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Coisa julgada nos juizados previdenciários. Ação rescisória: cabimento ou desnecessidade?

27/12/2015 às 14:59
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As peculiaridades dos JEFs previdenciários e os alicerces constitucionais da ação rescisória tornam incabível a eternização de suas decisões quando viciadas. A intangibilidade da coisa julgada é garantia do cidadão perante o Estado, e não vice-versa.

RESUMO: As peculiaridades do subsistema processual dos juizados especiais federais previdenciários, conjugadas com os alicerces constitucionais das hipóteses de cabimento da ação rescisória estipuladas no art. 485 do CPC, tornam incabível a eternização de suas decisões, quando viciadas. Contudo, antes mesmo de perquirir pelo cabimento da ação rescisória em seu âmbito, é de se indagar por sua necessidade. Isto porque, sendo garantia do cidadão perante o Estado, e não vice-versa, a incolumidade atribuída pelo art. 5º, XXXVI da Constituição à coisa julgada não opera em favor do ente estatal nas demandas previdenciárias e faz possível – sobretudo à vista dos princípios informadores do processo perante os juizados – o exercício do direito de ação ainda que o tema já tenha sido objeto de decisão anterior transitada em julgado.

PALAVRAS-CHAVE: Coisa julgada, direitos fundamentais, ação rescisória, juizados previdenciários.


Introdução

A impossibilidade fática de reversão de decisões transitadas em julgado nos juizados especiais federais previdenciários tem acarretado vultosos problemas a não poucos cidadãos cujos pleitos, por não terem expressão econômica superior a sessenta salários mínimos, são submetidos a esse subsistema processual. Atribuo a essa interdição caráter puramente fático porque, não obstante a prevalência, até aqui absoluta, dessa visão nos respectivos órgãos recursais, sustento – e o presente artigo destina-se à demonstração de tal tese – que tal reversão é, sim, possível, ainda que se possa e deva discutir qual o instrumento processual adequado para efetuá-la.

O tema, como se sabe, é candente. Por maior que seja a lacuna resultante da falta de pesquisas qualitativas e quantitativas capazes de atestá-lo com foros de cientificidade, é da vivência empírica de quem atua perante o subsistema dos juizados previdenciários – e essa vivência, afinal, há de ser levada em conta na falta de tais dados – que seus órgãos judicantes os (fica a cargo de quem atua nos cíveis e criminais avaliar se também os deles) erram, e muito. Ao invés de ensejar maior zelo e/ou prudência na análise dos casos – uma vez que as consequências de uma decisão viciada ou equivocada se tornam mais graves quanto mais difícil sua reversão – , a autoconferida irreversibilidade ora em tela parece ter surtido o efeito oposto. Provas desconsideradas, sentenças confirmadas pelos próprios fundamentos mesmo quanto estes não chegam a dar conta da controvérsia, teses recursais ignoradas, laudos periciais falhos aceitos como expressão absoluta da verdade, produção em série de acórdãos com texto idêntico, são alguns dos problemas com os quais quem atua perante esses órgãos depara-se no dia-a-dia. Tudo isso faz com que o tema deste artigo deixe de ser um problema meramente intelectivo para tornar-se uma questão da qual depende a sobrevivência física de não poucos cidadãos.

Os argumentos adiante expostos podem ser classificados em três categorias: i) internos à lógica de funcionamento do subsistema processual dos JEFs (tópicos 1 e subitens); ii) decorrentes das hipóteses de admissibilidade da ação rescisória e de seus alicerces constitucionais (tópico 2); iii) relativo ao escopo da garantia constitucional da intangibilidade da coisa julgada e a seus destinatários (tópico 3). Qualquer deles seria, por si, suficiente para invalidar a leitura que se vem dando ao art. 59 da Lei 9.099 no sentido de aplicá-lo ao subsistema federal de juizados, especialmente quando de matéria previdenciária se trate.

1. Das razões internas ao subsistema processual dos JEFs

1.1. Da desproporção entre os poderes de turmas e de tribunais

A primeira perplexidade decorrente da petrificação da coisa julgada dos JEFs e primeiro fundamento da tese de que sua reversão é cabível radica no próprio subsistema em questão. Seus órgãos recursais (turmas recursais e turmas de uniformização) apresentam, comparativamente aos tribunais stricto sensu (ordinários ou superiores), duas diferenças relevantes que, incidindo sobre sua composição, desdobram-se, também, sobre a construção de suas decisões.

A primeira diz respeito aos magistrados de carreira que os conformam. Por força dos arts. 41 prg. 1º da Lei 9.099; 2º, 4º e 6º da Lei 12.665, as turmas recursais e de uniformização compõem-se de juízes de 1º grau. É fato que a última dessas normas veio a denominá-los “Juízes Federais de Turmas Recursais”, assim com maiúsculas. Contudo, a mesma lei prevê que um juiz no primeiro estágio da carreira (substituto) pode ser promovido para turma recursal. Os integrantes das turmas recursais e de uniformização são, portanto, juízes iguais, em termos de posicionamento na carreira, àqueles cujas decisões lhes são submetidas em grau de recurso. E é da própria lógica da carreira que os que, por antiguidade ou mérito, estejam próximos da promoção à 2ª instância não se interessem, em regra, por integrar os órgãos recursais dos juizados.

O segundo refere-se aos magistrados que não são da carreira judicial. Nos tribunais, como se sabe, um quinto das vagas é destinado a advogados e membros do Ministério Público; a exceção é o STF, que, por seu viés eminentemente político, tem sua composição definida pelos poderes Executivo e Legislativo sem reserva prévia de vagas para carreira alguma e com histórica predominância da advocacia. O quinto constitucional é um instrumento destinado a prevenir o embotamento corporativo dos tribunais e arejar seus processos decisórios e decisões propriamente ditas. No subsistema dos juizados, nada disso existe: todos os juízes de turmas recursais e uniformizadoras são juízes em sentido estrito. Não há sequer juízes leigos atuando junto ao togado singular, como nos juizados especiais cíveis e da fazenda pública.

Sob o prisma da diversidade que deve pautar um colegiado, os órgãos recursais dos JEFs têm, comparativamente aos tribunais, o inconveniente de estarem integrados por uma só carreira. Vistos sob a ótica dessa carreira e de seus critérios de organização, trazem o problema de serem compostos tão só por juízes que se encontram em seu primeiro estágio. Quer se priorize, como elemento estruturante do sistema judicial, a pluralidade de vozes, origens e visões, por um lado; ou o percurso dentro da carreira judicial, por outro, o fato é que a composição desses órgãos revela-se - ao menos em regra, em média e/ou em tese – qualitativamente inferior à dos tribunais, o que os torna mais suscetíveis a errar.

Parece claro que atribuir a esses órgãos poderes mais amplos que os conferidos aos tribunais – pois é isto, afinal, o que ocorre quando suas decisões transitadas em julgado são declaradas irreversíveis – é de tal modo incoerente com a lógica estruturante do sistema judiciário que haver-se-ia de concluir, só por isso, pela inviabilidade da restrição em tela. Se até julgados do Supremo Tribunal Federal são passíveis de desconstituição, como admitir que os de um órgão composto por três juízes togados de 1º grau não o sejam?

1.2. O problema da compulsoriedade dos JEFs

A outra razão interna à estrutura judicial para o cabimento da desconstituição de julgados das turmas recursais e de uniformização radica no art. 3º prg. 3º da Lei 10.259, que dota os JEFs de competência absoluta (que vem sendo entendida como também exclusiva[1]) para o julgamento de causas de até 60 salários mínimos, com algumas poucas exceções que não vêm, aqui, ao caso.

A previsão de descabimento da ação rescisória consta do art. 59 da Lei 9.099, que rege os juizados especiais estaduais e tem aplicação supletiva aos federais, nos termos do art. 1º da Lei 10.259. Ocorre que, naquilo que poderia legitimar a irreversibilidade da coisa julgada em âmbito estadual, os dois sistemas (estadual e federal) de juizados são de tal modo distintos que não há como não considerar configurada a incompatibilidade de que fala o último dispositivo citado.

A primeira e fulcral diferença entre eles é que, à parte os processos criminais (que, aqui, não interessam), o acesso aos juizados estaduais é faculdade que a lei confere ao demandante, uma vez atendidos os requisitos nela estipulados. Certas ações podem ser propostas perante os juizados especiais cíveis, o que é igual a dizer que podem não sê-lo, cabendo ao autor da ação optar entre o rito daquela lei e o do CPC. Destarte, quem opta pelos juizados especiais cíveis no âmbito das justiças estaduais renuncia à possibilidade futura de uma ação rescisória podendo escolher não fazê-lo. Troca-se algo de segurança por um pouco mais de celeridade.

Veja-se que, ainda assim, a constitucionalidade dessa renúncia é mais que duvidosa, posto que ela versa sobre direito indisponível (o acesso à jurisdição) e a lei possibilita que o demandante a exerça sem estar sequer assistido por advogado (art. 9º da Lei 9.099) – além, é claro, do fato de tal opção ser exercida por apenas uma das partes, já que o réu não pode opor-se à opção do autor pelo juizado caso verificada qualquer das hipóteses autorizadoras do trâmite da ação perante este. No caso do subsistema federal, porém, não há dúvida cabível: eternizar uma decisão viciada apenas porque, quando da propositura da ação, a demanda não superava 60 salários mínimos, sem que fosse dado à parte sequer o direito de optar pelo rito processual do CPC em detrimento do da Lei 10.259, é uma afronta ao que estatuem os incisos XXXV e outros do art. 5º da Constituição, dos quais se fala no tópico seguinte.

Há uma segunda e capital diferença entre os dois subsistemas, referida, sobretudo, aos JEFs previdenciários. Os juizados cíveis estaduais julgam somente matéria civil e comercial, isto é, direitos patrimoniais disponíveis, e entre particulares capazes[2]. Mesmo algumas relações civis mais qualificadas, como as de família e sucessões, estão fora de seu raio de competência. Nos juizados previdenciários, ocorre o inverso: julgam, por definição, relações de direito social que envolvem direitos fundamentais, tendo, frequentemente, pessoas incapazes (por menoridade ou deficiência mental) como litigantes compulsórios e, no polo passivo, sempre um ente estatal (INSS). Se é possível, uma vez que se ignore a indisponibilidade do próprio direito à jurisdição, considerar que a natureza dos direitos postos sob apreciação dos JECs permite a renúncia à possibilidade de desconstituir coisa julgada sobre eles incidente, tal conclusão não se aplica aos juizados previdenciários, uma vez que a proteção previdenciária é direito fundamental (art. 6º), logo, indisponível[3]. O direito material que justifica a existência dos JEFs Previdenciários tem idêntico status constitucional ao da intangibilidade da coisa julgada. Mesmo nos juizados federais cíveis, aliás, a situação é um tanto distinta da existente nos estaduais, na medida em que os primeiros também julgam direitos fundamentais e indisponíveis, alguns dos quais relacionados à Seguridade Social (v.g., seguro-desemprego e FGTS) e, no polo passivo (nunca no ativo) da demanda, há, sempre, um ente estatal.

Esse último aspecto (legitimação das partes), sendo, em si, problemático, enseja, em conjugação com a já aludida exclusividade que se vem atribuindo à competência dos JEFs, problemas adicionais com relação ao objeto deste artigo.

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Tal legitimação consta do art. 6º da Lei 10.259, nestes termos:

Art. 6o Podem ser partes no Juizado Especial Federal Cível:

I – como autores, as pessoas físicas e as microempresas e empresas de pequeno porte, assim definidas na Lei no 9.317, de 5 de dezembro de 1996;

II – como rés, a União, autarquias, fundações e empresas públicas federais.

A União, suas autarquias, empresas, fundações e as empresas privadas de porte grande ou médio estão, portanto, não apenas desobrigadas como proibidas de se submeter ao rito da Lei 10.259, mesmo em demandas abaixo de 60 salários mínimos e ainda que de benefícios previdenciários se trate. Devem propor tais demandas, por expressa e insofismável imposição legal supra transcrita, perante varas federais em que os processos tramitam pelos ritos do CPC.

Isto significa que, uma vez verificadas as hipóteses ensejadoras da desconstituição da coisa julgada, terão direito a promovê-la – além da percepção de honorários advocatícios, possibilidade de recurso especial[4]e tudo o mais que quem fica sujeito ao rito dos JEFs não tem a seu alcance. Essas disparidades, ao mesmo tempo em que destituem de qualquer vestígio de legitimidade a atribuição de competência exclusiva aos juizados, ensejam também – enquanto não se declare sua inconstitucionalidade por afronta à isonomia – a necessidade de se corrigirem ou, na medida do possível, minorarem os desequilíbrios que delas decorrem.

Assim, e à parte os possíveis questionamentos à sua própria constitucionalidade, a exclusividade atribuída à competência dos JEFs determina, por si mesma, a possibilidade de desconstituição de suas decisões. Entendimento diverso, como o que vem predominando, implica afronta não só ao art. 5º, caput e XXXV da Constituição, como também, conforme cada caso, a outras garantias fundamentais que estão na raiz das hipóteses de desconstituição da coisa julgada inscritas no art. 485 do CPC.

1.3. As inovações da Lei 12.153 (Juizados Especiais da Fazenda Pública)

Caberia, ainda, mencionar um aspecto que, embora de menor importância face aos demais aqui analisados, reabre, mesmo nos restritos termos em que foi proposto na ocasião, o debate que, por meio do Enunciado 44 do Fórum Nacional dos Juizados Especiais Federais (Fonajef)[5], se pretendeu encerrar.

Em 2012, foi promulgada a lei em epígrafe, determinando aos estados que instituam juizados especiais dotados de competência absoluta para o julgamento de causas até 60 salários mínimos.

A lei em questão reproduz, em geral, as disposições da 10.259, com duas diferenças de alguma importância: a presença de juízes leigos atuando junto ao togado singular e – o que mais interessa para os fins deste artigo – a previsão de incidência subsidiária do CPC, nos termos de seu art. 27, ora textualmente reproduzido:

Art. 27.  Aplica-se subsidiariamente o disposto nas Leis nos 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, 9.099, de 26 de setembro de 1995, e 10.259, de 12 de julho de 2001.

O dispositivo supra transcrito não estabelece precedência entre as normas supletivas, a não ser que se considere que ela é determinada pela ordem em que se as indica. Configura-se, portanto, a necessidade de definir qual delas deve predominar quando houver, entre elas, o conflito que se verifica entre o CPC (que prevê a rescisória) e a Lei 9.099 (que a veda).

Ora: na hipótese de se entender cabível a ação rescisória (e o mesmo vale, claro está, para qualquer instituto do CPC) contra decisões de juizados e respectivos órgãos recursais em causas envolvendo a fazenda pública dos estados e municípios, seria insustentável – até mesmo por inconstitucional, posto que anti-isonômico – excetuar de tal possibilidade a federal.

2. Dos fundamentos constitucionais da ação rescisória como razões da inafastabilidade do direito à desconstituição da coisa julgada viciada

Para compreender porque o afastamento da possibilidade de desconstituição de decisões transitadas em julgado – sobretudo quando presentes as peculiaridades indicadas no tópico anterior e próprias das demandas previdenciárias – afronta cláusulas pétreas da Constituição da República, é útil, senão necessário, entender o que, até aqui, tem sido o instrumento por excelência de tal desconstituição: a ação rescisória.

Para tanto, o primeiro passo é conceituá-la, definir o que ela é. E essa definição é simples: a ação rescisória é um instrumento processual de desconstituição da coisa julgada.

Isto posto, é legítimo que quem perquire pela constitucionalidade da lei, e não pela legalidade da Constituição, questione a própria possibilidade de existência de tal instrumento, posto que, como se sabe, a intangibilidade da coisa julgada é garantia constitucional fundamental (art. 5º, XXXVI). Como conciliar, então, tal garantia com uma modalidade processual cujo único fim é rescindir decisões judiciais transitadas em julgado?

Só há uma resposta: concebendo a rescisória como meio processual de solução de conflitos entre direitos fundamentais, isto é, como instrumento apto à efetivação de outro direito de igual status constitucional ao da coisa julgada. É essa a concepção subjacente à sua disciplina legal, não obstante a anterioridade desta à Constituição vigente. Vejamos quais são, nos termos da lei, as hipóteses autorizadoras da rescisão de sentenças e acórdãos transitados em julgado:

Art. 485.  A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

I - se verificar que foi dada por prevaricação, concussão ou corrupção do juiz;

II - proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente;

III - resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei;

IV - ofender a coisa julgada;

V - violar literal disposição de lei;

VI - se fundar em prova, cuja falsidade tenha sido apurada em processo criminal ou seja provada na própria ação rescisória;

VII - depois da sentença, o autor obtiver documento novo, cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de Ihe assegurar pronunciamento favorável;

VIII - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença;

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;

Algumas dessas hipóteses correspondem a situações em que outros direitos fundamentais prevalecem sobre a incolumidade da coisa julgada. No caso do inciso II (sentença, em sentido amplo, proferida por juiz impedido ou absolutamente incompetente), a ação rescisória, destina-se a proteger o direito ao julgamento apenas por autoridade competente (Constituição, art. 5º, LIII). Nas hipóteses do inciso VI (sentença fundada em prova falsa), VII (documento novo) e IX[6](erro de fato), o que se visa resguardar é o princípio da verdade real (art. 5º, LV) – e, no primeiro caso, também a proibição da prova ilícita (LVI), já que prova falsa, por definição, não foi produzida por meios legítimos, mesmo na eventualidade de a parte que dela se beneficia ter-se valido dela de boa fé. No caso do inciso V (violação a literal disposição de lei), privilegia-se a reserva legal (art. 5º, II da Constituição), de modo a afastar decisões arbitrárias.

No inciso IV, a garantia fundamental protegida é a própria coisa julgada – e, por consequência, também a segurança jurídica que está na raiz de sua já referida intangibilidade – e a rescisória presta-se a desconstituí-la precisamente para resguardá-la.

Há, ainda, os incisos I (prevaricação, concussão ou corrupção do juiz), III (dolo ou fraude à lei e ao processo) e VIII (sentença baseada em confissão, desistência ou transação viciadas). Nestes casos, o problema não é de confronto entre a coisa julgada e outros institutos de igual status, mas de vício na própria formação da coisa julgada, grave o suficiente para comprometer sua higidez. Nas hipóteses dos incisos II (impedimento ou incompetência absoluta do juiz) e VI (prova falsa), estão presentes os dois aspectos (conflito entre direitos fundamentais e má formação da coisa julgada). Os vícios de formação da sentença ou acórdão (corrupção, dolo, fraude, prevaricação, incompetência, impedimento) contemplados nos dispositivos ora mencionados afetam a formação da decisão de modo tão grave que impedem a própria formação da coisa julgada, uma vez que implicam ausência de pressupostos de validade da decisão.

Negar, portanto, a possibilidade de reversão de julgados que contenham qualquer dos vícios correspondentes às hipóteses de cabimento da ação rescisória é negar os direitos fundamentais que alicerçam tais hipóteses, o que inclui o direito de buscar a formação de coisa julgada que reúna os pressupostos de validade da sentença ou acórdão.

3. Dos titulares da garantia da intangibilidade da coisa julgada e dos instrumentos para desconstituição de sentença ou acórdão com trânsito em julgado

Todos os argumentos anteriormente expostos se reforçam – ou talvez se tornem supérfluos – por um dado tão óbvio quanto habitualmente esquecido: como tudo o mais que consta do art. 5º da Constituição da República, a imutabilidade da coisa julgada é garantia do cidadão perante o Estado, não do Estado frente ao cidadão. Os entes estatais não são titulares das garantias do art. 5º nem de qualquer das prerrogativas que delas emanam.

Ausente, até aqui, da jurisprudência e da doutrina, tal perspectiva é, no que tange a outras garantias fundamentais, afirmada, de longa data, pelo Supremo Tribunal Federal. No Recurso Extraordinário 184.099, por exemplo, ficou assente que “os princípios do direito adquirido e do ato jurídico perfeito são erigidos, pela Constituição, em garantia do indivíduo perante o Estado, e não em sentido inverso.[7]” Especificamente em matéria previdenciária, essa posição é assumida pela Procuradoria Geral da República no Recurso Extraordinário 661.256, interposto pelo INSS contra decisão que reconheceu o direito à desaposentadoria[8]. Merece transcrição o parecer do subprocurador geral da República que oficia naqueles autos, dr. Odim Brandão Ferreira:

o poder público não é, em princípio, titular de direitos fundamentais. (...). Os direitos fundamentais são normas definidas pela outorga de garantias contra o Estado, nos clássicos direitos negativos. O advento dos modernos direitos fundamentais a prestações, à proteção e às garantias institucionais não alterou os termos do problema. Também neles, o particular é o titular do direito, enquanto o Estado, o sujeito obrigado, para empregar a linguagem da teoria geral do direito. (...).

Sobre não ser, em geral, titular de direito fundamental, o Estado não o pode invocar para restringir direito do particular. Tal inversão teleológica do direito constitucional da espécie citada é inadmissível. Assim, dele não se pode extrair a consequência jurídica consistente em se impedir a fruição de determinado direito pela parte privada.

O autor das linhas supra transcritas cita a Súmula 654 do STF como expressão de guarida jurisprudencial à tese que defende em seu parecer. Tal lembrança é particularmente valiosa para os fins do presente artigo, na medida em que o dispositivo constitucional a que se reporta aquele verbete é o mesmo que veicula a intangibilidade da coisa julgada enquanto garantia do cidadão: “A garantia da irretroatividade da lei, prevista no art. 5º, XXXVI, da Constituição da República, não é invocável pela entidade estatal que a tenha editado”- diz a súmula em comento.

Não há, então, como nem porque deixar de aplicar esse raciocínio à coisa julgada, até mesmo pela estreita relação que, ao menos em algumas circunstâncias, existe entre os três institutos. Reconhecer ao Estado a prerrogativa de sua imutabilidade, interditando a possibilidade de que o cidadão tenha seu pleito apreciado simplesmente por já ter ajuizado demanda anterior com igual objeto, como frequentemente se faz nas instâncias ordinárias da Justiça Federal expressa o fenômeno da tensão entre normas de forma e de fundo[9], identificado por Diana Cañal, ou mesmo aquela “propensão constante das instituições do Estado para refutar ou recusar, por uma espécie de duplo jogo e de dupla consciência coletivamente assumidos, as medidas ou ações realmente conformes à vocação oficial”[10]que Pierre Bourdieu chama de “má fé institucional”[11].

O ministro aposentado Carlos Britto, ao votar no Recurso Extraordinário 415.454[12], bem expôs a questão, ainda que ali não estivesse em jogo o que ora se discute, ao salientar que

a nossa Constituição não proíbe a retroação em si da lei (inciso XXXVI do art. 5º). O que ela proíbe é a retroação lesiva ou prejudicial do direito adquirido, do ato jurídico perfeito ou da coisa julgada enquanto situações jurídicas intrinsecamente proveitosas para alguém em particular. O que é bem diferente.

O mesmo ministro Britto, em sua Teoria da Constituição[13], discorre sobre a identidade entre os três institutos mencionados no art. 5º, XXXVI e o escopo de sua imutabilidade:

Cada vez mais nos convencemos de que os institutos do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada têm a unificá-los o fato de: a) procederem, originariamente, de uma lei em sentido formal; b) constituírem relações jurídicas do tipo concreto e de conteúdo proveitoso para alguém em particular. Por isso que a Carta Magna fala que “a lei não prejudicará”... e é claro que essa vedação de prejuízo significa tornar incólume algo intrinsecamente valioso (pois que, se valioso não fosse, deixaria de se expor a prejuízo). Já no tocante àquilo que os diferencia, pensamos que tudo se hospeda é na fonte imediata de geração de cada um deles. Por hipótese, se um determinado funcionário alcança o tempo mínimo de 35 anos de contribuição previdenciária, ele ganha o direito à aposentadoria com proventos integrais, e esse direito, por fluir direta e exclusivamente de uma norma geral, se categoriza como adquirido. Contudo, se o funcionário formaliza o seu pedido de aposentação e a Administração Pública expede o respectivo ato, com sequenciada aprovação pelo Tribunal de Contas, o direito subjetivo, que era do tipo adquirido, passa a se chamar ato jurídico perfeito. E se alguém impugna em juízo a validade de tal aposentadoria, vindo o Judiciário a definitivamente confirmar, não a impugnação mas o ato jurídico da aposentação, o direito subjetivo, que já teve a sua fase de direito adquirido e o seu estádio de ato jurídico perfeito, agora muda de nome outra vez e passa a se chamar coisa julgada.

À luz dessas premissas é que deve-se avaliar se e como é cabível a reversão da coisa julgada nos juizados especiais federais previdenciários em favor do(a) segurado(a) ou dependente.

Quanto ao primeiro problema, não pode haver dúvida: a imutabilidade da coisa julgada, como a do direito adquirido ou a do ato jurídico perfeito, não é oponível pelo Estado a pretensões deduzidas por cidadãos que buscam aceder a prestações previdenciárias. O sentido da garantia de sua incolumidade é claramente protetivo dos indivíduos, não do interesse estatal. A reversão de decisão judicial, portanto, sempre será possível, em favor do cidadão, nos juizados e varas revestidos de competência para o julgamento de tal matéria.

No que tange aos meios para procedê-la, é preciso, de início, ter em mente que a ação rescisória é apenas um deles. Mesmo no sistema processual do CPC, há ao menos uma situação em que se pode reverter decisão judicial transitada em julgado sem necessidade dela: a do art. 113 prg. 2º, que declara a nulidade dos atos decisórios praticados por juiz absolutamente incompetente. O STJ já afirmou, aliás, que “a Lei 9.099/95 não obsta a utilização da ação declaratória de inexistência de ato jurisdicional como meio de se reconhecer a ausência de pressupostos de existência da relação processual”[14]. Não haveria, então, ao menos em princípio – e abstraída aqui a questão, anteriormente mencionada, da inconstitucionalidade do art. 59 da Lei 9.099 em seu campo original de incidência, i.e., os juizados especiais cíveis – , problema algum na vedação do manejo da ação rescisória nos juizados previdenciários, desde que colocado à disposição da parte outro(s) instrumento(s) tendente(s) ao mesmo fim.

Em verdade, a ação rescisória, por suas particularidades de instrumento processual apto a desconstituir coisa julgada entre detentores das garantias do art. 5º, não se coaduna mesmo com os princípios básicos do sistema de juizados especiais. Trata-se de modalidade processual complexa, sujeita a várias restrições: depósito de percentual do valor da causa pelo autor a título de caução (CPC, art. 488, II) sob pena de indeferimento da petição inicial (art. 490. II); prazo estendido para contestação (art. 491); prazo decadencial de dois anos para propositura (art. 495), além do rol restrito de hipóteses de cabimento.

Num subsistema que tem como princípios basilares a simplicidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade (Lei 9.099, art. 2º); que admite até mesmo a postulação sem advogado (Lei 10.259, art. 10); e no qual, invariavelmente, uma das partes é ente estatal que não tem em seu favor a garantia da intangibilidade da decisão anterior transitada em julgado, a solução que se afigura mais adequada é admitir a propositura de outra ação, independentemente de sentença ou acórdão anterior com trânsito em julgado[15]. Ou seja: não se trata de sustentar o cabimento da ação rescisória, mas sua desnecessidade, com fulcro nos princípios do subsistema de juizados especiais e no próprio art. 5º, XXXVI da Constituição. Diferentemente do que ocorre numa relação em que a garantia em comento opera em favor das duas partes, não é necessário, aqui, aferir a existência de vício grave na decisão anterior: se favorável ao ente estatal, ela será mutável por esse simples fato.

Duas questões incidentais

Decorrem daí – para arrematar – duas questões um pouco mais espinhosas, que transbordam o escopo deste trabalho e aqui se mencionam de passagem, como contributo a quem queira aprofundá-las.

Uma é se o INSS poderia ajuizar ações rescisórias de decisões proferidas em causas sujeitas ao rito dos juizados, caso verificada alguma das hipóteses do art. 485 do CPC (exceto, naturalmente, a do inciso IV, por tudo o que já se expôs). De um lado, cada uma dessas hipóteses refere-se a uma circunstância suficientemente grave para que não se possa ou não se deva simplesmente afastá-las. Por outro, o Estado pode negar a si próprio a desconstituição da coisa julgada viciada, e até faz algum sentido que negue em causas de pequeno valor (não é isso o que, de outra forma, faz quando fixa piso para execuções fiscais, por exemplo?). Mesmo que se tenham em mente hipóteses como fraude ou dolo, vale lembrar que o Judiciário tem considerado insignificantes, com base tão só no valor e sem levar em conta o artifício usado, quaisquer condutas que acarretem lesão de até R$ 20 mil à ordem tributária. Ao menos enquanto vigorar essa postura, não parece haver razão para que se adote entendimento diverso quanto a, v.g., benefícios previdenciários recebidos indevidamente.

Outra é se, nas causas previdenciárias não sujeitas aos juizados especiais – e sujeitas, portanto, a outros princípios informadores – , basta à parte o mero ajuizamento de nova ação para ter seu pleito novamente discutido em juízo[16]. A resposta parece ser afirmativa, sobretudo na esteira da reflexão desenvolvida por José Antonio Savaris acerca da coisa julgada secundum eventum probatonis[17]. É necessário advertir, contudo, que essa tese, tal como até aqui formulada, não dá conta, sozinha, do problema, uma vez que não abrange os processos que independam de prova por versar matéria puramente de direito nem aqueles em que não se trata de apresentar novas provas, mas de rever a valoração probatória inadequadamente procedida pelo(s) órgão(s) judicante(s). Para essas hipóteses (sobretudo a segunda), talvez seja de bom alvitre a criação legislativa de algum instrumento processual de uso menos restrito que a ação rescisória, destinado, especificamente, à rediscussão de matérias decididas em ação anterior transitada em julgado. Enquanto isso não ocorrer, parece, porém, será cabível a rediscussão pela simples propositura de nova lide, como corolário do entendimento que embasa a Súmula 654 do STF.


Bibliografia

- BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Porto Alegre: Zouk, 2007.

- BRITTO, Carlos A. Teoria da Constituição. São Paulo: Forense, 2006

- CAÑAL, Diana R. Decisiones Judiciales: la relación entre normas de fondo y de forma. Buenos Aires: Errepar, 2011.

- SAVARIS, José A. Coisa julgada previdenciária como concretização do direito constitucional a um processo justo. Revista brasileira de direito previdenciário nº 01, Ano 01, 2011, pp. 65-86.


[1] Competência absoluta e competência exclusiva não são sinônimos. Tenhamos em mente, por exemplo, uma causa entre particulares, elencada entre aquelas que podem tramitar nos juizados especiais cíveis. A competência da justiça estadual para julgá-la, em detrimento da federal, é absoluta. Mas a competência de seus órgãos (juizados especiais cíveis e varas cíveis estaduais) para conhecer dessa mesma ação não é exclusiva, e sim concorrente. Esse é um debate que ainda falta travar com relação aos juizados federais.

[2]Lei 9.099, art. 8º.

[3]Não se ignora que os benefícios previdenciários vêm sendo tratados pelos tribunais federais (inclusive o Superior Tribunal de Justiça) como direitos patrimoniais disponíveis. Sem aprofundar uma questão estranha ao tema deste artigo, cabe salientar que, ainda que assim seja, o direito, v.g., à aposentadoria deve ser entendido como algo distinto do direito àquela aposentadoria determinada, identificada por seu número de registro no INSS. É dado ao trabalhador renunciar à prestação que titulariza, mas não ao direito às prestações cujos requisitos preenche. De mais a mais, a questão da troca de um benefício por outro se resolve à luz da doutrina do melhor benefício, que independe da natureza dos direitos em questão.

[4]“Não cabe Recurso Especial contra decisão proferida por órgão de segundo grau dos juizados especiais” (Súmula 203 do STJ).

[5]Teor do referido enunciado: “Não cabe ação rescisória no Juizado Especial Federal. O artigo 59 da Lei n 9.099/95 está em consonância com os princípios do sistema processual dos Juizados Especiais, aplicando-se também aos Juizados Especiais Federais.”

[6]Incluído pela Medida Provisória 1.798-3/99.

[7]1ª Turma, relator Néri da Silveira, DJ 18.04.97.

[8]No momento em que este artigo é escrito, o processo em questão encontra-se em fase de julgamento pelo STF, com pedido de vista da ministra Rosa Weber após dois votos contrários e dois favoráveis à pretensão do INSS.

[9]CAÑAL, Diana R. Decisiones Judiciales: la relación entre normas de fondo y de forma. Buenos Aires: Errepar, 2011.

[10]BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Porto Alegre: Zouk, 2007, p. 245.

[11]Idem.

[12]DJ de 28.10.2007.

[13]Forense, 2006, pp. 9-10.

[14]MC 15.465, rel. Nancy Andrighi,

[15]Para coibir eventuais abusos na reiteração excessiva de ações com idênticas partes e objeto, existem as hipóteses de litigância de má fé do CPC.

[16]Na já aludida hipótese de nulidade dos atos decisórios por incompetência absoluta, parece claro que sim.

[17]SAVARIS, José A. Coisa julgada previdenciária como concretização do direito constitucional a um processo justo. Revista brasileira de direito previdenciário nº 01, Ano 01, 2011, pp. 65-86.

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Sobre o autor
Henrique Júdice Magalhães

Advogado (OAB/RS 72.676), ex-pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e ex-consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Cursa atualmente o doutorado em Direito na Universidad de Buenos Aires.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Henrique Júdice. Coisa julgada nos juizados previdenciários. Ação rescisória: cabimento ou desnecessidade?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4561, 27 dez. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/34150. Acesso em: 29 mar. 2024.

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