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Direito real de superfície: a ressurreição

01/01/2003 às 00:00
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Expurgado da estrutura legal brasileira em 1864 e banido do projeto do Código Civil antes de sua promulgação em 1916, o Direito Real de Superfície ressurge das cinzas, para ocupar lugar no elenco do Direito das Coisas na sistemática do novo Código Civil.

Estranhamente, não foi apenas o novo Código Civil que disciplinou sobre o instituto. A Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada "Estatuto da Cidade", também regula a matéria, repetindo, em grande parte, as disposições contidas nos arts. 1.369 e seguintes do Estatuto Civil. A duplicidade é plenamente compreensível no sentido de não olvidar a tradicional "incontinência legislativa", a que convencionei denominar "legirréia", que acomete nossos nobres representantes da Câmara dos Deputados e do Senado da República e que ecoa nos poderes respectivos em níveis estaduais e municipais.

Sendo o Direito de Superfície um instituto de feição eminentemente civil, só deveria ele ser instituído por legislação de natureza civil, como o fez o Código Civil prestes a entrar em vigor. É um atentado ao senso jurídico de qualquer pessoa que tenha um mínimo envolvimento com o direito, vislumbrar o "Estatuto da Cidade", lei de cunho estritamente administrativo, instituindo e disciplinando - porque o texto legal realmente institui e disciplina - o Direito Real de Superfície.

Inconformismos à parte, o Direito de Superfície já se encontra em nosso repertório jurídico. Aplaudido e criticado, sua função precípua parece ser o atendimento a propalada "função social da propriedade", preceituada pela Carta Magna, visando atender interesses no âmbito do Direito Administrativo, como opção para retirar imóveis públicos e privados da ociosidade e fomentar a urbanização, por via de conseqüência.

Vários autores têm endereçado pesadas críticas à adoção do novo instituto, acusando-o de obsoleto e de sementeira de litígios. A verdade é que o Direito de Superfície já faz parte integrante do universo profissional dos operadores do direito, mormente do cotidiano dos notários e registradores, que deverão se familiarizar com o instituto, eis que ambos os diplomas que cuidam da matéria, prevêem solenidade de escritura pública para sua concessão, além do registro no serviço competente. Tal fato deve, inclusive, ser encarado como uma conquista para a classe, posto que nos últimos tempos, temos assistido corriqueiramente à perda de funções nos ofícios registrais e notariais, especialmente no que tange à crescente admissão de negócios jurídicos por meio de instrumento particular, que muitas das vezes são lavrados por pessoas que não têm qualquer conhecimento jurídico para orientar as partes envolvidas. Isto sem mencionar outros aspectos nas searas da fé pública, policiamento jurídico, publicidade, etc.

Conceitualmente, o Direito de Superfície é a propriedade da benfeitoria ou plantação destacada do solo onde se assentam. Neste sentido, o instituto é conflitante com o princípio romano do "superficies solo cedit", segundo o qual, tudo quanto fosse acrescido ao solo a ele se agregava e ao dono do solo pertencia. Ele promove, por assim dizer, um "desmembramento" entre o domínio do solo e o domínio do que está (ou será) incorporado a ele por acessão. Assim, a porção majoritária dos doutrinadores defende a Superfície como direito real "autônomo", apartando-o do rol dos "ius in re aliena".

A Superfície é enfocada no novo Código, no título formado pelos artigos 1.369 a 1.377 e tem as seguintes particularidades: a-) Está elencado como direito real. b-) Sua concessão se dá, obrigatoriamente, por via de escrito público em serviço notarial, que deverá ser levado a registro no serviço registral de imóveis. c-) A concessão do Direito de Superfície pode se operar de forma gratuita ou onerosa. d-) Impõe ao superficiário (concessionário do direito) a carga tributária incidente sobre o imóvel. e-) É alienável por ato "inter vivos" ou "causa mortis", o que equivale dizer que pode ser vendido e doado, além de se transmitir por herança. f-) Gera direito de preempção em favor do proprietário do solo ou do superficiário em caso de alienação da propriedade do solo ou do Direito de Superfície, respectivamente, em igualdade de condições com terceiros. g-) Na hipótese de mudança, por parte do superficiário, da destinação do direito real pactuada na sua instituição, opera-se a resolução da concessão com sua extinção. h-) Na consolidação da propriedade plena nas mãos no proprietário, quando da extinção da concessão, as benfeitorias, plantações e acessões agregadas ao terreno passam ao domínio do proprietário, não assistindo ao superficiário direito de indenização ou retenção, salvo estipulação diversa. i-) Na ocorrência de desapropriação do imóvel, a lei resguarda direito de indenização tanto ao proprietário quanto ao superficiário.

O Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), conforme já explicitado, reproduz, em seus arts. 21 a 24, as disposições estampadas no novo Código Civil com relação ao direito sob comento, apartando-se deste, no entanto, em alguns aspectos: a-) O Estatuto só faz referência à imóveis urbanos, enquanto que o Código não faz distinção entre imóveis urbanos ou rurais. b-) O Estatuto estabelece que a concessão pode se dar por tempo determinado ou indeterminado. O Código Civil só faz referência a concessão por tempo determinado. c-) O Estatuto dispõe que a concessão do direito abrange a utilização do solo, subsolo e espaço aéreo. O Código Civil só autoriza obra no subsolo se esta for inerente ao objeto da concessão. d-) O Estatuto enumera as causas de extinção do Direito de Superfície, quais sejam, o advento do termo e o descumprimento das obrigações assumidas pelo superficiário. O Código Civil se mantém silente a respeito.

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Apesar de apedrejado por diversos doutrinadores e ter sido colocado na posição de instituto retrógrado desde a época dos romanos, o Direito de Superfície desponta como uma possível alternativa para estimular nossas extenuadas políticas habitacional e agrária, assim como servir de instrumento ao Poder Público, que passa a contar com uma opção para dar destino aos imóveis de seu patrimônio com a manutenção do domínio do solo. Ademais, o instituto tem o condão de incentivar a construção em terrenos ociosos, uma vez que os municípios, valendo-se de mecanismos fiscais, tais como o IPTU progressivo, poderão induzir os proprietários que não se interessam em edificar, a se valerem da concessão do Direito de Superfície, como solução para o problema.

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Sobre o autor
Carlos Kennedy da Costa Leite

tabelião do Serviço Notarial do 1º Ofício da Comarca de Machado (MG), pós-graduado em Direito Civil

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LEITE, Carlos Kennedy Costa. Direito real de superfície: a ressurreição. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n. 61, 1 jan. 2003. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/3616. Acesso em: 28 mar. 2024.

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