logicamente, as relações sociais vão ensejar, em determinados momentos, um conflito entre o interesse público e o interesse privado, mas, ocorrendo esse conflito, há de prevalecer o interesse público.” CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24 Ed. São Paulo: Lumen Juris, 2011, p. 29

A busca por tal supremacia, por óbvio, gera a necessidade da utilização de ferramentas ou prerrogativas necessárias à consecução de tal desiderato.

Assim, sendo a supremacia do interesse público a representação de um conjunto de prerrogativas postas à disposição da Administração para fazer valer este interesse, é certo que uma das formas utilizadas para garantir a segurança pública e a defesa da vida daqueles que estão no trânsito deve ser, no primeiro momento, o Poder de Polícia preventivo.

Dentre os poderes instrumentais da Administração, o poder de polícia sem dúvida ganha relevo por sua importância ímpar na busca pela predominância do interesse da coletividade sobre o privado.

Analisando o tema, basilar é a lição de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“Quando se estuda o regime jurídico-administrativo a que se submete a Administração Pública, conclui-se que os dois aspectos fundamentais que o caracterizam são resumidos nos vocábulos prerrogativas e sujeições, as primeiras concedidas à Administração, para oferecer-lhes meios para assegurar o exercício de suas atividades, e as segundas como limites opostos à atuação administrativa em benefício dos direitos dos cidadãos. Praticamente, todo o direito administrativo cuida de temas em que se colocam em tensão dois aspectos opostos: a autoridade da administração pública e a liberdade individual.

O tema relativo ao poder de polícia é um daqueles em que se colocam em confronto esses dois aspectos: de um lado, o cidadão quer exercer plenamente os seus direitos; de outro, a Administração tem por incumbência condicionar o exercício daqueles direitos ao bem-estar coletivo, e ela o faz usando de seu poder de polícia. DI PIETRO. Maria Sylvia. Direito Administrativo. 21ª Ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 105.

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Aplicado à realidade do trânsito, o poder de polícia é exercido preventivamente quando os órgãos e entidades executivas de trânsito submetem os pretensos condutores à uma série de exames, como citado no art. 147 acima transcrito.

Esta lógica tem fundamento quando se retoma o princípio da supremacia, pois com a exigência dos procedimentos alhures listados, a Administração Pública exige que o futuro condutor demonstre não representar um risco à sociedade e à vida das pessoas que com ele dividem as vias.

Sendo assim, este verdadeiro direito subjetivo que é exercido após a comprovação de necessária aptidão física e técnica, não se mostra como direito perpétuo, mas sim condicionado. Condicionado à manutenção dos requisitos que possibilitaram à aquisição da habilitação, requisitos estes relacionados à  questões de saúde (art. 147,§2 do CTB), e constante atendimento às instruções ministradas durante as aulas teóricas e práticas.

Desta forma, o Poder de Polícia utilizado em sua vertente preventiva para a edição do ato administrativo de licença, poderá ser a qualquer tempo lançado de forma repressiva para a extinção do ato pelo instituto da cassação quando caracterizado o não atendimento dos requisitos de manutenção do ato por parte do interessado.

A cassação (tipo de extinção do ato administrativo) do ato de habilitação se dá nos casos previstos nos artigos 261 e 263 do CTB, in verbis:

Art. 261. A penalidade de suspensão do direito de dirigir será aplicada, nos casos previstos neste Código, pelo prazo mínimo de um mês até o máximo de um ano e, no caso de reincidência no período de doze meses, pelo prazo mínimo de seis meses até o máximo de dois anos, segundo critérios estabelecidos pelo CONTRAN.

Art. 263. A cassação do documento de habilitação dar-se-á:

I - quando, suspenso o direito de dirigir, o infrator conduzir qualquer veículo;

II - no caso de reincidência, no prazo de doze meses, das infrações previstas no inciso III do art. 162 e nos arts. 163, 164, 165, 173, 174 e 175;

III - quando condenado judicialmente por delito de trânsito, observado o disposto no art. 160.

Em conclusão, fica claro que dirigir efetivamente é um direito alcançado após a aprovação do candidato aos testes que o revelam apto a conduzir o veículo sem expor a risco os interesses da coletividade, e que pode ser retirado pelo instituto da cassação do ato administrativo (que não se confunde com a penalidade de cassação do direito de dirigir), sendo aquela um gênero e esta uma espécie.

Assim, a condução de veículo automotor sempre será regido pela supremacia do interesse público, sendo o Poder de Polícia (preventivo ou repressivo), o seu instrumento primordial quando tratamos do Direito de dirigir. 

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Sobre o autor
Paulo André Cirino

Advogado do DETRAN|ES, Consultor de Trânsito, Palestrante.<br><br><br>CONTATO: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CIRINO, Paulo André. O poder de polícia e o direito de dirigir. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4233, 2 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/33409. Acesso em: 28 mar. 2024.

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