Capa da publicação Usuário ou traficante: como evitar o subjetivismo decisionista?
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O parágrafo 2º do art. 28 da Lei de Drogas: como distanciá-lo do subjetivismo decisionista?

25/11/2015 às 11:37
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Debate-se acerca das ferramentas decisórias utilizadas na distinção entre o usuário e o traficante de drogas, analisando os limites interpretativos do parágrafo 2º do art. 28 da Lei de Drogas.

O objetivo do presente trabalho é a análise breve das consequências interpretativas do parágrafo 2º do art. 28 da Lei de Drogas, de modo que se proponha o debate acerca das ferramentas decisórias utilizadas no tocante à distinção entre o usuário e o traficante.

Espera-se que o Supremo Tribunal Federal julgue, ainda em 2015, RE de nº 635659, de Repercussão Geral e de relatoria do Ministro Gilmar Mendes. O Recurso foi interposto pela Defensoria Pública de São Paulo e visa à declaração da inconstitucionalidade do caput do art. 28 da Lei nº 11.343/2006. Esse dispositivo legal define como crime a aquisição, a guarda, o depósito e o transporte de substância entorpecente para consumo próprio.

Trata-se, evidentemente, de uma previsão controversa, porquanto viola, sobremaneira, direitos fundamentais consagrados no texto constitucional, como a intimidade e a privacidade. O Estado não pode movimentar a máquina jurisdicional e acionar o seu poder punitivo para aplicar uma sanção penal a um indivíduo que decide fazer uso, de forma individual, de uma substância nociva. Não há alteridade e nem ofensividade nessa conduta, pressupostos lógico-fundamentais da racionalização penal.  Ademais, cumpre ressaltar que, além dos entraves e das questões sociológicas, antropológicas e filosóficas que circundam a política criminal e o modelo repressivo de combate às drogas, devemos nos ater, também, à seara da própria tipicidade do fato. Neste contexto, através de uma rápida leitura do art. 1º do decreto-lei 3.914 de 1941, a Lei de Introdução ao Código Penal, veremos que "considera-se como crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente,  quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa".

O art. 28 da Lei de Drogas, ao seu turno, penaliza o "crime" de consumo próprio de substâncias entorpecentes com advertência sobre os efeitos da droga, prestação de serviços à comunidade e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. Não há, portanto, a cominação de penas de reclusão ou detenção. Neste diapasão, é solar que há, desde o nascedouro da tipificação do fato, um problema de tipicidade formal. O fato é formalmente atípico, logo, não há que se falar em crime.

A expectativa da comunidade jurídica é a de que o STF julgue procedente o recurso para afastar  a constitucionalidade do referido artigo, de modo que haja, de fato e de direito, a descriminalização do consumo próprio de drogas.

A questão sobre a qual se debruça o presente texto, no entanto, diz respeito à imprecisão e a vagueza conceitual do parágrafo 2º do art. 28, que carece, inegavelmente, de um referencial semântico. Diz o texto legal: Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

No ensinamento de Cezar Roberto Bittencourt, em respeito ao princípio da legalidade, mediante um de seus corolários, o da taxatividade, representado pelo brocardo nullum crimen, nulla poena sine lege certa, é vedada a criação de figuras típicas penais indeterminadas, isto é, os tipos penais devem ser claros o suficiente, de modo que seja afastado, peremptoriamente, um juízo axiológico complementativo da norma.

Destarte, tal princípio é direcionado ao legislador para que, ao elaborar figuras penais típicas, faça-o da forma mais clara e determinada possível, sem dar espaços a imprecisões ou ambiguidades. Todavia, este é o caso do parágrafo 2º do art. 28 da Lei de Drogas.

Constata-se que os critérios a serem utilizados pelos magistrados são de ordem subjetiva, insuficientemente delimitados pelo legislador. Diz-se que o juiz atenderá à natureza e à quantidade da droga apreendida para definir se o agente é usuário ou traficante. Porém, como atestar, no caso concreto, se um quilo de maconha configura tráfico ou consumo, ou se 20 pedras de crack corroboram a mercancia ilícita? Hoje, isso depende, única e exclusivamente, dos desígnios decisórios do magistrado.

Trata-se, portanto, de tema bastante complexo. Tais imprecisões semânticas dão azo, inexoravelmente, ao famigerado utilitarismo decisionista que tem ganhado bastante força na aplicabilidade do direito penal e direito processual penal brasileiros. Daí resulta o solipsismo judicial, sendo atribuída ao magistrado não somente a função judicante, mas também a de inquisidor, no sentido de que decidirá, sem qualquer amarra normativa, quem é consumidor ou não. Há, portanto, flagrante violação e subversão do sistema acusatório, em tese adotado pelo ordenamento jurídico-penal brasileiro.

Destaque-se que, no pedido do RE 635659, o recorrente apenas fez menção à declaração de inconstitucionalidade do caput do art. 28, o que nos leva a crer que, ainda que seja julgado procedente, os critérios vagos do parágrafo 2º continuarão sendo utilizados como o único subsídio a ser manejado pelo Judiciário.

Ademais, é tal solipsismo que, notadamente no tráfico de drogas, tem causado profundos impactos na dinâmica penal e processual penal brasileira. Dados obtidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que cerca de 75% dos encarcerados tiveram algum envolvimento com o tráfico de substâncias ilícitas. Obviamente, uma parcela substancial desses presos, além de ainda não ter sido julgada, foi mandada ao cárcere em razão de prisões em flagrante com quantidades ínfimas de psicotrópicos. Em outros casos, réus primários, sem qualquer conduta desabonadora prévia em suas folhas criminais, também têm sido segregados cautelarmente, desde a fase pré-processual até o deslinde do processo penal, como uma forma evidente de cumprimento antecipado de pena.

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Tais prisões, arbitrárias, absolutamente seletivas e que guardam uma íntima relação com o autoritarismo tão peculiar ao processo penal brasileiro dos tempos atuais, apenas incrementam a criminalidade. O modelo proibicionista tem fracassado olimpicamente. Países como Portugal e Uruguai, nosso vizinho, têm dado exemplos de que a repressão não representa o melhor caminho, bem como que a guerra às drogas apenas tem cooptado e induzido mais e mais pessoas ao tráfico e, consequentemente, ao contato com a subcultura carcerária tão bem estudada por Bentham.

Neste sentido, manifestou-se o brilhante professor Rubens Casara:

O estudo do processo penal nunca será um exercício intelectual inocente, nem pode partir de premissas ingênuas dissociadas da facticidade ou travestidas de tecnicismos. A sedução exercida pela técnica processual, a beleza de seus mitos e os objetivos que a dogmática tradicional costuma atribui-lo (reforço da segurança pública, combate ao crime, criminalização e punição dos criminosos e etc) não devem produzir o esquecimento do sofrimento e da violência que o estado é capaz de gerar através dele.

Há, no processo penal, sempre um drama: episódios de conflito e manifestações de poder, anseios de liberdade e desejos de punição.

No Brasil, o processo penal e o direito penal são gravemente afetados por um vasto repertório de elementos culturais dissocidados do projeto democratizante encartado na Constituição da República de 1988, significantes que projetam no tempo e repercutem na formação de um imaginário autoritário, de uma cultura que acredita no uso da força em detrimento do conhecimento, como forma de solucionar os mais diversos problemas sociais.

Assim, encarcerando os etiquetados da labeling approach theory, marginalizados e criminalizados pelas classes sociais dominantes, detentoras do poder econômico, o direito penal e o processo penal transformam-se em ferramentas de "purificação" social, autoritárias em essência. O que se pretende é a reforma e o rompimento desse modelo seletivo de justiça penal, que tem sido utilizado como instrumento inócuo de combate aos problemas culturais e sociais que afligem o país. Todos sabemos, ou deveríamos saber, que a celeuma das drogas constitui uma questão de saúde pública, jamais um problema policial a ser manejado penalmente.

Numa perspectiva otimista, esperamos, desde que o STF mantenha-se inerte quanto a este tema, que seja levado o debate ao Congresso e que haja a reforma legislativa, no sentido de alterar o parágrafo 2º do art. 28, traçando critérios de ordem objetiva, guiando os magistrados e evitando o casuísmo e as injustiças tão rotineiras em nosso sistema penal.

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Sobre o autor
João Pedro Guerra

Advogado Criminalista; Especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal; apoiador filiado ao LEAP-Brasil (Law Enforcement Against Prohibition - Agentes da Lei Contra a Proibição); Membro da União dos Advogados Criminalistas (UNACRIM); Membro do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GUERRA, João Pedro. O parágrafo 2º do art. 28 da Lei de Drogas: como distanciá-lo do subjetivismo decisionista?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4529, 25 nov. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/41069. Acesso em: 28 mar. 2024.

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