A aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica no direito brasileiro

18/11/2014 às 14:55
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Aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica na jurisprudência brasileira, com base na interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil e nos princípios da disregard doctrine.

A teoria da desconsideração de personalidade jurídica tem origem jurisprudencial, ou seja, é criação da jurisprudência.

Portanto, é de suma importância para a compreensão do tema em nosso ordenamento jurídico, seja no caso da desconsideração propriamente dita, seja no caso de sua modalidade inversa, o estudo acerca do entendimento dos tribunais pátrios.

Rubens Requião defende a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica pelos juízes independentemente de previsão legal:

“Ora, diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos.”[1]

O acórdão considerado como leading case acerca da desconsideração inversa da personalidade jurídica foi proferido em 26 de novembro de 2008, de relatoria do Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

“Agravo de Instrumento. Cumprimento de sentença condenatória. Deferimento de penhora on line de numerário existente em contas bancárias/ aplicações do devedor. Frustração da penhora em face da informação da inexistência de saldo nas contas bancárias. Devedor é sócio controlador de saociedades empresárias e considerado o maior revendedor de veículos da América Latina. Pedido de aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica para que a penhora recaia em saldos bancários das sociedades empresárias controladas pelo devedor. Indeferimento pelo juiz de 1º grau. Reconhecimento da possibilidade de se declarar a desconsideração da personalidade jurídica incidentalmente na fase de execução da sentença, não se exigindo ação autônoma, mas, observando-se o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal. Prova de que o sócio é devedor é, em rigor, ‘dono’ da sociedade limitada e da sociedade anônima fechada, das quais é o presidente, controlador de fato, e, apesar da participação minoritária de sua esposa, ficam elas caracterizadas como autênticas sociedades unipessoais. Confusão patrimonial entre sócio e sociedades comprovada. Patrimônio partículas do sócio controlador constituído de bens que, na prática, mesmo que penhorados, não seriam convertidos em pecúnia para a satisfação do credor. Oferecimento de bens imóveis à penhora, que, por se situarem no Estado da Paraíba, distantes mais de 2.600 km de São Paulo, onde tramita a execução, com nítido escopo de se opor maliciosamente à execução, empregando ardis procrastinatórios, que configura ato atentatório à dignidade da justiça. Agravo provido, para deferir a desconsideração inversa da personalidade jurídica das sociedades empresárias indicadas (Limitada e S.A. fechada), autorizada a penhora virtual de saldos de contas bancárias.”[2]

Trata-se de ação de cobrança de honorários advocatícios que não foram pagos por Carlos Alberto de Oliveira Andrade  à Manuel Alceu Affonso Ferreira Advogados.

A ação foi julgada procedente, condenando o réu ao pagamento dos honorários advocatícios. Entretanto, Carlos Alberto não efetuou o pagamento. Sendo assim, o autor deu início à execução de sentença.

O caso acima impôs o deferimento da desconsideração inversa da personalidade jurídica com base no requisito da confusão patrimonial, com base em interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil.

A desconsideração inversa tem também grande aplicação no direito de família, em casos em que há a utilização indevida da pessoa jurídica com o intuito de fraudar a meação.

Dessa forma, a aplicação da disregard doctrine se dá no sentido de buscar o patrimônio que de fato pertence ao cônjuge, que foi integralizado ao patrimônio da pessoa jurídica, na tentativa de afastá-lo da partilha.

Nesse sentido, vejamos o julgado abaixo:

“DIREITO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. INADMISSIBILIDADE. LEGITIMIDADE ATIVA.  COMPANHEIRO LESADO PELA CONDUTA DO SÓCIO. ARTIGO ANALISADO: 50 DO CC/02.

1. Ação de dissolução de união estável ajuizada em 14.12.2009, da qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 08.11.2011.

2. Discute-se se a regra contida no art. 50 do CC/02 autoriza a desconsideração inversa da personalidade jurídica e se o sócio da sociedade empresária pode requerer a desconsideração da personalidade jurídica desta.

3. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.

4. É possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva.

5. Alterar o decidido no acórdão recorrido, quanto à ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do sócio majoritário, exige o reexame de fatos e provas, o que é vedado em recurso especial pela Súmula 7/STJ.

6. Se as instâncias ordinárias concluem pela existência de manobras arquitetadas para fraudar a partilha, a legitimidade para requerer a desconsideração só pode ser daquele que foi lesado por essas manobras, ou seja, do outro cônjuge ou companheiro, sendo irrelevante o fato deste ser sócio da empresa.

7. Negado provimento ao recurso especial.”[3]

De acordo com a Ministra Nancy Andrighi, nos ensinamentos do acórdão supra mencionado:

“Pode-se vislumbrar situações, por exemplo, em que o cônjuge ou companheiro esvazia seu patrimônio pessoal, enquanto pessoa natural, e o integraliza na pessoa jurídica, de modo a afastá-lo da partilha. Também é possível que o cônjuge ou companheiro, às vésperas de seu divórcio ou dissolução da união estável, efetive sua retirada aparente da sociedade da qual é sócio, transferindo sua participação para outro membro da empresa ou para terceiro, também com o objetivo de fraudar a partilha.

Nessa ordem de ideias, a desconsideração inversa da personalidade jurídica poderá ocorrer sempre que o cônjuge ou companheiro empresário valer-se de pessoa jurídica por ele controlada, ou de interposta pessoa física, a fim de subtrair do outro cônjuge ou companheiro direitos oriundos da sociedade afetiva.”

Ou seja, é aplicada a teoria da desconsideração de forma inversa, para que o sócio não fraude a partilha, transferindo os bens para o patrimônio da sociedade, e não lese o cônjuge ou companheiro com relação aos bens advindos da união de ambos.

A desconsideração inversa é também possível em casos de Execução de Títulos, sendo possível direcionar a execução para o faturamento de sociedade empresária do mesmo grupo econômico:

AGRAVO REGIMENTAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535, II, DO CPC. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO ACÓRDÃO ESTADUAL. REDISCUSSÃO DE MATÉRIA JÁ DECIDIDA EM SEDE DE ACLARATÓRIOS. INVIABILIDADE. CONTRARIEDADE AO ART. 463, I, DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. VALOR DO DÉBITO FIXADO APÓS JULGAMENTO DE EMBARGOS À EXECUÇÃO, TRANSITADOS EM JULGADO HÁ MAIS DE DEZ ANOS. NECESSIDADE DE PERIÓDICAS ATUALIZAÇÕES ATÉ O EFETIVO RESGATE DO CRÉDITO. CABIMENTO DE EVENTUAL IMPUGNAÇÃO FUNDAMENTADA. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA AOS ARTS. 620, 659, 685, II, DO CPC. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA (CC, ART. 50). REDISCUSSÃO DOS REQUISITOS. NECESSIDADE DE REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA (SÚMULA 7/STJ). CONTRARIEDADE AO ART. 683, II, DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL NÃO DEMONSTRADO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. Inexiste violação ao art. 535, II, do CPC, porquanto as questões submetidas à Corte Estadual foram suficiente e adequadamente delineadas, com abordagem integral do tema e fundamentação compatível. Os embargos de declaração opostos na instância a quo visavam rediscutir temas já decididos, o que não é admissível, pois esta espécie recursal não se presta à rediscussão da lide.

2. Não há contrariedade ao art. 463, I, do CPC, pois, segundo o v. acórdão recorrido, o valor do débito já foi definido no julgamento dos embargos à execução, cujo trânsito em julgado ocorreu há mais de 10 (dez) anos. De fato, a apuração e discussão do valor devido não pode ser reaberta a cada momento na execução, sob pena de esta perpetuar-se sem solução, com evidente prejuízo para o credor e descrédito do Judiciário. O que sempre caberá fazer serão as atualizações periódicas até o efetivo resgate do débito, com o integral pagamento da dívida. Por ocasião de cada atualização periódica, poderá o executado manifestar-se, impugnando eventual equívoco, de forma leal e fundamentada, ou seja, apresentando cálculos pertinentes à atualização. 3. Inexistência de infringência aos arts. 620, 659 e 685, II, do CPC, porque tais normas traçam diretrizes ao labor do magistrado para tomar decisões visando ao sucesso da execução de forma salutar a todas as partes. Nesse mister, cada passo visando a concretização da execução deve ser devidamente sopesado e suas consequências avaliadas.

4. A eg. Corte Estadual entendeu viável direcionar a execução para o faturamento de sociedade empresária do mesmo grupo econômico, com aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a possibilitar ao credor o recebimento de parte de seu crédito.

5. A rediscussão acerca da existência dos requisitos previstos no art. 50 do Código Civil de 2002, para a aplicação da disregard doctrine, demandaria o reexame de matéria fático-probatória, o que não se admite na estreita via do recurso especial, consoante a Súmula 7/STJ.

6. Ausência de afronta ao art. 683, II, do CPC, pois o v. acórdão estadual não indeferiu o pedido de reavaliação do imóvel antes da adjudicação, tão somente entendeu que os agravantes não apresentaram justificativa para nova avaliação do bem.

7. Dissenso pretoriano não comprovado, uma vez que os paradigmas apresentados não possuíam similitude fático-jurídica com o acórdão atacado.

8. Agravo regimental a que se nega provimento.”[4]

O caso acima trata da aplicação da teoria quando há confusão patrimonial, pois as empresas fazem parte de um mesmo grupo familiar, sem que haja a divisão do patrimônio, fazendo com que este se confunda entre o que de fato pertence a cada empresa.

Nesse mesmo sentido:

“PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO JUDICIAL. ART. 50 DO CC/02. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA. POSSIBILIDADE.

I - A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial. Súmula 211/STJ.

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II - Os embargos declaratórios têm como objetivo sanear eventual obscuridade, contradição ou omissão existentes na decisão recorrida. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o Tribunal a quo pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos, assentando-se em fundamentos suficientes para embasar a decisão, como ocorrido na espécie.

III - A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador.

IV - Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma.

V - A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, ‘levantar o véu’ da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa.

VI - À luz das provas produzidas, a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, entendeu, mediante minuciosa fundamentação, pela ocorrência de confusão patrimonial e abuso de direito por parte do recorrente, ao se utilizar indevidamente de sua empresa para adquirir bens de uso particular.

VII - Em conclusão, a r. decisão atacada, ao manter a decisão proferida no primeiro grau de jurisdição, afigurou-se escorreita, merecendo assim ser mantida por seus próprios fundamentos.

Recurso especial não provido.”[5]

Neste acórdão, a Ministra Nancy Andrighi trata da aplicação da desconsideração inversa independente de uma interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil, com base nos princípios da disregard doctrine:

“Ademais, ainda que não se considere o teor do art. 50 do CC/02 sob a ótica de uma interpretação teleológica, entendo que a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica em sua modalidade inversa encontra justificativa nos princípios éticos e jurídicos intrínsecos a própria disregard doctrine , que vedam o abuso de direito e a fraude contra credores. Outro não era o fundamento usado pelos nossos Tribunais para justificar a desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, quando, antes do advento do CC/02, não podiam se valer da regra contida no art. 50 do diploma atual.”

Portanto, temos que a desconsideração inversa da personalidade jurídica tem larga aplicação na jurisprudência brasileira, com base na interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil e nos princípios da disregard doctrine.


[1] REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica (disregard doctrine). In: Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 61.

[2] Tribunal de Justiça de São Paulo. AgIn 1.198.103-0/0 – 29ª Câmara de Direito Privado, julgamento em 26/11/2008, relator Desembargador Pereira Calças

[3] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.236.916/RS (2011/0031160-9), julgamento em  22/10/2013, relatora Ministra Nancy Andrighi

[4] Superior Tribunal de Justiça. AgRg no Agravo em Recurso Especial nº 216.391/SP (2012/0167380-9), julgamento em 18/06/2013, relator Ministro Raul Araújo

[5] Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 948.117/MS (2007/0045262-5), julgamento em 22/06/2010, relatora Ministra Nancy Andrighi

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