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Da desnecessidade da duplicação de registros e partilhas em inventários conjuntos

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No momento exato do falecimento de um proprietário, sua propriedade se transferiu ao sucessor. Se, logo depois desse fato, o herdeiro beneficiado vier a falecer, o direito por ele recebido irá se transferir, por sua vez, a seu sucessor. Não haverá, nesta hipótese, quebra de continuidade registrária se apenas a segunda sucessão for publicada no registro de imóveis.

Resumo:- A realização de inventários conjuntos, medida de economia processual prevista pelo artigo 1043 do CPC, sempre se realizou sem maiores dificuldades. Entretanto, em data recente, decisões judiciais de primeira e segunda instância exigem que, nessas situações, o correspondente registro imobiliário não seja único e, necessariamente reproduza uma partilha para cada sucessão. Ao aceitar tal interpretação os oficiais de registro de imóveis haverão de obstar o acesso ao registro de muitas escrituras públicas e títulos judiciais. Este trabalho busca apontar o erro que representa esta maneira nova de interpretar aquele dispositivo processual. Nele se demonstra como são maltratados os princípios fundamentais do direito de propriedade, definidos na Constituição Federal e no Código Civil, quando, em nome dessa equivocada interpretação da lei processual civil, o registrador vem a exigir a duplicação de registros para os títulos de entrega de herança que lhes são apresentados.


DA DESNECESSIDADE DA DUPLICAÇÃO DE REGISTROS E PARTILHAS EM INVENTÁRIOS CONJUNTOS

Está se firmando no Estado de São Paulo uma nova interpretação para o artigo 1.043 do CPC que defende ser necessária a realização de partilhas duplas ou múltiplas e igualmente duplicação ou multiplicação de registros no Cartório de Registro de Imóveis - sempre que ocorrer inventário conjunto na forma daquele dispositivo.

O autor discorda dessa linha de interpretação e busca provar que a conclusão alcançada no raciocínio desenvolvido pelos defensores desta tese carece de lógica e de correta fundamentação legal e que, portanto, a realização de exigência neste sentido, além de ofender alguns dos mais importantes fundamentos do sistema jurídico (simplificação de procedimentos, racionalização e economia), serve apenas para favorecer maior ganho de emolumentos para o oficial e dar causa a dificuldades práticas para o interessado no acesso ao registro imobiliário para obter a inscrição de seu título de aquisição no cartório competente, considerando-se o fato de que a retificação de um Processo Judicial ou de uma Escritura Pública de Inventário e Partilha não é ato de execução simplificada.   


UM DOCE CONSTRANGIMENTO PARA O REGISTRADOR

Mesmo possuindo dúvidas sobre o acerto da mudança, muito provavelmente, qualquer pessoa mudaria ideias e abandonaria paradigmas já estabelecidos, quando a mudança para um novo modelo de atuação viesse a lhe trazer ganho econômico e não representasse prejuízo algum para si. A mudança, em tal situação, ocorreria então como uma forma muito doce de constrangimento.

O contrário, entretanto é muito mais difícil de ocorrer. Havendo a mínima margem de dúvida sobre o acerto em mudar comportamentos e costumes tradicionais, a mudança não ocorre assim tão facilmente. Mudar para sofrer qualquer forma de perda nos ganhos econômicos, somente é aceito após muita discussão, questionamento e aprofundamento do debate.

Mudanças que geram perdas econômicas, ou que simplesmente afastam a possibilidade de se obter vantagem ou ganho financeiro, não ocorrem motivadas apenas pela apresentação de novas ideias e argumentos: elas somente serão aceitas se alguma forma de autoridade impuser a necessidade da tal mudança.

Assim é a natureza humana e, não por outro motivo, é tão longo este texto. 

Existe convicção e, portanto, um justo receio de que pode ocorrer fácil e rapidamente uma mudança na forma da qualificação de Escrituras Públicas de Inventário e Partilha e também de Cartas de Sentença e Formais de Partilhas com origem no Foro Judicial, com a adoção, pelos Cartórios de Registro de Imóveis, dessa nova e complicadora teoria sobre o direito das sucessões. Tal mudança, ainda que objeto de dúvida e insegurança, seria adotada pelo Oficial Registrador, pois representa maior ganho de emolumentos e sua adoção não traria maiores riscos, na medida em que existe respaldo para as decisões em processos de Apelação Cível para casos semelhantes. Deveras, até o momento em que se escreve este texto, já existem, publicadas na Imprensa Oficial do Estado, pelo menos dois Acórdãos neste sentido: apelação cível nº 990.10.212.332-4, da Comarca de Caraguatatuba, publicada no D.J.E. de 108/01/2011 e  Apelação Cível n° 0051003-05.2011.8.26.0100, da Comarca da capital, publicada no D.J.E. de 31.10.2012.

Por outro lado, muito diferentemente, o retorno ao paradigma anterior não será fácil de ocorrer.

O que se pretende, então, com esta longa argumentação é trabalho difícil: busca-se convencer quem não gostaria de ser convencido, porque nada ganharia com seu convencimento, pelo contrário, o destinatário destes argumentos, se convencido fosse, deixaria de receber quantia significativa no valor dos emolumentos.

Tal convencimento, porém, é uma necessidade, uma obrigação moral e de justiça. Trata-se de combater o bom combate. O que se busca com a presente argumentação é a defesa do acerto de uma interpretação já tradicional, que se mostra totalmente coerente com o sistema jurídico, muito mais prática, objetiva e, principalmente, muito menos onerosa e formalista do que a nova proposta surgida recentemente e que em nada beneficia a aplicação do direito, do justo ou a promoção do bem da sociedade.

Será necessário, portanto, convencer quem não gostaria de ser convencido. Buscar a quebra de resistências e o amaciamento da dureza de corações e mentes. 

Contudo, ainda antes de adentrar no mérito, uma ressalva mostra-se conveniente: a questão colocada em discussão em nada altera a situação dos emolumentos cobrados pelos tabeliães de notas para a realização de escrituras de inventário e partilha e também o valor das custas Processuais nos procedimentos que tramitarem no Foro Judicial.

Havendo inventários conjuntos, por força da lei, haverá cobrança dupla de custas processuais e, quando o inventário realizar-se por meio de escritura pública, também haverá uma cobrança para cada sucessão, pois o valor dos emolumentos tem como base a quantidade de negócios jurídicos retratados na escritura e, inquestionavelmente, cada sucessão ocorrida representa um negócio jurídico diferente.


A ORIGEM DO PROBLEMA

A apresentação e defesa dessa tese que, com o pretenso objetivo de melhor interpretar o disposto no artigo 1.043 do Código de Processo Civil, defende que na realização de inventários conjuntos seria necessária a realização de partilhas duplas ou múltiplas e igualmente duplicação ou multiplicação de registros no Cartório de Registro de Imóveis,  segundo se sabe, ganhou notoriedade e repercussão em nível estadual após a publicação no Diário Oficial do Estado de São Paulo de um acórdão proferido em Apelação Cível originada em Processo de Dúvida Registrária (regulada pelo artigo 202 da Lei 6015/73) que teve, como fundamento, a exigência formulada por registrador imobiliário após, incorretamente, desenvolver um raciocínio em tal sentido.

Surpreendentemente, após o Juiz Corregedor em sua Comarca ter emprestado validade à tal argumentação, realizada apelação à instância superior, também o Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo se deixou convencer da validade da teoria desenvolvida. 

É certo que cada caso prático possui suas características singulares e próprias. A identificação da existência de falhas no raciocínio desenvolvido não implica, de fato, em considerar que tal procedimento administrativo estaria maculado de alguma forma. O deslinde de um procedimento de dúvida (que se limita a decidir sobre a procedência ou improcedência da dúvida suscitada diretamente pelo registrador, ou indiretamente, pela parte diante do juiz corregedor) é ato administrativo que envolve a qualificação do título como um todo e a existência de qualquer outra falha ou omissão, ainda que muito simples, facilmente sanável e contornável, deve dar causa ao julgamento da procedência da dúvida, assim impossibilitando o acesso do título ao registro.

Os casos já decididos não são, em absoluto, objeto de qualquer espécie de crítica. As decisões existentes, como atos de caráter administrativo que são, poderão até mesmo ser revistas, se novamente forem objeto de análise, pois não possuem caráter de coisa julgada.

A intenção deste escrito é apenas mostrar um erro de raciocínio desenvolvido sem a coerência lógica que dele haveria de se esperar e, na medida em que esse raciocínio incorreto teve ampla divulgação pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo existe grande potencial para que o mesmo possa vir a causar dissabores e prejuízos a cidadãos, advogados e tabeliães.

O que se pretende aqui é fornecer argumentos de alguma solidez para que os eventuais prejudicados pelos efeitos que possam dele advir, consigam se defender e argumentar com  aqueles que, eventualmente, venham a adotá-lo e que, certamente, o farão por não haver percebido o erro dessa nova forma de interpretação que modifica paradigmas até então aceitos sem questionamento (exatamente por se mostrarem mais coerentes com o direito e a justiça).


INVENTÁRIOS CONJUNTOS, PARTILHA ÚNICA

Com a segurança de uma tradição longeva é possível afirmar com tranquilidade que a realização de Inventários conjuntos não implica na automática e necessária realização de mais de uma partilha. 

Tal afirmação categórica não se questionou até o momento em que se buscou justificar a realização de dois atos distintos no cartório de registro de imóveis por se entender que haveria quebra de continuidade registrária e que melhor interpretação do texto do artigo 1.043 do Código de Processo Civil levaria a concluir por esta obrigatoriedade.

Segue a argumentação neste sentido, transcrita do texto que se fez publicar no Diário de Justiça Eletrônico do Estado de São Paulo - Apelação Cível nº 990.10.212.332-4, da Comarca de Caraguatatuba, publicada no D.J.E. de 108/01/2011:  

 (…) Vale destacar, que o próprio art. 1.043 do CPC... é claro ao apontar para uma possibilidade de cumulação de inventários em um único processo .... Ora, a cumulação não equivale à fusão, mas sim à junção (no caso, por conexão), em que dois seres agrupam-se no mesmo âmbito ou conjunto (no caso, o processo ou, ainda, a escritura), mas sem perder a individualidade – com a transformação de dois inventários em um. Ou de duas partilhas em uma só – não estaríamos mais diante de uma cumulação ou de um conjunto, pois estes exigem um mínimo de dois termos diferentes (isto e aquilo).

O texto do referido artigo é tão claro e inequívoco que em seu parágrafo primeiro indica que poderá haver um só inventariante para os DOIS (2) inventários. São, portanto, dois inventários, duas partilhas e um só instrumento  (grifei).

Para início de análise dessa argumentação, interessante se mostra a reprodução do citado artigo 1.043 do Código de Processo Civil, que é seguinte:

Art. 1.043. Falecendo o cônjuge meeiro supérstite antes da partilha dos bens do pré-morto, as duas heranças serão cumulativamente inventariadas e partilhadas, se os herdeiros de ambos forem os mesmos.

§ 1º Haverá um só inventariante para os dois inventários.

§ 2º O segundo inventário será distribuído por dependência, processando-se em apenso ao primeiro.

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À primeira vista, de fato, não se nota incoerência entre a conclusão grifada acima e uma acertada interpretação do disposto no citado artigo do CPC, mas ela existe e será demonstrada a seguir.


A INTERPRETAÇÃO GRAMATICAL DA LEI  

O raciocínio que se desenvolveu para culminar naquela afirmação acima reproduzida, em destaque, pode ser resumido como resultado de uma interpretação literal, puramente gramatical de texto da lei.

Evidente que tal espécie de interpretação de texto legal é importante e, de fato, em muitas situações, tal critério mostra-se suficientemente claro não deixando margem para interpretações divergentes.

Contudo, a interpretação literal ou gramatical da lei, por sua própria característica essencial, que despreza os fundamentos do sistema jurídico, as relações do texto analisado com os demais dispositivos do ordenamento, ou outras variáveis possíveis para a melhor interpretação que se pretende fazer da lei, resume e limita-se basicamente a uma forma de análise lógica.

Na interpretação gramatical de um dispositivo legal, o texto escrito da lei define a premissa maior. O fato em análise representa a premissa menor. A conclusão será aquilo que logicamente se impõe da combinação dessas premissas.

Um exemplo de tal espécie de interpretação, com referência à aquisição da propriedade imobiliária, seria o seguinte:

Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do título traslativo no Registro de Imóveis (redação textual do artigo 1245 do Código Civil)

O título traslativo de Cesar para Augusto foi registrado no Registro de Imóveis.

Logo, a propriedade de Cesar (seu imóvel) foi transferido para Augusto.

Nada além de simples raciocínio lógico. Impossível questionar. Inaceitável qualquer refutação.

Entretanto, a conclusão acima ressalvada - de que a cada dois inventários deverão ocorrer duas partilhas, ainda que em um só instrumento - que efetivamente resulta de mera interpretação gramatical do artigo 1043 do CPC dever ser afastada, pois tal espécie de interpretação meramente gramatical, no caso do referido artigo, não poderia ter sido feita. O contexto do dispositivo não permite fazê-lo.

Aquela conclusão alcançada, embora possua coerência lógico-gramatical irretocável, maltrata os fundamentos do sistema jurídico e o direito individual de cada cidadão.


A INTELIGÊNCIA DA LEI PROCESSUAL

O referido artigo do 1.043 do Código de Processo Civil não definiu o que é inventário e nem o que é partilha. Isoladamente, sem a interpretação de um contexto mais amplo, ele mostra-se incompreensível. Portanto, para sua correta compreensão e análise, não se pode ignorar as lições da doutrina e da jurisprudência sobre o tema regulado por ele.

Em sua redação objetiva, o artigo 1043 do CPC, limitou-se a permitir (em exceção à regra geral de que a cada herança deve corresponder um único inventário) que existam inventários conjuntos se estiverem presentes os seguintes requisitos: (a) o falecimento do cônjuge meeiro sobrevivente deve ter ocorrido antes de estar concluída a partilha dos bens do marido pré-morto e (b) os herdeiros de ambos devem ser os mesmos.

Diante destas duas condições básicas, as heranças deverão resultar em um único processo de inventário que, ao final, resultará em partilha aos herdeiros.

O excesso de rigor formal sobre o tema já foi objeto de análise pelos tribunais tendo sido afastado exatamente para prestigiar a economia processual.

Sobre o tema, Sebastião Amorim e Euclides de Oliveira, em sua festejada obra “Inventários e Partilhas: direito das sucessões:  Teoria e Prática”  (21. Ed. rev. e atual. - São Paulo ; Livraria e Editora Universitária de Direito, 2008 - p.318)  escreveram: “...já se admitiu o inventário conjunto mesmo em hipótese de autor da herança com filhos de dois matrimônios: “O fato de haver filhos do primeiro casamento, e do segundo, não impede que o processo de inventário se faça de acordo com o artigo 1.043 do Código de Processo Civil, se a viúva do de cujus vem a falecer, deixando bens a inventariar” (RT 495/81)”.

Ao utilizar-se da redação: (as heranças serão) “cumulativamente inventariadas e partilhadas” o legislador não pretendeu impor limites formais e intransponíveis para a economia processual, que é claramente identificada como a inteligência última do próprio dispositivo.

Assim como não impede a realização de inventário conjunto o fato de não serem os herdeiros resultantes de um único casamento ou que o supérstite não seja meeiro dos bens deixados pelo primeiro autor da herança, também aceitável que ocorram inventários conjuntos com adjudicação a herdeiro único sem ocorrência de partilha nenhuma e, igualmente, é perfeitamente possível que ocorram inventários conjuntos e uma única partilha.

O fato é que a realização de inventários conjuntos, situação relativamente comum, não representa novidade e gera pouca dificuldade de interpretação para os juízes e tribunais  que buscam sempre uma interpretação com vistas à economia processual, maior celeridade e simplificação de procedimentos.  


UM ADENDO OPORTUNUO - A UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA E A INTERPRETAÇÃO DA LEI 

Sobre a interpretação literal do que está escrito no texto da lei, uma observação mostra-se pertinente: Recentemente o STF decidiu que a união estável entre pessoas do mesmo sexo é possível, embora, o texto do art. 1723 do CC, que define os requisitos da existência e da possibilidade desta forma de organização familiar, seja explícito ao definir que ela somente pode ocorrer entre um homem e uma mulher.

É evidente que a literalidade do dispositivo leva o intérprete inexoravelmente a negar a possibilidade da existência de união estável ente pessoas do mesmo sexo. Mas apesar disso, o Supremo Tribunal Federal, ao interpretar tal dispositivo, em uma decisão inquestionavelmente justa e coerente com os princípios fundamentais definidos na Constituição Federal, criou uma regra nova que se mostra claramente contrária ao texto escrito da lei.

A lei, conforme indica esta recente lição emanada da mais alta corte do país, portanto, ainda que clara e evidente não deve ser interpretada apenas com base em seu texto.

No passado costumava-se afirmar que diante da certeza da lei, cessa o espaço para a interpretação (na famosa fórmula latina: in claris cessat interpretatio). Considerando-se a evolução da ciência do direito e das ideias e ainda a existência de princípios que fundamentam a organização social no mundo atual, tal afirmação não pode mais ser considerada como absolutamente verdadeira, pois se existem princípios que devem ser preservados como fundamentos do sistema, a literalidade da lei não poderá prevalecer contra eles.

É certo, entretanto, que existe risco nesse tipo de interpretação.

Exemplo desse fato é que a partir da interpretação dada à união estável homoafetiva, atualmente estão ocorrendo, com a devida legitimação por vários tribunais estaduais, o ato formal e solene do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Evidente que, se consideradas fossem as dezenas de dispositivos legais onde se define como necessária para a realização do casamento a diversidade de sexos ente os contraentes, isso seria inconcebível e inaceitável.

Mas é uma tendência atual nos tribunais e na doutrina e isso, ao que parece, não tem possibilidade de se modificar. O dogmatismo presente nas escolas clássicas do direito não prevalece nos dias atuais.

O fato é que o intérprete do direito, na atualidade, precisa adaptar-se a este relativo grau de incerteza; não existe alternativa em um sistema onde a base, o fundamento de toda regulamentação da vida em sociedade, encontra-se em princípios (e supra princípios) desejáveis para a construção de uma sociedade melhor e, exatamente por tal motivo, de pequeníssima limitação e muito larga amplitude.  


HERANÇA, INVENTÁRIO, PARTILHA E DIREITOS FUNDAMENTAIS

Retornando ao cerne do tema em debate. Para corretamente obedecer ao disposto no citado artigo 1.043 do CPC e afastar o erro que representa a exigência de obrigatoriedade de sempre se realizar partilhas plurais em inventários conjuntos, portanto, é preciso antes considerar o que é  herançainventário e partilha, segundo o disposto na lei material ou processual e ainda, para proceder a tal análise, segundo reclama o atual estágio da ciência jurídica, não ignorar os princípios mais fundamentais do direito.

Não cabe, neste momento, maior aprofundamento sobre a definição do que seria inventário, mas para a definição legal de herança e partilha, mostra-se conveniente reproduzir o teor do artigo 1791 do Código Civil:

Art.1791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros.

Parágrafo único. Até a partilha. O direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.

Não se deve esquecer o fato de que o direito à propriedade e à herança estão elencados entre os direitos fundamentais relacionados no Título II, Capítulo I, da Constituição Federal (confira-se os incisos XXII  e XXX do artigo 5º da CF).

Ora, inquestionável que, na situação em análise (e em qualquer espécie de inventário), não se pode conceber a existência de partilha sem a prévia existência de herança a ser partilhada e igualmente incontestável é o fato de que toda herança deve ser arrecadada, especificada, apartada do universo dos demais bens existentes e que não pertenciam ao falecido autor da herança, para somente então vir a ser objeto de uma partilha entre os sucessores.

Somente após a realização de um inventário, ou seja, somente após apurar-se a relação de todos os bens deixados por alguém que morreu (o termo inventário, neste caso, não está sendo utilizado em seu significado jurídico, mas conforme consta nos dicionários da língua portuguesa), somente após o levantamento do monte, da totalidade dos bens deixados pelo falecido, é que se poderá cogitar em partilha entre os sucessores do falecido.

Os Artigos 1804 e 1805 do Código Civil são dispositivos que  merecem ser transcritos, por sua relação com o tema:

Art.1804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro desde a abertura da sucessão.

Art.1805. A aceitação da herança, quando expressa, faz-se por declaração escrita: quando tácita, há de resultar tão somente de atos próprios da qualidade de herdeiro.

A existência de uma herança e sua aceitação por parte de quem estiver legitimado a fazê-lo, portanto, são condições fundamentais para se cogitar na realização de um inventário de bens e, posteriormente, na realização de uma partilha daqueles bens inventariados.

Evidente que somente após a aceitação da herança por uma pluralidade de beneficiários é que se pode conceber na existência de uma partilha, pois, sendo único o herdeiro a aceitar a herança, não haverá partilha, mas adjudicação.

A existência de uma Partilha, evidentemente, pressupõe a existência de uma pluralidade subjetiva (de herdeiros ou sucessores) na propriedade comum de, ao menos, um bem ou direito. Existindo um único titular de direitos sobre o todo unitário (expressão utilizada pelo texto da lei, ao definir fundamental característica de uma herança) não se mostra possível a realização de divisão ou partilha.

Qualquer grandeza matemática quando dividida pela unidade resulta no mesmo número inicial, o que representa, na melhor das hipóteses, uma operação inútil. A existência de uma pluralidade de herdeiros e que tais herdeiros aceitem a herança deixada, portanto, são condições fundamentais para se conceber a possibilidade de realização de inventários e partilhas.

O fato é que, em sendo capazes os herdeiros, a aceitação da herança poderá ocorrer de mais de uma forma. Ela deverá ser homologada pelo juiz de direito, se o inventário se realizar em juízo ou, caso seja possível e se opte pela realização de inventário e partilha por meio de escritura pública (na forma da Lei 11441/07, que deu nova redação ao artigo 982 do CPC) tal aceitação da herança deverá constar do texto da escritura e será dispensada a homologação judicial.

Até aqui, analisando os dispositivos legais sobre o direito sucessório, não se vislumbrou qualquer comando que levasse o intérprete a concluir que sempre existirão duas partilhas quando existirem dois inventários. Aliás, de forma muito diferente, verificou-se que, segundo o parágrafo único do art.1791 do CC,  até a realização da partilha  a posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio.

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Sobre o autor
Marco Antônio de Oliveira Camargo

Titular do Cartório do Registro Civil das Pessoas Naturais e Tabelião de Notas do Distrito de Sousas, Comarca de Campinas - SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMARGO, Marco Antônio Oliveira. Da desnecessidade da duplicação de registros e partilhas em inventários conjuntos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4249, 18 fev. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/36421. Acesso em: 19 mar. 2024.

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