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O duplipensar no ensino jurídico –

como conviver com o paradoxo

02/07/2016 às 14:08
Leia nesta página:

De que vale, ou a quem interessa um duplipensar no paradoxo Direito (Ciência) x Direito (para concurso)?

Duplipensar é um termo criado George Orwell e apresentado no enredo de sua obra “1984” - recomendo a leitura do livro - que significa a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las simultaneamente.

No curso de bacharelado de direito isso nos é apresentado ainda na disciplina de Introdução ao Estudo do Direito na metáfora dos mundos “do ser” e “do dever-ser”, o que é efetivamente comprovado já nos primeiros meses de estágio onde o aluno é recebido pelo orientador do estágio com a distópica afirmativa que “na prática a teoria é outra”...  

- Hã??? 

- Como assim? 

Bem..., que infelizmente, e em grande parte, a realidade distópica anteriormente apresentada é a que se impõe não podemos negar, mas a bola de neve vem aumentando e abarcando outras situações inimagináveis... 

Observem a questão para o concurso de Juiz de Direito do Estado do Piauí aplicada pelo CESPE/UNB em 2011 que adiante segue. Tentem respondê-la de forma a justificar a resposta dada. 

(CESPE/TJ/PI/Juiz - 2011.) O fato de um juiz, transcendendo a letra da lei, utilizar de raciocínio para fixar o alcance e a extensão da norma a partir de motivações políticas, históricas e ideológicas caracteriza o exercício da interpretação: 

a) teleológica

b) sistemática

c) histórica 

d) lógica 

e) doutrinária 

 - gabarito - “d”

Conseguiram responder?

Bem..., eu não consegui... 

Incapacidade minha?  

Talvez... A onipotência não é uma característica inata a minha pessoa... Graças a Deus! 

Contudo, a solidão não me acompanha nessa incapacidade, tenho a honra de me alinhar a Tercio Sampaio Ferraz Júnior (Introdução ao Estudo do Direito - Técnica, Decisão, Dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 287-288.); Dimitri Dimoulis (Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.147-152) e a Sílvio de Salvo Venosa (Introdução ao Estudo do Direito – Primeiras Linhas. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 176.), afinal não encontrei em nenhum desses manuais características do método de interpretação lógico que se compatibilize com o enunciado da referida questão.

Por falar em enunciado, são necessárias algumas considerações sobre o citado enunciado para chegarmos a alguma conclusão. 

Dissequemos! 

O fato de um juiz, transcendendo a letra da lei...” - Sejamos benévolos e aceitemos essa expressão como a realização do ato de interpretar, onde o membro do judiciário vai além do enunciado normativo para extrair seu conteúdo normativo...  

... utilizar de raciocínio para fixar o alcance e a extensão da norma...” - Aqui começa o problema! Partindo do pressuposto de que o intérprete não é uma formiga, ou um rato que usa o instinto como mola propulsora para suas atitudes, mas sim um homem (homo sapiens), único dentre os animais dotado de racionalidade, logo com capacidade de raciocínio, então, este sempre terá de utilizar o raciocínio para o ato de interpretar, independente do método clássico que utilize, assim, tenho muita fé (aqui sim há transcendência...) que o examinador que elaborou a questão não quis “linkar” a palavra raciocínio à alternativa posta como correta, letra “d”...  

... a partir de motivações políticas, históricas e ideológicas...” - Qualquer criança de 6 anos que faz o 1º ano do ensino fundamental aprende em seu livro de História (Sim! História! No meu tempo de “ginásio” (faz tempo...) a gente via a disciplina História apenas no 5º ano (1º ano ginasial)) que o homem é um ser histórico, alguém que interage com a realidade que é parte integrante desse meio social e histórico, que atua e vive. Compreendeu!? É básico, entende! Conceito ensinado no 1º ano do ensino do fundamental! Achou simples?

Deixa eu sofisticar... 

Heidegger ao desenvolver a ideia de pré-compreensão diz a mesma coisa em:

“A interpretação de algo como algo funda-se, essencialmente, numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. A interpretação nunca é apreensão de um dado preliminar, isenta de pressuposições. Se a concreção da interpretação, no sentido da interpretação textual exata, se compraz em se basear nisso que “está” no texto, aquilo que, de imediato, apresenta como estando no texto nada mais é do que a opinião prévia, indiscutida e supostamente evidente, do intérprete. Em todo princípio de interpretação, ela se apresenta como sendo aquilo que a interpretação necessariamente já “põe”, ou seja, que é preliminarmente dado na posição prévia, visão prévia e concepção prévia.” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 15ª ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2005, p. 207. )

Entendeu Heidegger?

Não!

É melhor voltar para o conceito do 1º ano primário...

Então vamos por um fim nesta conversa!

Quero chegar ao seguinte, qualquer pessoa, no ato de interpretar, ainda que involuntariamente, utilizará todas as concepções/motivações políticas, históricas e ideológicas que compõem sua percepção de mundo, seu olhar de homem histórico... (não esqueça - conceito do 1º ano primário...)

Assim, essa percepção de mundo sempre será utilizada, repito, ainda que involuntariamente, no ato de interpretar (trata-se de algo atávico), independente do método clássico que utilize...

Por tudo, temos 5 alternativas e uma pergunta incompleta ou uma quase-pergunta ou nenhuma pergunta.

E toda essa digressão é para deixar a seguinte provocação:

De que vale, ou a quem interessa um duplipensar no paradoxo Direito (Ciência) x Direito (para concurso)?

Incapacidade minha?

Talvez...

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Sobre o autor
Danilo Nascimento Cruz

Membro da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro; Especialista em Direito do Estado e em Direito Processual Civil; Desenvolve pesquisas nas áreas: Teoria da Constituição e do Processo Civil, Direito & Literatura e Direito & Filosofia; Contato: [email protected]

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Danilo Nascimento. O duplipensar no ensino jurídico –: como conviver com o paradoxo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4749, 2 jul. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/37538. Acesso em: 28 mar. 2024.

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