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Por uma reflexão constitucional-penal da disponibilidade da própria vida em um contexto eutanásico

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18/11/2014 às 14:22
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A incriminação das hipóteses eutanásicas constitui uma mostra de paternalismo estatal injustificado, que, impondo omissão ao eutanasista (paternalismo indireto), vulnera reflexamente a dignidade da pessoa afetada.

Por qué morir?

Morir es jugarnos a una sola carta toda nuestra vida.

Es apostarlo todo al deseo de encontrar un lucero

Que nos alumbre un nuevo camiño.

Y si perdemos la apuesta,

sólo perderemos la desesperanza y el dolor infinito.

Sólo perderemos el llanto que,

Lágrima tras lágrima, nos anega el alma.

Como náufrago que, después de que el barco se haya hundido,

Solamente espera, con resignación del vencido,

Agotar la fuerza de la última brazada para entregarse,

 como el rendido amante,

A las tiernas caricias de su amada mar;

A sus besos salados y arrullos de brisas.

Y si ganamos la apuesta de la muerte, si la

Esquiva suerte una vez nos mira,

Ganaremos el cielo,

porque en el infierno ya hemos pasado toda nuestra vida.

(SAMPEDRO CAMEÁN, RAMON apud NUÑEZ PAZ, 1999, p. 263)

RESUMO: É lugar comum aludir à transcendente polêmica derredor da disposição da vida pelo próprio titular. No contexto de discussão desta espinhosa dicotomia “vida/morte” situa-se o presente ensaio, o qual propugna por uma reflexão acerca da disponibilidade da vida pelo próprio titular em um contexto em que viver implica violar-lhe a dignidade humana. Trata-se fundamentalmente de analisar o conteúdo, os limites e o âmbito de tutela jurídica à vida em um sistema alicerçado em uma concepção humanista, de realização da pessoa humana. Empreende-se, para tanto, estudo sobre o tratamento conferido pela doutrina nacional ao tema e, especialmente, traz lições hauridas nas doutrinas espanhola e alemã. Questiona-se, no bojo desta investigação, a clássica afirmação da indisponibilidade da vida e da inexistência de um direito sobre a vida e perscruta-se fundamentalmente sobre a existência de um direito constitucional a dispor da própria vida.

ABSTRACT: It is a cliché to allude to the transcendental and controversial discussion around the ending of one´s life. This is in context of the discussion about the uncomfortable life/death dichotomy presented on this essay which argues in favour of a reflection regarding the disposal of one´s life, when continuing with this life compromises the person’s dignity. The main focus of this study is an analysis of its contents, the constitutional legal limitations which favours the preservation of the human being. Therefore studies realized by national doctrines about this matter specially bring lessons from Spanish and German doctrines. This also raises questions around common held beliefs regarding the ownership of one´s life and the absence of rights over that life. And it mainly speculates on the existence of a constitutional right to end one´s life.

PALAVRAS-CHAVE: Direito à Vida; Disponibilidade; Direito Penal.

SUMÁRIO: 1. Da Disponibilidade da Própria Vida: 1.1 Notas Introdutórias: A Constitucionalização da Dignidade da Pessoa Humana: uma Contextualização: 1.2 Da (In) Disponibilidade da Vida: Paternalismo Estatal e Perspectiva Constitucional: 2. Da “Disponibilidade” do Direito à Vida: 3.1 Antecedentes Históricos e Discussão Conceitual da Eutanásia Consentida: 3.2. Eutanásia Pura ou Genuína: 3.3.  Eutanásia Consentida por Omissão: 3.3.1 Rechaço de Tratamento Vital por Motivos Religiosos: 3.3.2. Eutanásia omissiva por ação (comissão): 3.4 Eutanásia Ativa Indireta: 4. Considerações Finais:


1. Da Disponibilidade da Própria Vida:

1.1 Notas Introdutórias: A Constitucionalização da Dignidade da Pessoa Humana: uma Contextualização:

O capítulo recente da História legou profundas marcas na Humanidade, refletindo-se em Declarações Internacionais[1] e no constitucionalismo de diversas nações. O século XX foi pródigo em barbáries. Os ecos do Holocausto e das atrocidades perpetradas sob umbral dos regimes totalitaristas ainda se fazem ouvir e não devem ser olvidados, “singelamente porque a memória é um dos mais preciosos bens de um povo[2]” (VALLE MUÑIZ, 1987, p. 155).

O diálogo histórico mantido entre Estado e indivíduo, expressando uma reação à maneira ensimesmada como se concebia aquele ente, fortemente calcada (a concepção) em uma supremacia de interesses da coletividade sobre a pessoa, a ponto de negar os direitos das minorias, inclusive, dando azo a exterminá-las, passa a uma fase de (re)afirmação do Homem. Não se deve ao acaso o fato de, posteriormente à Segunda Guerra Mundial e à medida do colapso das diversas expressões de totalitarismo (do Nazismo, na Alemanha; do Franquismo, em Espanha; Salazarismo, em Portugal e a Ditadura Militar brasileira), ter-se erigido a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental de diversos ordenamentos jurídicos[3].

Em uma palavra, “sem Auschwitz talvez a dignidade da pessoa humana não fosse, ainda, princípio matriz do direito contemporâneo[4]” (ROCHA, Carmen Lúcia, 2004, p. 33).

É neste contexto que a Lei Fundamental da República alemã, de 1949; a Constituição portuguesa, de 1976 e a espanhola, datada de 1978, inserem-se, servindo de inspiração para o constituinte pátrio, sendo oportuna a afirmação de José Manuel Cardoso da Costa[5] (1999, p. 191) sobre o ordenamento português:

Trata-se [a constitucionalização do princípio citado] de uma afirmação enfática e peremptória da maior importância e significado (como, de resto, imediatamente se infere da circunstância, não casual, de vir inscrita logo na abertura do texto constitucional). É óbvio que ela tem o propósito e o alcance de inequivocamente marcar a Constituição portuguesa daquele profundo sentido humanista e personalista do Estado – o Estado existe por causa do homem, e não o homem por causa do Estado.

Primeiramente, reconheceu-se a pessoa como centro da ordem normativa, a um só tempo fundamento e objetivo do Estado; instituindo-lhe um limite e uma incumbência (dever de prestação). Ademais, constituiu uma sociedade pluralista, que há de primar pela harmônica convivência com as diferenças; de possibilitar o livre desenvolvimento da personalidade; fazendo consignar o direito a ser diferente.

Fundamentalmente, pode-se conceber a pessoa como um processo histórico em evolução, que traz consigo suas vivências e, no presente, traça para si as metas que haverão de guiar sua existência. Fixa para si uma ideia pessoal de existência digna, a partir de uma eleição subjetiva dos valores que hão de norteá-la. Constrói um projeto existencial como reflexo de sua personalidade. Cabe aqui uma delimitação. Se é verdade que as pessoas têm potencialmente autodeterminação, neste trabalho, parte-se da possibilidade concreta deste exercício, sendo sujeito responsável aquele que - numa definição de Carmén Tomáz-Valiente Lanuza - pode fixar-se valores e metas, identificar as distintas alternativas de ação, compreender a informação relevante proporcionada pelos demais e pelo contexto e ser capaz de eleger entre as distintas alternativas a maneira que mais se adequar a tais pessoais valores e metas.[6]

Destarte, infere-se do princípio em cotejo que o sujeito responsável – é deste que se está a tratar – tem direito de conduzir sua vida em direção a atingir fins próprios e, assim, realizar-se. Decorre, pois, deste vetor normativo um direito fundamental: a autodeterminação, no esteio do entendimento de Ingo Wolfgang Sarlet[7]:

Verifica-se que o elemento nuclear da noção de dignidade parece continuar sendo reconduzido – e a doutrina majoritária conforta esta conclusão – primordialmente à matriz kantiana, centrando-se, portanto, na autonomia e no direito de autodeterminação da pessoa (de cada pessoa).

O princípio do respeito à pessoa é óbice a uma tentativa de impor standards, projetos objetivos que podem espelhar a concepção de uma maioria, não tendo em conta a individualidade de cada ser.

Constitui-se, neste contexto, imperativo negativo categórico à atuação estatal de, por meios coercitivos, submeter a pessoa a perspectivas coletivistas (mas não a dela), perfeccionistas ou moralistas. O Estado não pode, pois, perseguir, restringindo a liberdade individual, fins desta natureza (moralistas, perfeccionistas[8]).

Há de se ressaltar especialmente a realidade normativo - penal. Por um lado, um Código Penal de 1940, com influência de um totalitarismo, com inclinação antidemocrática e profundamente paternalista-coletivista. Por outro, uma Constituição Federal, alicerçada no respeito à pessoa, que se erige como uma reação ao período totalitário precedente (Ditadura Militar). Do princípio da dignidade da pessoa humana, centro do sistema constitucional, pode-se extrair um seu viés positivo – o direito fundamental à autodeterminação – e um viés negativo (direito de ninguém sofrer torturas e de poder rechaçar condições desumanas).

É neste conflituoso cenário que se faz imperiosa uma interpretação do Código Penal vigente em conformidade com a Constituição, não olvidando que a história constitucionalista recente deita raízes em fatos que repercutiram globalmente, permitindo traçar um paralelo entre os sistemas espanhol e alemão e haurir na doutrina estrangeira ensinamentos compatíveis com o ordenamento nacional.

A constitucionalização do direito à vida e da dignidade da pessoa humana como princípio conformador da ordem jurídica e do Estado fazem necessário, para compreender-se o conteúdo e os limites da tutela jurídica daquele bem, proceder-se uma interpretação consentânea com a coexistência de direitos de igual relevância e com a concepção neopersonalista do sistema normativo. Já não cabe, como outrora, concebê-lo (direito à vida) como realidade normativa isolada, simplesmente prevalente sobre os demais; há de ter-se em consideração que “a dignidade da pessoa se configura como princípio dinâmico que articula e sistematiza todos e cada um dos direitos fundamentais” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 166), sendo estes concretizações inexoravelmente informadas e dotadas de sentido pelo sobredito vetor fundamental[9].

Consagrou-se na doutrina pátria o entendimento de ser indisponível o direito à vida, merecedor que seria de tutela absoluta, inclusive contra a vontade do titular, alicerçado ora em uma óptica teológica, ora em uma óptica utilitarista das relações indivíduo-Estado ou indivíduo-sociedade. Nega-se qualquer validade jurídica ao consentimento direcionado a terceiro, seja para este causar-lhe (ao titular) a morte, seja para impor-lhe a abstenção de evitar a superveniência deste resultado.

Neste diapasão, já asseverou Nelson Hungria[10]que “tutelando esses bens físicos (vida e integridade corporal) do indivíduo, a lei penal está servindo ao próprio interesse do Estado”, sendo, pois, bens “inalienáveis, indisponíveis, irrenunciáveis por parte do indivíduo,” donde o suicídio não seria, no dizer de Frederico Marques (1999, p. 85), “ato lícito e secundum ius”, para concluir-se, com arrimo em João Mestieri[11] (apud 1999 CARVALHO, 2001), ser “irrelevante o consentimento da vítima no homicídio; o bem jurídico não é disponível, o seu titular é sujeito do direito à vida e do direito de viver, mas não do direito sobre a vida[12].”

A dignidade da pessoa humana, içada ao nível de princípio fundamental da República, faz desvelar a instrumentalidade estatal visando à satisfação dos objetivos que lhe (ao Estado) são constitucionalmente outorgados, em última análise, em prol do Homem, sendo este fim em si mesmo, razão porque “a pessoa humana não pode ser ultrapassada pelo Estado em favor de nenhum interesse coletivo” (CARVALHO, 2001, p. 113). A realidade constitucional vigente obsta uma concepção utilitarista-coletivista de sujeição do indivíduo, que conduziria à despersonalização deste bem “altamente pessoal[13]” e à afirmação de um dever de viver.

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1.2 Da (In)Disponibilidade da Vida: Paternalismo Estatal e Perspectiva Constitucional:

A concepção de indisponibilidade da vida funda-se em perspectivas paternalistas do Estado projetadas sobre o cidadão, ora exaltando que este é mero depositário de um dom divino[14], ora firmando o homem como instrumento à satisfação de interesses coletivos, conforme magistério de Tomás-Valiente Lanuza (1999, p. 1):

As razões a que dita indisponibilidade podem obedecer não são, sem embargo, uniformes para todo tempo e lugar; pois, há de ter-se em conta que, à medida que o Direito penal se perfilha – através da Constituição – como a mais clara tradução normativa do tipo de Estado que se promulga e dos princípios básicos sobre os quais se assenta, disposições penais de igual ou similar conteúdo podem obedecer a concepções muito diferentes do poder público e da relação entre este e o indivíduo.

Elucidando a autora que:

em um modelo confessional de Estado, como o existente em Espanha antes da promulgação da Constituição de 1978, as normas relativas à indisponibilidade da vida poderiam ser consideradas um reflexo do dogma cristão que faz dela um dom divino por inteiro subtraído ao poder de decisão do homem; de igual modo, em regimes também totalitários mas não confessionais, esta classe de preceitos poderiam ser interpretados como expressão de uma desmedida submissão do cidadão ao Estado, que chega até o extremo de desvestir a vida do súdito de seu caráter de bem exclusivamente individual e atribuir-lhe uma pertinência social ou coletiva.

Perspectivas de um paternalismo forte (utilitarista-coletivista) que, reduzindo o indivíduo a um meio para consecução de interesses de dada comunidade, por um lado, firmam defesa intransigente da vida sem observância à sua personalidade. Por outro, historicamente, alicerçaram a eliminação de seres humanos etiquetados de “desprovidos de valor vital[15]” em face de contingências políticas e econômico-sociais, haja vista que, em um sistema totalitarista, é o Estado um fim em si, tendo interesse na vida dos súditos apenas como “fonte de prestações positivas para a comunidade ou como o pressuposto mesmo de sua subsistência” (LANUZA, 1999, p. 13).

Se a razão da tutela conferida a bens altamente pessoais era servir a interesses coletivos, personificados no Estado, para cumprir “uma função social[16]” (NELSON HUNGRIA, 1979 apud BITENCOURT, 2001, p. 115), contrariu sensu, quando determinados grupos humanos não puderam desempenhar sua função em prol da comunidade, sendo, pois, uma carga social, foram, sob império do regime nazista, consideradas vidas desprovidas de valor vital. A proteção à vida não dizia com a pessoa; esta era mero instrumento de realização de fins externos; o valor vital residia em sua utilidade para a comunidade; era-lhe extrínseco.

Expressões daquele paternalismo não se coadunam com a Carta Magna, contrastantes com a dignidade humana, seja porque a (a pessoa) concebem como instrumento à consecução de fins que lhe são alheios (reificação), seja restringindo-lhe arbitrariamente a autodeterminação, supondo-se que “o cidadão desconhece seus próprios interesses e que a sociedade e o Estado sabem melhor o que é bom para ele.[17]” “Estamos deveras longe daquele entendimento de que o indivíduo, sendo um ‘bem’ do Estado, deveria ter sua vida salva e sua saúde tratada mesmo que contra sua vontade.[18]

É sabido que a norma fundamental preceitua a inviolabilidade do direito à vida (C.F. art. 5o caput), consubstanciado, com arrimo em Carlos Maria Romeo Casabona (apud CARVALHO, 2001, p. 119), na “exigibilidade do cumprimento dos deveres que do mesmo derivam para os demais: o de respeito por parte do Estado e dos particulares e o de proteção pelo primeiro; vale dizer, comporta uma referência aos terceiros sobre os quais esse direito – e os conseqüentes deveres - se projeta”. A proscrição da norma tem caráter relacional, destina-se a terceiros (Estado e particulares), não ao próprio titular do bem. A função, pois, é de garantia ante hetero-lesões. Tão-somente. O que não significa instituir-lhe um dever de viver, sendo imperioso notar que dispor do direito à vida (da exigibilidade perante outros) não se confunde com a disposição da vida mesma. Afirma-se, com Gonzáles Rus, “que a vida é um bem disponível, ainda que esta disponibilidade se encontre limitada drasticamente e quede ‘restringida a comportamentos do próprio titular sobre si mesmo, mas que não poderia autorizar lesões procedentes de terceiros[19][20]” (apud RIVACOBA, 2001, p. 46).

Pressupondo-se ser a conduta humana essencialmente liberdade, ao perpassar (a conduta) um contínuo de licitudes, só excepcionalmente, há de reputar-se ilícita (sob influxo do principio ontológico do direito, pelo qual “tudo que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido”). Salientando-se, sem embargo, constituir a intervenção penal a mais drástica incursão estatal sobre direitos fundamentais, tão-somente se legitima uma restrição quando, se e à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos fundamentais perante relevantes condutas lesivas alheias (princípio da transcendência), eis que as condutas circunscritas à própria esfera de direitos remanescem no âmbito da liberdade, do autogoverno pessoal. Já em 1859, John Stuart Mill[21] enunciava o princípio básico a ensejar legitimamente a limitação da liberdade individual (harm to others principle):

Este princípio consiste em afirmar que o único fim por que é justificável à humanidade, individual ou coletivamente, se intrometer na liberdade de ação de qualquer de seus membros é a própria proteção. Que a única finalidade pela qual o poder pode, com pleno direito, ser exercido sobre um membro de uma comunidade civilizada contra sua vontade é evitar que prejudique aos demais. Seu próprio bem, físico ou moral, não é justificação suficiente. Ninguém pode ser obrigado justificadamente a realizar o não realizar determinados atos porque isto é melhor para ele, porque o faria feliz, porque, na opinião dos demais, fazê-lo seria mais acertado e mais justo.

Concluindo Stuart Mill (2000, p. 116) que “a única parte da conduta de cada um pela qual se é responsável ante a sociedade é a que se refere aos demais. Na parte que concerne meramente a ele, sua independência é, de direito, absoluta. Sobre si mesmo, sobre seu corpo e espírito, o indivíduo é soberano[22].”

A norma constitucional implícita da transcendência, em observância à autodeterminação ínsita ao viés positivo da dignidade humana, obsta categoricamente a incriminação por parte do legislador ordinário de condutas não-lesivas a terceiros. Vislumbram-se, destarte, duas razões concernentes à atipicidade penal de condutas auto-referentes, expendidas no magistério de Paulo de Souza Queiroz[23], quais sejam: por política criminal, revela-se absolutamente inútil a cominação de penas, como meio de prevenção, com fito de demover os que danosamente disponham de interesse próprio. Por seu turno, a razão jurídica consiste em que, in verbis:

a toda pessoa civilmente capaz assiste, ao menos do ponto de vista do direito penal, a faculdade de dispor, por ato próprio, de sua vida, de seu corpo, de sua saúde e de seus bens, como melhor lhe aprouver. Como dizem, Morris e Hawkins, pelo menos para a lei criminal, todo homem tem o direito inalienável de ir para o inferno como quiser, desde que, no caminho, não prejudique as pessoas ou a propriedade alheia[24].

A atipicidade de condutas autolesivas não obedece somente a considerações político-criminais, pois denotam a livre condução da própria vida, saúde e bens em conformidade com os fins por si almejados, desde que observados os direitos alheios; idéia sintetizada por Carbonell Mateu (apud NUÑEZ PAZ, p. 278): “tudo o que não está expressamente proibido está permitido e se tem direito a fazê-lo, tão somente podendo proibir-se aquilo que resulte transcendente para as liberdades alheias”.

Como restou consignado, a regra de inviolabilidade (função garantista) do direito à vida, por ser oponível perante terceiros, não fundamenta nem se confunde com a indisponibilidade deste bem por seu titular[25]. Não se dessume daquele (direito à vida) um dever de viver, razão porque autodeterminação pessoal faz depreender da Lex Suprema um direito constitucional de dispor manu propria da vida. No exercício deste, pode-se tentar cometer diretamente o assassínio de si mesmo (sui et caedere) ou é possível, encontrando-se em situação de perigo iminente de morte, o rechaço de intervenção alheia destinada à própria salvação; conduzindo-se à morte, exercendo, pois, o direito de deixar-se morrer.

Dispor seriamente da vida é, pois, emanação da liberdade geral, mediante a qual se orienta o próprio destino vital em consonância com os objetivos para si traçados; é expressão de individualidade, de uma relação peculiar de si para com o mundo, a ressaltar as concepções pessoais que permeiam cada ser humano. Conquanto se representasse a possibilidade ou probabilidade do término de sua existência biológica, o suicida (mediante manifestação livre, informada, séria, emanada de sujeito capaz) assume-lhe o risco, antepondo aos demais (sociedade e Estado) liberdades específicas, seja a religiosa, seja a ideológica, seja ainda à incolumidade física, concretizando-se – no dizer de Romeo Casabona - no direito à “não intromissão sobre a decisão de dispor sobre a própria vida” (apud NUÑEZ PAZ, 1999, p. 287).

Ao afirmar Zulgadía Espinar (apud VALLE MUÑIZ, 1989, p. 156) que “os limites do dever de tratamento médico não podem estar determinados unicamente pelas possibilidades técnicas de manutenção da vida,” permite-se a inferência de que, apesar de haver possibilidade técnico-médica ou fática de um interceder salvador, a oposição faz erigir um óbice jurídico, a saber: o dever de abstenção, o qual tem o condão de elidir o dever de atuar alheio, inclusive a posição de garante. A omissão afigura-se como involuntária, é cumprir uma obrigação emanada do exercício de autonomia (constitucionalmente assegurada) do suicida/enfermo, sendo, pois, penalmente irrelevante. A superveniência da morte é exclusivamente imputável àquele (suicida). Compartilha Hans Joachim Hirsch[26] desta compreensão:

Legalmente, deve ter-se em conta, em primeiro lugar, que o médico não está obrigado a atuar prolongando a vida contra a vontade do paciente expressada na situação concreta. Por causa da vontade contraposta, decai o dever de garante do médico e não há um imperativo de curar. A obrigação do médico ao tratamento não existe se o paciente o rechaça por livre decisão. Especialmente, no campo que aqui nos interessa - a prolongação por parte do médico – tal rechaço há de respeitá-lo como expressão da autodeterminação do paciente.

A intervenção que despreza a contrariedade de uma vontade válida reputa-se uma arbitrária restrição de direitos fundamentais, em que pese o esforço de um setor da doutrina nacional em argüir um estado de necessidade com efeitos de impedir a adequação típica de constrangimento ilegal, porquanto, entende-se, impelir-se-ia um mal menor (à liberdade) para elidir-se um maior (a superveniência da morte)[27].

Entretanto, o sistema constitucional erigido em 1988 - especialmente em os arts. 1º, III e 5º, III da C.F. – faz mais uma vez imprescindível uma interpretação conforme a constituição dos incisos I e II, § 3º do art. 146 do Código Penal, notadamente para excluir de sua égide a oposição emanada de sujeito competente. Assinala-se, com arrimo em Kaufmann, que “uma autorização legal para o tratamento coativo pelo médico” redundaria em uma ofensa à autonomia individual “e tal lesão do direito à autodeterminação é intolerável em uma sociedade liberal” (1987, p. 48).

O discurso que confere legitimação à imposição de tratamento vital contra vontade (séria, livre, consciente, expressa) manifestada por sujeito capaz – “o mal causado (violação da liberdade pessoal) é menor do que aquele que se pretende evitar (morte)” (PRADO, 2000, p. 272/3) – autorizaria, por aplicável o mesmo raciocínio[28], outras tantas situações absurdas, como adverte Miguel Bajo Fernández[29]:

La tesis de que tanto el juez que autoriza como el médico que ejecuta, actúan amparados por el estado de necesidad porque el mal causado es menos que el evitado, es una simplificación denunciada por la doctrina. Según este critério llegaríamos a la absurda situación de justificar comportamientos como los siguientes: un particular (o un médico, o un juez com ayuda de la fuerza pública, que para el caso es lo mismo), someten a una mujer contra su voluntad a un aborto para salvar su vida; o con el mismo fin y sin consentimiento amputan el miembro canceroso de un paciente o le abren el pecho para instalarle una vávula en el corazón o le instilan en los ojos el colírio que evitará su ceguera o, por poner ejemplos en que el necesitado y quien sufre el mal son personas distintas, para salvar la vida de un accidentado que ingresa en el servicio de urgencias se extrae un riñon sano a quien, en el quirófano de al lado, está sometido a una operación de apendicitis, o un trozo de piel o de hueso para hacer un injerto; o se extrae sangre de un tipo muy especial a quien se niega a ello para una urgente transfusión. En todos estos casos, el mal causado es menos que el evitado. (grifos no original)

Data maxima venia, então, firma-se que da tutela jurídica ao bem em comento “não se deriva em nenhum caso o direito à intervenção contra a vontade de seu titular” (NUÑEZ PAZ, 1999, p. 22) e, ressaltando-se “que o texto constitucional não permitiria uma interpretação do direito à vida incompatível com a dignidade humana, supondo esta um rechaço a qualquer intento de instrumentalização em aras a salvaguardar o livre desenvolvimento da personalidade” (VALLE MUÑIZ, 1989, p. 167), limitar-se a liberdade in casu equivaleria a impor o prosseguimento de um mero processo biológico dissociado das razões pessoais de ser; em última instância, é submeter-lhe a tratamento degradante, reificando a pessoa humana com vistas a fins que espelham uma concepção dominante (mas não a dela), que lhes são alheios, portanto; é violar-lhe, enfim, a individualidade e dignidade.

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Sobre o autor
Carlos Otávio Reis de Sousa

Bacharel em Direito pela Universidade Salvador – UNIFACS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SOUSA, Carlos Otávio Reis. Por uma reflexão constitucional-penal da disponibilidade da própria vida em um contexto eutanásico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 4157, 18 nov. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34068. Acesso em: 28 mar. 2024.

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