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Cautelares satisfativas?

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01/11/2002 às 00:00
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10- Fungibilidade?

Uma vez que se ingresse em juízo com pedido cautelar pleiteando resultado que equivale ao pedido de processo de conhecimento, correspondendo a pedido cautelar satisfativo, portanto vedado, já que o pedido deverá ser veiculado processo de conhecimento com pedido de antecipação de tutela, quid iuris? A respeitável opinião de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira [39] pugna pela aplicação da fungibilidade. Data vênia, não cremos que seja caso de aplicar-se fungibilidade.

A fungibilidade é a possibilidade de conhecer de um instrumento erroneamente utilizado como se fora o correto. Não há nem nunca houve, ao menos não no direito codificado nacional, expressa previsão de fungibilidade genérica entre ações, mas específica sim, como é o caso das possessórias. Houve, no entanto, previsão de fungibilidade nos recursos quando disciplinados no antigo CPC de 1939. O artigo 810 daquele diploma previa a possibilidade de aplicação da fungibilidade recursal quando interposto erroneamente desde que ausente erro grosseiro ou má fé do recorrente. Dispositivo de igual teor não se encontra no atual CPC. Inobstante, a doutrina reconhece, seguida pela jurisprudência, a aplicação do princípio da fungibilidade recursal. Se nos parece que, dada a semelhança das situações, são plenamente cabíveis e invocáveis os princípios construídos à luz de uma fungibilidade recursal no caso de apreciação de fungibilidade entre ações.

Deste modo temos que os indagar se há erro grosseiro ou má fé. Mas que se há de entender por erro grosseiro? A doutrina erigida sob a vigência do antigo CPC reconhecia o erro grosseiro naqueles caos em que não houvesse uma dúvida objetiva, ou a contrario sensu naqueles casos em que a dúvida fosse subjetiva, ou seja devida a má interpretação ou aplicação do direito á espécie levada a termo pela parte ao apreciar a situação. Isto ocorreria notadamente naqueles casos em que nos defrontássemos com situações em que já houvesse jurisprudência consolidada acerca da matéria ou a comunis opinium doctorum já houvesse se manifestado por uma orientação. Nestes casos, sustentando a parte uma posição absolutamente descabida e discrepante haver-se-ia por configurado o erro grosseiro. Nos caos de má fé, a parte conhecendo a diversa interpretação doutrinária e jurisprudencial fazia uso do recurso errado com fim procastinatório ou objetivando produzir tumulto processual. Aplicados estes princípios, mutatis mutandis, às ações, veremos que no caso específico das tutelas cautelares satisfativas e antecipações de tutela não pode haver fungibilidade.

Esta negativa se torna clara na medida em que o dispositivo do artigo 273 do CPC não deixa margem à dúvidas acerca do descabimento das cautelas satisfativas. Todos os casos em que se pretenda a antecipação de efeitos da própria tutela a ser buscada em processo de conhecimento enquadram-se hoje na antecipação do artigo 273. Qualquer interpretação contrária, sustentando a manutenção das cautelas satisfativas não encontra respaldo lógico ou jurídico de nenhuma espécie e neste caso sustentar-se contra expressa, clara e incontroversa disposição legal é sem dúvida erro grosseiro. Logo estaria afastada a possibilidade de fungibilidade na medida em que se utilizar de pedido cautelar em lugar de antecipação dos efeitos da tutela constituiria insofismável erro grosseiro.

Mas não é somente este obstáculo que se levanta contra a fungibilidade. A possibilidade de obtenção de liminar cautelar inaudita altera parte por via cautelar, possibilitaria uma obtenção de antecipação dos efeitos da tutela liminarmente com os pressupostos da cautela até que eventualmente, dando pelo erro aplica-se o magistrado a fungibilidade para converter cautelar satisfativa em antecipação. Por fim, um último óbice se levanta na aplicação da fungibilidade e este é de fato intransponível. Materializa-se na impossibilidade de conversão de diferentes tutelas entre si. Não se pode pretender a conversão de execução em cautela ou conhecimento; de cautela em conhecimento ou execução e vice versa. Mas então qual é o destino do processo que ingressou indevidamente em juízo. Responderemos no próximo tópico. Porem podemos adiantar que somente uma nova relação processual poderá corrigir a cinca [40].


11- Cautelar Satisfativa e Impossibilidade Jurídica do Pedido

Três espécies de questões enfrenta o magistrado no caminho da prestação jurisdicional de mérito, que é o escopo último do processo: pressupostos processuais, condições da ação e mérito. Os pressupostos processuais dizem respeito à relação jurídica processual que é autônoma e distinta daquela que é objeto do processo. Os pressupostos processuais podem ser objetivos ou subjetivos. Os subjetivos referem-se ás partes e ao juiz. Quanto ás partes são eles a capacidade para ser parte, a capacidade para estar em juízo e a capacidade postulatória. Quanto ao juiz temos a competência e a ausência de suspeição ou impedimentos. Os pressupostos objetivos são intrínsecos e extrínsecos. Os intrínsecos dizem com as nulidades processuais. Os extrínsecos cm fatos que podem impedir a normal fluência da relação processual como é o caso da litispendência, ou da coisa julgada.

O mérito é a res in judcio deducta, o "streitgegentand" da doutrina alemã. Corresponde em nossa sistemática à lide e todo o conjunto de questões ( pontos controvertidos de fato e de direito que a compõe). Mas são as condições da ação que nos interessam mais imediatamente.

O nosso processo sofre grande influência da doutrina de Enrico Tullio Liebman, processualista italiano que esteve radicado no Brasil na década de quarenta onde solidificou sua doutrina. A doutrina de Liebman condiciona a ação às condições da ação. Se os pressupostos processuais diziam com a relação processual e o mérito com a relação objeto do processo, as condições da ação dizem respeito ao exercício do direito de ação. As teoria acerca da ação variam do abstrativismo ao concretismo, tendo como meio termo a Teoria Eclética da Ação. A independência do direito de ação do direito material ganhou corpo na célebre polêmica entre Ernest Windescheid e Theodor Muther [41]. Dagencolb e Plóz desenvolveram a Teoria Abstrata da Ação [42], desvinculando-a completamente do direito material. Existisse este último ou não, ainda assim haveria ação. Adolph Wach [43] desenvolveu a Teoria Concreta da Ação, segundo a qual somente quando fosse reconhecido o direito material haveria ação. Chiovenda a tinha como direito potestativo. Todas estas teorizações surgiram a partir do terceiro quartel do século XIX.

A Teoria Eclética da Ação [44], nomeclatura que se deve a Galeno Lacerda, procura ser o tertium geus entre o abstrativismo e o concretismo, através da introdução das condições da ação cuja presença é determinante para a verificação da existência ou não do direito do exercício da ação. Em nossa sistemática, as condições da ação são três. Na doutrina italiana, berço da teoria, uma das condições, a possibilidade jurídica do pedido é tratada como mérito [45].

As condições da ação servem de ponte entre a abstração completa e o julgamento do mérito [47]. São representadas pela possibilidade jurídica do pedido, pela legitimidade ad causam e pelo interesse. A legitimidade é comumente dita pertinência subjetiva posto que envolve considerações referentes às partes. Baseado que está nosso sistema processual sobre a noção de lide carnelutiana, a legitimação está relacionada diretamente com o direito(processual ou material) que constitui o que a doutrina alemã denomina "streitgegenstand", ou seja o objeto litigiosos do processo, que nada mais é do que a res in juditio deducta [48].

A conseqüência direta desta noção reside em que tem legitimidade em princípio quem é o titular do direito objeto da lide. Devido a esta situação temos partes sob o ponto de vista processual e partes sob o ponto de vista material. Dentre os primeiros encontram-se os terceiros interessados, os intervenientes, que embora não figurem como titulares do direito material discutido, têm, no entanto, interesse jurídico no processo. Em nosso código, baseado nas idéias de Carnelutti, estes terceiros não são partes [49]. Mas para a doutrina mais avançada, que não vê a processualístca centrada sobre a ação, mas sim na jurisdição, a noção de lide perde força, e parte é quem intervêm no processo e sofre as conseqüências diretas da prestação jurisdicional. O fato é que como diz Moniz de Aragão o conceito de parte é um dos mais atribulados do direito moderno. Ressalvam-se os casos de substituição processual, em que dado a alguém litigar em nome próprio o direito de outrem [50]

A possibilidade jurídica reside na existência, no plano abstrato, da possibilidade de pleitear-se frente ao ordenamento jurídico determinada tutela [51]. Na concepção do sincretismo imanentista, ou seja, na teoria civilista, uma vez que a cada direito corresponde uma ação ( Código Civil, art. 75), a possibilidade jurídica reside na previsão do ordenamento jurídico do direito e da possibilidade de perseguí-lo in juditio. Na concepção moderna do direito de ação a plena possibilidade de ação é a regra e portanto a possibilidade jurídica está mais relacionada à escolha da espécie de processo (Conhecimento, execução e cautelar) ou do rito (No direito civil existem mais de setenta). Significa dizer que hodiernamente, a falta de expressa previsão legal não inibe o direito de ação [52]. Mas uma vez que se vem a juízo demandar, transmutando a porção de conflito social em lide pela sua inserção no processo (rectius: na demanda), deve-se escolher o instrumento certo sob pena de carência por impossibilidade jurídica do pedido [53].

Por fim, temos o interesse processual,. Segundo o artigo 3º do CPC, "para propor ou contestar ação é necessário ter interesse e legitimidade". A doutrina moderna localiza no interesse processual um binômio formado pela necessidade e pela utilidade da prestação jurisdicional pleiteada [54]. A utilidade reside na obtenção de uma situação material ou processual (Interesse recursal) melhor do que a que se tem. A prestação jurisdicional deve ser capaz de, objetivamente considerada, trazer uma vantagem concreta, palpável, discernível. Se visa apenas emulação é óbvio que uma postulação judicial não pode ser aceita pois o processo e a função jurisdicional não podem ter seu prestígio e seriedade postos em cheque por mesquinharias ou por meras questões acadêmicas.

O exercício da função jurisdicional demanda uma quantia enorme de recurso e de tempo. Admitidas que fossem demandas com fim mais consultivo do que prático estaríamos jogando fora dinheiro público e precioso tempo que melhor seria destinada à tratativa de questões reais, verdadeiramente importantes. Por outro lado não podemos nos esquecer de que a avaliação da utilidade é, como dissemos objetiva. Embora não possamos perder de vista o caso concreto, não menos certo é que não podemos nos lançar em tentativa de adentrar na psiqué do demandante (Autor ou réu) para aferirmos se há interesse ou não. Podem surgir hipóteses em que embora haja interesse na visão do demandante, estejamos frente a um caso absolutamente claro de falta objetiva de utilidade. É a utilidade objetiva que interessa, considerada frente ao caso concreto. Não a utilidade subjetiva, ou melhor dizendo, aquela que reputa existir o demandante. [55]

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Completando o binômio, temos a necessidade [56]. Já se disse com muito acerto que o processo é em si um mal. Com efeito, o só fato da litispendência, da incerteza, que gera o processo é sem dúvida prejudicial não só à parte mas também para a sociedade, que tem interesse em uma prestação célere e na pacificação social imediata. Por outro lado, cada demanda que vem aos pretórios representa um aumento na carga de trabalho de m sistema que está as vascas do esgotamento. Por isso, o processo judicial é, ou deve ser, a "última ratio". Implica dizer que a sua utilização só se torna legitima quando não haja outra via, igualmente idônea, menos onerosa e mais célere, de que se pode valer o jurisdicionado antes do seu direito de ação. Não se trata de limitar pura simplesmente o direito de ação, reconhecido como direito constitucional e cláusula pétrea da Constituição (Art. 5º, inc. XXXV, e 60, § 4º), não havendo ai nenhum vestígio de inconstitucionalidade.

Trata-se sim de condicionar o acesso ao judiciário para aqueles que realmente dele precisam. A atividade jurisdicional, repise-se, é por demais dispendiosa em todos os sentidos, não só para as partes como para a sociedade, que arca com este ônus. Logo, para justificar a movimentação da máquina judiciária é preciso uma razão, um motivo plausível [57]. Não se pode exigir, por certo, que se valia o jurisdicionado de meios mais onerosos e demorados, esgotando-os par só então vir a juízo. Isto sim significaria denegação de justiça e violação do sobredito dispositivo constitucional. Mas havendo outra via, mais rápida e menos onerosa, é perfeitamente lícito frente à constituição e aos princípios de justiça, requerer-se esgote-os antes o prejudicado para só então, não logrando êxito, valer-se, com toda a razão e legitimidade, da jurisdição

Dentre estes elementos, verifica-se que o que mais de perto nos diz é a possibilidade jurídica do pedido. Com efeito, como visto, hoje a possibilidade jurídica do pedido está relacionada ao uso do instrumento correto, ou seja, com o manejo da tutela correta e do rito correto. Obviamente que a utilização de uma tutela inadequada ante a existência de outra específica e excludente configura caso de impossibilidade jurídica do pedido. As condições da ação são verificadas in status assertionis, ou seja, na conformação da narrativa da inicial, sem prejuízo de ulterior apreciação. Consequentemente, as condições da ação devem estar presentes na hipótese concreta que é trazida a apreciação judicial, mas o juízo que se faz ecerca do caso nesta fase leva em conta a conformação fática ainda como uma hipótese e não como uma realidade. Realidade só haverá após a realização da instrução probatória, se for o caso, ou da aplicação de uma cognição exauriente. O juízo que se faz na verificação das condições da ação e no mérito é idêntico abarcando os mesmo três elementos. Mas no julgamento de mérito os fatos do caso sub examine são havidos como existente ou não existentes, ao passo que no juízo acercadas condições da ação a pergunta é se o autor realmente provar estes fatos teria interesse, seria parte legítima, o pedido seria possível?

Pergunta-se: qual a conseqüência de uma das condições da ação da ação? Primeiramente é preciso que se diga que a existência das condições da ação não interferem no resultado do julgamento de mérito. A existência ou não das condições da ação tem influência indireta sobre o mérito inviabiliza um juízo acerca do mérito, mas uma vez presentes e viabilizado o julgamento de mérito, não é o fato de se ter concluído que naquele caso o autor poderia ter o direito que pleiteia, conclusão a que se chegou quando da verificação das condições da ação, que vai implicar um julgamento de procedência ipso facto. Assim podemos dizer que condições da ação e mérito estão em uma relação de conteúdo e continente no que diz respeito à matéria que apreciam, sendo o julgamento de mérito mais amplo, mas a forma com que os elementos são visto s em um e outro caso são diferentes. A ausência das condições da ação não dizem respeito, portanto ao mérito [58].

A conseqüência, respondendo à pergunta anterior, é um julgamento de carência de ação, que se enquadra entre as espécies de extinção do processo sem julgamento do mérito a teor do artigo 267, inc VI, do CPC [59]. Como não foi julgado o mérito, não se impede a propositura da demanda agora pela via correta, in casu a ação de conhecimento com antecipação de tutela, que assim como a cautelar pode ser pedida até mesmo em segundo grau [60]. Vale lembrar que as condições da ação constituem matéria imprecluível [61]. Assim sendo, ao verificar o magistrado que se trata de caso de processo de conhecimento com pedido de antecipação de tutela e que está sendo veiculado por meio de cautela, deve extinguir o feito sem julgamento de mérito, imputando os consectários legais ao autor, sem possibilidade de emenda da inicial haja vista a impossibilidade de fungibilidade entre tutelas. Ressalva-se intangível o direito do autor que poderá ingressar com o processo de conhecimento pertinente.

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Sobre o autor
Marcelo Colombelli Mezzomo

Ex-Juiz de Direito no Rio Grande do Sul. Professor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MEZZOMO, Marcelo Colombelli. Cautelares satisfativas?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 7, n. 60, 1 nov. 2002. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3412. Acesso em: 28 mar. 2024.

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